sexta-feira, 5 de maio de 2017

Meandros da Motovelocidade (VI. A Era do Italiano)






O cantor e compositor Belchior, recentemente falecido, foi muito feliz ao identificar na letra de um dos seus sucessos o comportamento das massas em relação aos ídolos, ele escreveu: “Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Cada geração elege seus próprios heróis, por três décadas o nome de Pelé foi sinônimo de futebol, hoje a crença generalizada é que nunca houve nem haverá alguém como Neymar Jr. Na Fórmula 1 dos anos 70 o protagonismo era de Emerson Fittipaldi, a irreverencia de Nelson Piquet e o carisma de Ayrton Senna trouxeram a F1 para o noticiário diário nos anos 80 e início da década de 90, nos dias atuais o esporte é divulgado quase que exclusivamente na mídia especializada, digital ou escrita. O tênis, que foi guindado a esporte nacional nos anos que antecederam e sucederam a virada do século alavancado pelo sucesso de Gustavo Kuerten, o ocaso do ídolo relegou o esporte para o noticiário marginal.

Este mesmo comportamento das massas é replicado em escala mundial no motociclismo esportivo, os anos de consolidação do mundial da FIM foram majoritariamente vencidos por britânicos (3 exceções em 17 anos), os nomes de Geoff Duke, John Surtees e Mike Hailwood estiveram em evidência. Houve a época em que citar motovelocidade ou Giacomo Agostini tinha o mesmo significado, e um período em que a bandeira de estrelas e listras foi presença obrigatória no pódio. Depois de uma curta hegemonia de um australiano com limitações físicas (Mick Doohan), o esporte da velocidade em duas rodas passou a ser identificado na década de 2000 por um nome italiano, Valentino Rossi.


Uma temporada da MotoGP é um período exaustivo para os pilotos. Viagens constantes, sessões de treinos e provas são estressantes e ninguém conhece este ambiente melhor que Valentino Rossi. Ele já participou de mais de 350 GPs desde 1996, venceu 114, conseguiu 64 poles, esteve presente em 224 pódios e foi campeão mundial em 9 oportunidades.  São números excepcionais, faltam apenas 8 vitórias e um mundial para igualar os recordes do conterrâneo Giacomo Agostini e ser o maior vencedor de todos os tempos na história do motociclismo.


Rossi chegou à MotoGP da maneira convencional, passando pelas categorias de acesso para conhecer as pistas onde os GPs são disputados em motos 125cc, com velocidade máxima de 220 km/h, fazendo estágio em equipamentos 250cc que desenvolvem até 270 km/h, antes de chegar à categoria máxima. Seu equipamento atual, a Yamaha YRZ-M1, pesa 157 kg, tem um motor de 1000cc, potência superior a 240 hp e atinge velocidades próximas a 340 km/h.


Rossi participou pela primeira vez em uma etapa do mundial em 96, foi campeão da classe 125cc um ano depois, migrou para a 250cc em 98 e conquistou o título da categoria em 99. Foi promovido para a MotoGP em 2000 e em 2001 ganhou seu primeiro mundial da classe principal, repetiu o feito nos quatro anos seguintes.


Os cinco títulos consecutivos igualam o feito de Mick Doohan (94 a 98) e só é inferior à sequência alcançada por Agostini (66 a 72). Valentino perdeu o mundial de 2006 por exatos 0,002 segundos, a diferença da prova em que foi vencido por Toni Elias no Estoril. Nicky Hayden foi campeão da temporada por 5 pontos, a diferença entre o primeiro e o segundo colocados, os critérios de desempate favoreciam ao italiano.


A conquista de Nicky Hayden comprovou que Valentino não era invencível e em 2007, ano em que o regulamento reduziu a capacidade do motor para 800cc, a Ducati produziu um protótipo excepcional e seu piloto, o australiano Casey Stoner não tomou conhecimento da concorrência, venceu dez provas e conseguiu o primeiro (e único) título do fabricante italiano. Rossi voltou a vencer e turbinar suas estatísticas em 2008 e 2009, anos em que compartilhou o box com o estreante Jorge Lorenzo.


