quarta-feira, 29 de julho de 2020

MotoGP - Ossos do ofício



O início das temporadas de esportes motorizados em 2020, com procedimentos adaptados à contenção da pandemia, foi estranho. Na primeira prova do Mundial de F1, disputada na Áustria, pareceu que todos os comissários participavam da torcida de Valentino Rossi, com um festival de bandeiras amarelas agitadas. Em Jerez de la Frontera, na abertura da temporada de MotoGP, dois pilotos que já venceram na categoria principal, Alex Rins e Cal Crutchlow, estiveram ausentes do grid de largada por acidentes nos treinos que antecedem o GP, o britânico fraturou o osso escafoide no pulso e o espanhol com um deslocamento no ombro e suspeita de fratura do úmero. Um acidente quase no final da prova resultou em uma queda do 8 vezes campeão do mundo, Marc Márquez, que exigiu correção cirúrgica.

Os pilotos de MotoGP são atletas muito bem preparados em termos de condições físicas. A técnica de pilotagem desenvolvida por Marc Márquez e adotada por praticamente todos os pilotos de ponta indica que a postura ideal é manter toda a parte superior do corpo afastada da moto nas curvas, o constante reposicionamento de acordo com o layout do circuito exige muito preparo.  Em alguns contornos o piloto fica submetido a forças de até 2 g e é necessário um condicionamento específico. Por oportuno, um corpo humano experimenta uma sensação de conforto até 1 g e, embora não seja muito difícil resistir a pressões 2 g, valores muito superiores podem tornar quase impossível manter a consciência.

O que torna estes atletas tão especiais é a extraordinária competitividade na disputa pelo título mundial, aceitando os sacrifícios necessários. Dani Pedrosa, que se aposentou no final de 2018, nos 20 anos em que esteve nas pistas disputando as 3 categorias sofreu 11 fraturas, sua clavícula esquerda tem menos que 20% do tecido ósseo original. Embora o seu porte físico esteja longe do ideal (1,58m de altura), é o 8º piloto em número de vitórias da história do mundial (31, mesmo número de Eddie Lawson).

Eventos de superação e força de vontade de pilotos em relação a lesões com fraturas são inúmeros na MotoGP. Os exemplos abaixo foram selecionados por terem sido protagonizados por campeões mundiais.


Jorge Lorenzo

 

Considerado um dos maiores talentos das pistas. Jorge Lorenzo, realizou uma sequência heroica em 2013. Com uma pontuação que o habilitava a disputar o título da temporada, sofreu uma queda nos testes de classificação de sexta-feira para o GP de Assen, Holanda, e fraturou a clavícula. Com um jato fretado voou para Barcelona e foi operado na mesma noite. No domingo alinhou no grid de largada e encerrou a prova como quinto colocado. Duas semanas mais tarde nos treinos para o grande prêmio da Alemanha voltou a se acidentar machucando a mesma clavícula, só então parou para o restabelecimento completo.


Mick Doohan

 

Michael “Mick” Doohan desenvolveu uma maneira de controlar a moto adequada para a agressividade das 500cc dois tempos, em uma época onde os fabricantes privilegiavam a potência. Com uma curva acentuada de torque, a NSR500 era um equipamento complicado para controlar. Na temporada de 92 Doohan abriu 65 pontos de vantagem sobre a Yamaha do então bicampeão mundial, o americano Wayne Rainey. Nos testes livres do GP da Holanda em Assen, a Catedral da Motovelocidade, depois de uma primeira queda sem consequências voltou para a pista e sofreu um highside, tipo de acidente em que o piloto é projetado da moto e resultou em uma fratura na tíbia direita. O atendimento no hospital holandês foi desastroso, o piloto foi transferido para uma clínica na Itália já com diversos órgãos entrando em colapso devido à pouca circulação no membro sinistrado. Submetido a uma cirurgia inovadora onde o médico italiano Claudio Costa utilizou o sistema de irrigação da perna esquerda para revitalizar a direita, ficou com as duas pernas costuradas em recuperação por 14 dias. Ainda assim, parte da funcionalidade do seu membro direito ficou comprometida.

