O
cantor e compositor Belchior, recentemente falecido, foi muito feliz ao
identificar na letra de um dos seus sucessos o comportamento das massas em
relação aos ídolos, ele escreveu: “Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos
pais”. Cada geração elege seus próprios heróis, por três décadas o nome de Pelé
foi sinônimo de futebol, hoje a crença generalizada é que nunca houve nem
haverá alguém como Neymar Jr. Na Fórmula 1 dos anos 70 o protagonismo era de
Emerson Fittipaldi, a irreverencia de Nelson Piquet e o carisma de Ayrton Senna
trouxeram a F1 para o noticiário diário nos anos 80 e início da década de 90,
nos dias atuais o esporte é divulgado quase que exclusivamente na mídia
especializada, digital ou escrita. O tênis, que foi guindado a esporte nacional
nos anos que antecederam e sucederam a virada do século alavancado pelo sucesso
de Gustavo Kuerten, o ocaso do ídolo relegou o esporte para o noticiário marginal.
Este
mesmo comportamento das massas é replicado em escala mundial no motociclismo
esportivo, os anos de consolidação do mundial da FIM foram majoritariamente
vencidos por britânicos (3 exceções em 17 anos), os nomes de Geoff Duke, John
Surtees e Mike Hailwood estiveram em evidência. Houve a época em que citar
motovelocidade ou Giacomo Agostini tinha o mesmo significado, e um período em
que a bandeira de estrelas e listras foi presença obrigatória no pódio. Depois
de uma curta hegemonia de um australiano com limitações físicas (Mick Doohan),
o esporte da velocidade em duas rodas passou a ser identificado na década de
2000 por um nome italiano, Valentino Rossi.
Uma temporada da MotoGP é um período exaustivo
para os pilotos. Viagens constantes, sessões de treinos e provas são estressantes
e ninguém conhece este ambiente melhor que Valentino Rossi. Ele já participou
de mais de 350 GPs desde 1996, venceu 114, conseguiu 64 poles, esteve presente em
224 pódios e foi campeão mundial em 9 oportunidades. São números excepcionais, faltam apenas 8
vitórias e um mundial para igualar os recordes do conterrâneo Giacomo Agostini e
ser o maior vencedor de todos os tempos na história do motociclismo.
Rossi chegou à MotoGP da maneira convencional,
passando pelas categorias de acesso para conhecer as pistas onde os GPs são
disputados em motos 125cc, com velocidade máxima de 220 km/h, fazendo estágio
em equipamentos 250cc que desenvolvem até 270 km/h, antes de chegar à categoria
máxima. Seu equipamento atual, a Yamaha YRZ-M1, pesa 157 kg, tem um motor de
1000cc, potência superior a 240 hp e atinge velocidades próximas a 340 km/h.
Rossi participou pela primeira vez em uma
etapa do mundial em 96, foi campeão da classe 125cc um ano depois, migrou para
a 250cc em 98 e conquistou o título da categoria em 99. Foi promovido para a
MotoGP em 2000 e em 2001 ganhou seu primeiro mundial da classe principal,
repetiu o feito nos quatro anos seguintes.
Os cinco títulos consecutivos igualam o feito
de Mick Doohan (94 a 98) e só é inferior à sequência alcançada por Agostini (66
a 72). Valentino perdeu o mundial de 2006 por exatos 0,002 segundos, a
diferença da prova em que foi vencido por Toni Elias no Estoril. Nicky Hayden foi
campeão da temporada por 5 pontos, a diferença entre o primeiro e o segundo
colocados, os critérios de desempate favoreciam ao italiano.
A conquista de Nicky Hayden comprovou que
Valentino não era invencível e em 2007, ano em que o regulamento reduziu a
capacidade do motor para 800cc, a Ducati produziu um protótipo excepcional e seu
piloto, o australiano Casey Stoner não tomou conhecimento da concorrência,
venceu dez provas e conseguiu o primeiro (e único) título do fabricante
italiano. Rossi voltou a vencer e turbinar suas estatísticas em 2008 e 2009, anos
em que compartilhou o box com o estreante Jorge Lorenzo.
