quinta-feira, 2 de julho de 2020

F1 – Os cegos e o elefante



Ferrari de Sebastian Vettel - 2019



A parábola dos Cegos e o Elefante surgiu originalmente na Índia, de onde foi exportada para a Europa e ganhou o mundo. Conta a história de um grupo de cegos que não tinham a mínima ideia de como era um elefante e pretendem descrever o animal utilizando exclusivamente o tato como fonte de informação. Cada cego toca em uma única parte diferente do corpo do elefante, então criam o conceito do animal com base em suas experiências limitadas. A moral da parábola é que humanos têm uma tendência a acreditar em explicações complexas com base em experiências limitadas e subjetivas, ao mesmo tempo que desconsideram ideias que podem ser igualmente verdadeiras. A saída de Vettel da Ferrari não tem uma única explicação, diversas ocorrências contribuíram para um desfecho que desde o meio da temporada passada era previsível.




Um fato semelhante está acontecendo neste intervalo forçado no mundial de Fórmula 1. Todos estão tentando buscando uma explicação definitiva sobre o que aconteceu e qual vai ser o futuro de Sebastian Vettel, que substituiu Fernando Alonso na Ferrari em 2015 com a promessa de recolocar a equipe do cavalinho rampante no alto do pódio.



Vettel começou a justificar sua contratação ao bater ambas as Mercedes (Hamilton e  Rosberg) na segunda prova da temporada (Malásia). No final de março de 2015 o sonho de repetir os títulos de Michael Schumacher parecia possível. A equipe, chefiada por Maurizio Arrivabene, e   o colega Kimi Raikkonen receberam muito bem o tetracampeão alemão (2010, 2011, 2012 & 2013) e aceitaram sem hesitação a sua liderança.




Vitória na Malásia – 2015



Em 2018 tudo mudou. O mau presságio foi o óbito do empresário ítalo-canadense Sergio Marchionne, diretor executivo da Fiat Chrysler e diretor executivo da Ferrari.




Tudo funcionou até meados de 2018,  com a Ferrari nos testes pré-temporada parecendo mais forte que a Mercedes, então iniciou o inferno astral para o piloto alemão, sua consistência caiu verticalmente durante a temporada. Erros inconcebíveis nos Estados Unidos e na Itália foram catastróficos, mas nada comparado ao trauma de sair sozinho da pista enquanto liderava com folga a corrida em sua casa, Hockenheim. O infalível Sebastian Vettel jogou fora a melhor chance de um título da Ferrari em uma década, e aparentemente sentiu o impacto, ainda não há confirmação de que ele se recuperou verdadeiramente deste evento.




Vettel abandona em Hockenheim - 2018



O novo presidente da Ferrari, John Elkann, substituiu Arrivabene entregando o comando em 2019 para Mattia Binotto, que liderou o Departamento Técnico da equipe no ano anterior. Não era segredo que, embora trabalhando em conjunto,  Binotto e Arrivabene não tinham as ideias alinhadas.



O desempenho de 2019 de Sebastian Vettel foi extremamente irregular. Enquanto apresentava performances excelentes (como sua vitória em Singapura), houve ocasiões no início da temporada em que esteve irreconhecível, como o toque de rodas com Lewis Hamilton no Bahrein. Esta imprevisibilidade permaneceu ao longo do ano e ficou escancarada em Monza, enquanto Charles Leclerc liderava a equipe Ferrari em casa para vencer as Mercedes, Vettel saiu sozinho enquanto estava em 4º no início da corrida e, para o desastre ser completo, foi imprudente no retorno e causou outro incidente. Ainda em 2019 uma disputa caseira alijou ambos os carros vermelhos no GP do Brasil.





Vettel & Leclerc colidem no GP Brasil 2019



A abordagem de Binotto com Vettel não foi a mesma de Arrivabene. Com Leclerc substituindo Raikkonen no início da temporada, a Ferrari inicialmente tentou organizar a ordem dentro de casa, porém o forte desempenho de Leclerc no Bahrein indicou que ele era capaz de igualar ou superar o nível de desempenho de Vettel, um fato que passou a ser comum na temporada.



Em tempo, bem poucos analistas da F1 não italianos acreditam que Leclerc possa ser um futuro Michael Schumacher. A Ferrari está convencida que ele provavelmente seja capaz de liderar os carros vermelhos contra a Mercedes de Lewis Hamilton ou contra o carro da Red Bull (que a emissora do Jardim Botânico chama de RBR) de Max Verstappen. Como Charles Leclerc é uma cria da própria Academia de Pilotos da Ferrari, dificilmente Vettel vai ter prioridade sobre ele.



Onde diabos eu devia ir? Questionou um frustrado Sebastian Vettel  depois de cruzar a linha de chegada em primeiro e ser rebaixado para segundo devido a uma penalidade de 5 seg por  voltar perigosamente à pista no GP do Canadá em 2019.  Trocar as placas de 1º e 2º entre seu carro e a Mercedes de Hamilton no parque fechado levou os torcedores italianos à loucura, mas foi insuficiente para não questionar o seu futuro na Ferrari, um tema que continuou ao longo da temporada. Cometeu uma série de erros que erros que não encontravam paralelos em seus quatro campeonatos mundiais. A imagem de Vettel trocando as placas de 1º da frente da Mercedes de Hamilton pela de 2º correu o mundo, o britânico com o seu fair-play característico dividiu o lugar mais alto no pódio com ele. Foi uma maneira do piloto alemão  demonstrar todo o seu aborrecimento por perder o primeiro lugar por causa da ação disciplinar controversa da FIA. Foi uma maravilha para os fãs e a imprensa, mas menos divertido para os bastidores, e é, talvez, emblemático do último ano de Vettel com a equipe. Já é definido, Vettel vai ser substituído por por Carlos Sainz Jr no próximo ano, o que torna premonitórias as suas palavras daquela tarde de domingo no Canadá.