A trajetória vitoriosa de Rossi encontrou seu ponto de inflexão em 2010, nos treinos que antecederam o GP da Itália em Mugello fraturou a perna e ficou ausente por 4 etapas. Seu infortúnio foi aproveitado por Lorenzo que, com uma temporada impecável onde só em duas provas (4° em Aragon e 4° no Japão) não esteve no pódio, conquistou 9 vitórias e seu primeiro título mundial.


Com o título de Lorenzo confirmado muito antes do encerramento da temporada, a Yamaha condicionou a renovação de Valentino Rossi para 2011/2012 a um corte no salário e supressão das vantagens de piloto principal da equipe. Renumeração não era importante, o piloto já tinha a estabilidade financeira assegurada, porém a perda de status era inaceitável. Como Casey Stoner havia trocado a Ducati pela Honda, equipe do seu herói de infância Mick Doohan, com um leque de opções restrito Rossi escolheu apostar em um sonho dos italianos, assinou por dois anos com a Ducati.


As fábricas devem produz ir suas motos de acordo com as especificações do regulamento técnico da FIM, entretanto não são obrigadas a produzir máquinas com as mesmas características. Todas optam por desenvolver os protótipos identificadas com os seus objetivos, Rossi ajudou a Yamaha a criar um produto eficiente e equilibrado, a Ducati privilegia a potência do motor e a Honda utiliza as pistas como laboratório para desenvolver soluções que possam ser portadas para suas motos de produção em série. O sonho italiano de uma equipe “puro sangue” era realidade, e uma vitória da Ducati seria equivalente ao Papa vencer o GP de Monza de Fórmula 1 pilotando uma Ferrari. Foi um desastre. Stonner e a Honda venceram em 2011, Lorenzo conseguiu seu bicampeonato em 2012 e, em 2013, sem conquistar nenhum resultado expressivo pela fábrica italiana, Rossi voltou para a Yamaha. Foi vencido em 2013, 14 e 16 por Marc Márquez com a Honda, e em 2015 pelo colega de equipe Jorge Lorenzo.  


É impossível contar a história dos mundiais de motovelocidade sem citar a importância de Valentino Rossi. Ele foi o personagem que melhor compreendeu e capitalizou a mudança de rumo causada pela evolução das comunicações na MotoGP, alterando o perfil de disputa pura para espetáculo na mídia. O seu carisma pessoal personificou a imagem de um competidor feroz nas pistas e um bom moço na vida comum, que contribuiu para popularizar o esporte em todo o planeta. As bandeiras amarelas com o número 46 podem ser encontradas em qualquer circuito onde sejam realizadas corridas de motos e em Tavullia, sua cidade natal, os sinos da igreja tocam desde 1996 sempre que ele consegue alguma vitória.


Não há como desenvolver uma carreira tão longa e vitoriosa, a de Rossi já dura 23 anos, sem colecionar desafetos. Disputas acirradas nas pistas, nem sempre pautadas pela ética, extrapolam facilmente para os bastidores e causam inimizades. Algumas comemorações hilárias que são a assinatura do piloto ofendem outros competidores, a boneca inflável que ele utilizou na prova de Mugello em 1997 foi uma provocação acintosa ao seu concorrente Max Biaggi por sua suposta relação com uma modelo, uma atitude grotesca e desnecessariamente ofensiva. Rossi também costuma valorizar seus feitos e terceirizar insucessos. Justificou os títulos de Lorenzo afirmando que haviam sido conquistados pela moto que ele desenvolveu, até hoje culpa Marc Márquez por não ter conseguido seu almejado décimo mundial em 2015. No GP da Alemanha de 2016 optou por não seguir a orientação da equipe de apoio e permitiu uma vitória improvável de Marc Márquez, tentou se justificar reclamando da limitação das comunicações entre pilotos e equipes sugerindo a necessidade do uso de rádio.


O balanço entre os prós e contras é muito favorável ao piloto italiano e, no futuro, é bem provável que a história dos mundiais da FIM seja dividida em AV e DV, antes e depois de Valentino Rossi.

Carlos Alberto



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