A
Michelin, como fornecedor exclusivo de um componente essencial para a categoria
máxima do motociclismo no mais antigo campeonato do mundo de desportos
motorizados tem, ao mesmo tempo, um privilégio e uma enorme responsabilidade. Calçar
os protótipos da MotoGP é uma oportunidade única para a exposição da marca, ser
associado aos equipamentos mais sofisticados já produzidos pela tecnologia
aplicada em duas rodas e aos nomes mais famosos do motociclismo. A marca e
logotipo são exibidos em transmissões de TV com cobertura global, para milhões
de fãs de corridas e entusiastas da motovelocidade a cada grande prêmio,
aparece em fotos de jornais, revistas e em milhares de polegadas em colunas de
sites. Pagar a mesma exposição - um conceito conhecido como valor publicitário
equivalente - custaria uma fortuna.
Existe
o reverso da medalha. É extremamente raro ouvir pilotos elogiar os pneus
espontaneamente. Os méritos da Bridgestone só foram reconhecidos quando o
fabricante anunciou que estava se retirando do papel do fornecedor oficial,
Marc Márquez reconheceu que muito do seu estilo agressivo de pilotagem só foi
possível pela extraordinária aderência do pneu dianteiro da fabricante japonesa.
A crítica, em contrapartida, é imediata: pneus que não aquecem o
suficiente, desgastam muito rápido ou não tem a aderência adequada são
explicações frequentes para insucessos na pista.
As regras da MotoGP
permitiam até 2009 a “Guerra dos Pneus”, Dunlop, Michelin e Bridgestone
competiam pelo privilégio de equipar as motos mais competitivas. A escalada de
custos e o consequente desequilíbrio da competição obrigou o regulamento de
2007 a limitar o número de pneus poderiam ser utilizados por um piloto durante
uma etapa (testes, qualificação e prova). A limitação criou o problema de seleção
de pneus em relação à pista, clima e outros fatores, que desafia os pilotos e
equipes a otimizar seu desempenho nos dois dias que precedem as corridas.
Ao longo das últimas
duas décadas alterações de fabricantes e especificações dos
pneus sempre tiveram grande influência sobre quem vence o campeonato. Em 2000 a
Michelin trocou as 17” por 16,5“, privilegiando maior tração de saída de curva
que auxiliou Kenny Roberts Jr, Suzuki, a vencer o mundial. No ano de 2004 a
fábrica francesa forneceu um slick traseiro mais largo, com melhor aderência de
borda que foi essencial para a Yamaha de Valentino Rossi explorar a vantagem de
velocidade de curva do YZR-M1 e conseguir o título. Na época, o pessoal da Honda chamou o composto
de o “pneu Yamaha".
Kenny Roberts Jr. Suzuki
RGV-R 500cc (2 tempos)
Em
2006 o pêndulo oscilou para o lado da Honda, com uma melhora expressiva na
aderência. Por pressão de Valentino Rossi, a Michelin criou um pneu especial para
a Yamaha durante a temporada. Nicky Hayden ganhou o título com uma Honda. No
meio do campeonato de 2012 a Bridgestone mudou seu pneu dianteiro, causando
problemas com Casey Stoner da Honda durante a frenagem e a entrada na curva. O
australiano justificou que a única maneira de obter o suporte é com maior
pressão, o que lhe dá menos área de contato. Jorge Lorenzo da Yamaha conquistou
da Yamaha conquistou o título.
A
versão 2014 voltou a favorecer a Honda. Um novo componente traseiro da
Bridgestone com a borda mais dura era adequado à técnica de condução de Marc
Márquez, que estabeleceu o recorde de 13 vitórias. O pneu foi o protagonista do
crescimento da Ducati em 2016. Os pontos fortes da fábrica italiana eram a estabilidade
nas fases de frenagem e aceleração, utilizando com parcimônia o apoio na borda,
que casou excepcionalmente bem com as características do pneu.