A trajetória vitoriosa de Rossi encontrou seu
ponto de inflexão em 2010, nos treinos que antecederam o GP da Itália em
Mugello fraturou a perna e ficou ausente por 4 etapas. Seu infortúnio foi
aproveitado por Lorenzo que, com uma temporada impecável onde só em duas provas
(4° em Aragon e 4° no Japão) não esteve no pódio, conquistou 9 vitórias e seu
primeiro título mundial.
Com o título de Lorenzo confirmado muito antes
do encerramento da temporada, a Yamaha condicionou a renovação de Valentino Rossi
para 2011/2012 a um corte no salário e supressão das vantagens de piloto
principal da equipe. Renumeração não era importante, o piloto já tinha a
estabilidade financeira assegurada, porém a perda de status era inaceitável. Como
Casey Stoner havia trocado a Ducati pela Honda, equipe do seu herói de infância
Mick Doohan, com um leque de opções restrito Rossi escolheu apostar em um sonho
dos italianos, assinou por dois anos com a Ducati.
As fábricas devem produz ir suas motos de
acordo com as especificações do regulamento técnico da FIM, entretanto não são
obrigadas a produzir máquinas com as mesmas características. Todas optam por desenvolver
os protótipos identificadas com os seus objetivos, Rossi ajudou a Yamaha a criar
um produto eficiente e equilibrado, a Ducati privilegia a potência do motor e a
Honda utiliza as pistas como laboratório para desenvolver soluções que possam
ser portadas para suas motos de produção em série. O sonho italiano de uma
equipe “puro sangue” era realidade, e uma vitória da Ducati seria equivalente
ao Papa vencer o GP de Monza de Fórmula 1 pilotando uma Ferrari. Foi um
desastre. Stonner e a Honda venceram em 2011, Lorenzo conseguiu seu
bicampeonato em 2012 e, em 2013, sem conquistar nenhum resultado expressivo pela
fábrica italiana, Rossi voltou para a Yamaha. Foi vencido em 2013, 14 e 16 por
Marc Márquez com a Honda, e em 2015 pelo colega de equipe Jorge Lorenzo.
É impossível contar a história dos mundiais de
motovelocidade sem citar a importância de Valentino Rossi. Ele foi o personagem
que melhor compreendeu e capitalizou a mudança de rumo causada pela evolução
das comunicações na MotoGP, alterando o perfil de disputa pura para espetáculo na
mídia. O seu carisma pessoal personificou a imagem de um competidor feroz nas
pistas e um bom moço na vida comum, que contribuiu para popularizar o esporte em
todo o planeta. As bandeiras amarelas com o número 46 podem ser encontradas em
qualquer circuito onde sejam realizadas corridas de motos e em Tavullia, sua
cidade natal, os sinos da igreja tocam desde 1996 sempre que ele consegue
alguma vitória.
Não há como desenvolver uma carreira tão longa
e vitoriosa, a de Rossi já dura 23 anos, sem colecionar desafetos. Disputas
acirradas nas pistas, nem sempre pautadas pela ética, extrapolam facilmente
para os bastidores e causam inimizades. Algumas comemorações hilárias que são a
assinatura do piloto ofendem outros competidores, a boneca inflável que ele
utilizou na prova de Mugello em 1997 foi uma provocação acintosa ao seu
concorrente Max Biaggi por sua suposta relação com uma modelo, uma atitude grotesca
e desnecessariamente ofensiva. Rossi também costuma valorizar seus feitos e
terceirizar insucessos. Justificou os títulos de Lorenzo afirmando que haviam
sido conquistados pela moto que ele desenvolveu, até hoje culpa Marc Márquez
por não ter conseguido seu almejado décimo mundial em 2015. No GP da Alemanha de
2016 optou por não seguir a orientação da equipe de apoio e permitiu uma
vitória improvável de Marc Márquez, tentou se justificar reclamando da limitação
das comunicações entre pilotos e equipes sugerindo a necessidade do uso de rádio.
O balanço entre os prós e contras é muito favorável
ao piloto italiano e, no futuro, é bem provável que a história dos mundiais da
FIM seja dividida em AV e DV, antes e depois de Valentino Rossi.
Carlos Alberto
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