Depois de perder 4vetapas, seu retorno no GP do Brasil foi feito em circunstâncias muito desfavoráveis. Interlagos é um ícone na Fórmula 1, porém um circuito inadequado para as 500cc pelo piso ondulado e os muros da reta dos boxes muito próximos da pista, apesar de uma chicane ter sido construída na curva do Café. Os principais pilotos, entre eles Wayne Rainey, Eddie Lawson e o próprio Mick Doohan pressionaram pelo cancelamento da prova que, se efetivado, garantiria o título da temporada para o australiano, entretanto os interesses comerciais prevaleceram e a corrida foi mantida. Doohan chegou em São Paulo em uma cadeira de rodas e com a musculatura das pernas pouco desenvolvida devido a prolongada ausência de exercícios, ocultou dos responsáveis que sua perna direita não estava recuperada, totalmente insensível do joelho para baixo. Participou de uma corrida em um circuito desfavorável, com um clima hostil (garoa) e com uma perna só.

A sensibilidade do membro do piloto esteve ausente durante a maior parte da temporada de 93. A falta de mobilidade do tornozelo direito impedia o uso correto do pedal do freio traseiro e a Honda improvisou um controle com acionamento pelo polegar esquerdo. Michael Doohan conquistou cinco títulos seguidos, de 1994 a 1998, exclusivamente com motos Honda.

 

 Valentino Rossi

Feitos heroicos são saudados em prosa e verso, embora normalmente sejam exagerados. Em 2017 Valentino Rossi fraturou a perna direita praticando com uma moto de enduro e, 22 dias depois, estava de volta às pistas. Representantes da mídia especializada enumeraram alguns fatos não bem explicados em relação a recuperação meteórica do multicampeão. O acidente aconteceu em um local afastado e presenciado apenas por amigos próximos, não há registros de como foi transportado para o atendimento em um hospital. Foram divulgadas notícias de uma cirurgia bem-sucedida, sem publicar nenhum Raio-X do osso fraturado ou com as placas e pinos. A única certeza é que o piloto perdeu a prova de Misano, todo o resto é obscuro. O staff de Valentino é conhecido por sua especialidade em manipular a mídia.

Existem registros fotográficos que depois da avaliação realizada em Motorland (Aragon) ele saiu do Centro Médico utilizando uma muleta no lado esquerdo. É cientificamente impossível aliviar o peso ou obter algum benefício na perna direita com este tipo de apoio. No dia da prova, ao montar em seu protótipo antes de rumar para o grid, ele utilizou o lado direito do equipamento. Apoiou todos os seus 70-80kg de peso sobre a perna direita e girou toda esta massa sobre o osso fraturado para jogar a perna esquerda sobre a moto. Doses maciças de analgésicos podem justificar este procedimento, mas com certeza o instinto natural seria subir pelo outro lado para poupar o membro machucado. A pista de Aragon é no sentido anti-horário, ou seja, privilegia curvas para a esquerda que, por consequência, exigem maior apoio da perna direita para mudar a posição do corpo sobre a moto, Valentino não demonstrou dificuldades de movimentação em nenhum momento. Na prova ele também usou sem problemas o membro sinistrado como freio aerodinâmico nas aproximações das curvas. Quando desceu da máquina já no box no final da prova, de novo apoiou todo o corpo na perna direita.

Tudo indica que, se houve um sinistro, o dano foi muito menor do que a assessoria de imprensa do piloto divulgou. Todas as notícias do acidente e acompanhamento da recuperação foram anunciadas pelo seu staff e nenhuma evidência real foi divulgada. Ninguém põe em dúvida ou menospreza a proeza do piloto, porém existe a possibilidade que a magnitude do dano tenha sido superdimensionada.


 

Fraturas em 2019

Considerando as 3 classes, no mundial de 2019 o atendimento médico contabilizou 28 casos de ossos fraturados, incluindo as costelas de Jorge Loreno que o afastaram de diversas etapas.


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