Equalizando a linguagem, pneus duros são mais resistentes, porém tem mais dificuldade em deformar e atingir a janela de temperatura ideal onde operam com a maior aderência. Pneus macios deformam com mais facilidade e possibilitam maior velocidade, mas talvez não resistam toda uma prova. Estas opções podem ser divididas em simétricos ou assimétricos (dual compound). Simétricos apresentam consistência uniforme e assimétricos permitem maior resistência no lado da borda mais solicitada
Para esta temporada, a Michelin desenvolveu uma construção diferente com o objetivo de aumentar a área de contato (patch), colocando mais borracha na pista para obter maior aderência, visando permitir tempos de volta mais rápidos, desempenho e estabilidade especialmente em circuitos conhecidas por serem difíceis com os pneus. A fábrica realizou em 2019 testes extensivos, incluindo uma sessão extra exclusiva durante a etapa australiana em Phillip Island.
O aumento da aderência traseira muda o equilíbrio
dianteira/traseira, o que pode complicar contornar curvas e outros fatores de
desempenho. Se houver maior aderência traseira, os pilotos com certeza devem
explorar esta característica e colocar mais carga no pneu traseiro, logicamente
reduz a carga no pneu dianteiro e fica muito fácil perder a frente.
O invólucro da nova traseira é mais maleável, então o
pneu fica mais liso, o que aumenta a área de contato e dificulta a moto a mudar
de direção. O condutor tem que fazer
mais força. Os pilotos da Ducati reclamam que tem dificuldade em sair das
curvas. O novo traseiro permite mais aderência no meio do contorno e privilegia
equipamentos que tem maior velocidade em curvas, melhora a estabilidade e
tração na saída e conseguem uma retomada de velocidade mais rápida.
Os ensaios e testes realizados sugerem que o pneu pode
funcionar melhor para os pilotos de motos com motores em linha, que exigem
menos esforço físico para passar pelas curvas. A própria Michelin reconhece que
com este pneu, aparentemente os pilotos não podem ser muito agressivos. A
técnica de deslizar a traseira para virar a moto fica comprometida pela maior
aderência. O pneu é mais estável na
curva e tem uma boa vantagem na área de aceleração, ajuda a parar a moto quando
o piloto está usando o pneu traseiro na frenagem. Literalmente, os pilotos
devem frear, acelerar e contornar curvas de modo diferente.
A pandemia prejudicou muito a adequação dos equipamentos
ao novo componente. A primeira vez que pilotos e engenheiros conseguiram se
concentrar 100% na nova traseira foi nos testes de Sepang e Losail em
fevereiro, então eles só tiveram seis dias completos com o pneu.
O fator principal que deve decidir o campeonato de MotoGP
deste ano será qual equipe consegue reequilibrar os protótipos mais rapidamente
para o novo pneu. Detalhe, tem que ser desenvolvido em um calendário compactado
de 13 etapas em 18 fins de semana, sem tempo para testes.
O objetivo dos engenheiros é ajustar o equilíbrio de
tração via geometria e configuração de suspensão para deslocar o viés de peso
para frente, aumentar a carga dianteira e, portanto, recuperar a aderência
dianteira e o desempenho de giro. Cada fábrica precisará encontrar seu próprio
ponto ideal, então a vantagem será do piloto que melhor adaptar a sua técnica
de pilotagem em breve para aproveitar ao máximo as características do pneu e
souber evitar seus pontos negativos.
Não há como antecipar qual a equipe ou equipamento que
vai ser favorecido pelo traseiro versão 2020 da Michelin, mas geralmente são os
pilotos mais inteligentes e talentosos que trabalham como tirar o máximo de um
pneu novo ou qualquer outro upgrade técnico adaptando sua técnica de pilotagem.
As rodadas um e dois em Jerez no final deste mês não
provarão conclusivamente quem são os vencedores e quem são os perdedores com o
novo Michelin – a situação pode mudar corrida por corrida à medida que
diferentes equipes e fábricas desvendarem os segredos do pneu.
Post Scriptum
O resultado da primeira prova da temporada em Jerez pode
servir como orientação preliminar, não como um indicativo absoluto que o novo
pneu privilegia os motores em linha. Duas Yamaha nos primeiros lugares,
seguidas de duas Ducati mascaram a realidade da prova. Marc Márquez perdeu a
frente duas vezes (falta de aderência dianteira), salvou a primeira e sofreu um
high-side (foi catapultado) na segunda, que resultou em uma fratura diafísica. Enquanto esteve na
pista o desempenho de sua Honda foi superior aos outros equipamentos. Como Cal
Crutchlow não alinhou na largada, a fábrica nipônica ficou sem seus pilotos
principais.
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