Vettel troca as placas no Parque Fechado do GP do Canadá



Em termos de Ferrari uma constatação é simples: Sainz não representa uma ameaça para Leclerc. Ambos são jovens e podem pilotar juntos nos próximos cinco ou seis anos. Se souberem trabalhar em equipe, podem até levar os títulos de campeões do mundial de pilotos e/ou construtores. Este tipo de arranjo já funcionou antes, com Schumacher e Barrichello, por exemplo. Sua saída da Ferrari não causou muita surpresa, amigos próximos ao piloto alemão disseram que se tornou irreversível nos últimos meses, de alguma forma, ele perdeu a fé na Ferrari. Quando perguntaram a Helmut Marko, consultor da Red Bull, se a saída de Vettel é resultado da chegada de Charles Leclerc, o dirigente de 77 anos respondeu: “Sim, mas não é só porque Charles Leclerc tem talento. Tem muita política em torno de Leclerc e Vettel não gosta disso. Ele só quer pisar no acelerador, vencer corridas e não gastar energia desnecessariamente com política da equipe”.



Qual o futuro de Sebastian Vettel em 2021? Pode tirar um ano sabático como Kimi Raikkonen, decidir ficar algum tempo fora e tentar voltar como Fernando Alonso, ou simplesmente entender que seu tempo passou, como aconteceu com Mika Hakkinen ou Nico Rosberg. Foi bom enquanto durou.



Como um cara que sempre fez as coisas nos seus próprios termos, muitas vezes até contrariando a orientação de seus representantes, se não houver uma chance de lutar por mais um título mundial, Vettel pode considerar a aposentadoria como opção, Afinal, não me ocorre nenhum caso de um piloto que tenha se afastado e retornado com sucesso à F1. Mansell foi um desastre, o próprio Schumacher não conseguiu se impor.



Seu ex-companheiro de equipe, Mark Webber, previu anos atrás, que ele abandonaria a Fórmula 1 depois da Ferrari. Vettel é uma pessoa tipo família, raramente é visto em festas e fica longe das mídias sociais, preferindo um estilo de vida discreto, por isto não causaria surpresa se ele decidir ficar longe dos holofotes. No entanto ainda é jovem, tem alguns anos de bom desempenho e, conhecendo a sua paixão pelo esporte, é improvável que abandone às corridas. Há quem diga que ele deve se envolver com o gerenciamento de equipes, outros alegam que é muito cedo para isto.

Vettel às vezes é mal compreendido. Ele é um cara muito genuíno, atende a todos no paddock e tem empatia com o público. Acontece que esta temporada é atípica, com pouco tempo para concluir 2020 e com os novos regulamentos adiados, não será nenhuma surpresa se muitos pilotos com contratos em vigor prorroguem por mais um ano, o que implica em uma nova dança de cadeiras para 2022. Parece lógico que Sebastian resolva se afastar em 2021 e voltar se surgir uma boa oportunidade no ano seguinte, até porque no próximo ano não há lugar para ele onde tenha a chance de lutar por vitórias.

Se permanecer na Fórmula 1, ele não teria espaço nas três grandes equipes e teria que aceitar competir com Renault ou Racing Point, as únicas opções possíveis para 2021. A Racing Point está mudando para Aston Martin e ao que se sabe não é só uma mudança de nome, implica em pesados investimentos e o uso de unidades de força fornecidas pela Mercedes, que tem o potencial de levar um candidato de nível médio ao topo. Seria uma possibilidade para a equipe e para Vettel.  O lugar da Renault foi recentemente desocupado de Daniel Ricciardo, mas a decepção do Sorrizão foi tão grande que ele desistiu para 2020, é uma razão suficiente para afastar um piloto que sonha em voltar a ser vencedor.

Tem também a hipótese de ser um outro Alonso da vida, tentar Le Mans ou a Indy. Comercialmente o sucesso é garantido, o nome Vettel com certeza agregaria muito a estas competições. Já houve rumores que a Ferrari teria interesse em fornecer propulsores para a Indy, que tem mais a ver com motores de produção industrial que os elaborados protótipos da F1, quem sabe Vettel ainda volte a se associar com a equipe do cavalinho rampante.

Vettel tem uma história de sucesso na Ferrari. O alemão pode não ter conquistado um campeonato mundial com o carro vermelho, mas em termos de vitórias em corridas, ele é o terceiro piloto mais bem-sucedido da história da equipe. O que resta da temporada 2020, parcialmente cancelada, será a oportunidade de definir verdadeiramente qual o seu legado para a equipe italiana. Talvez o efeito de não ter seu contrato renovado alivie a pressão sobre seus ombros, um piloto com menos cobrança e sem precisar provar o seu talento certamente cometerá menos erros na pista e talvez até possa vencer o título. Seria uma “Vendetta” perfeita contra os italianos que em menos de uma temporada esqueceram seus seis anos de equipe e endeusaram Leclerc. Posso até imaginar a sua reação se ouvir pelo rádio uma orientação do tipo: Charles is faster than you. Please confirm that you understand this message.

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