quarta-feira, 3 de maio de 2017

Meandros da Motovelocidade (V. O Aussie)  




O enredo do filme “Rush”, de 2013, é baseado na rivalidade histórica entre James Hunt e Niki Lauda na Fórmula 1, com ênfase no esforço do austríaco em sua recuperação do acidente que sofreu no circuito de Nurburgring em 1976. O mesmo roteirista poderia escrever sobre um piloto australiano que superou diversas dificuldades para colocar o seu nome na galeria dos maiores vencedores da motovelocidade.


Michael “Mick” Doohan surgiu para o universo das provas de velocidade em motos no Campeonato Australiano de Superbike, e foi convidado para pilotar pela Honda na MotoGP em 1989, para compartilhar as pistas com monstros sagrados como Wayne Rainey, Eddie Lawson, Randy Mamola e Kevin Schwantz. Sua maneira de controlar a moto era adequada para a agressividade das 500cc dois tempos, em uma época onde os fabricantes privilegiavam a potência e, com uma curva acentuada de torque, a NSR500 era um equipamento complicado para pilotar.

Na temporada de 92 a Honda mudou a temporização dos disparos introduzindo a característica “Big Bang”, resultando em menor potência em alta rotação, mas melhorando a dirigibilidade. O talento de Doohan já era reconhecido, classificou-se em segundo na temporada anterior nove pontos atrás do campeão Wayne Rainey.  Um acidente na primeira prova (GP do Japão em Suzuka) quebrou a perna de seu colega de equipe, o também australiano Wayne Gardner (Campeão de 1987) e a Honda focou todas as suas atenções em Doohan. Nas primeiras 7 provas de uma temporada de 13 GPs, o australiano com 5 vitórias e 2 segundos lugares abriu 65 pontos de vantagem sobre a Yamaha do então bicampeão mundial, o americano Wayne Rainey.

Então aconteceu. Nos testes livres do GP da Holanda em Assen, a Catedral da Motovelocidade, Doohan depois de uma primeira queda sem consequências, voltou para a pista e sofreu um highside, um acidente onde o piloto é projetado da moto e resultou em uma fratura na tíbia direita. O atendimento no hospital holandês foi desastroso e um princípio de gangrena comprometeu sua perna, o diagnóstico para o piloto recomendou a amputação. Doohan foi transferido para uma clínica na Itália já com diversos órgãos entrando em colapso devido à pouca circulação no membro sinistrado, o risco de amputação evoluiu para risco de vida.

O piloto foi submetido a uma cirurgia inovadora, o médico italiano Claudio Costa utilizou o sistema de irrigação da perna esquerda para revitalizar a direita, Doohan ficou com as duas pernas costuradas por 14 dias, a circulação foi restabelecida, entretanto a funcionalidade do seu membro direito foi irremediavelmente comprometida.

O piloto perdeu quatro etapas da temporada, seu retorno no GP do Brasil foi feito em circunstâncias altamente desfavoráveis. Interlagos é um ícone na Fórmula 1, porém o circuito não estava adequado para as 500cc apesar de uma chicane ter sido construída na curva do Café, o piso estava muito ondulado e os muros da reta dos boxes muito próximos da pista. Os principais pilotos, entre eles Wayne Rainey, Eddie Lawson e o próprio Mick Doohan pressionaram pelo cancelamento da prova que, se efetivado, garantiria o título da temporada para o australiano, entretanto os interesses comerciais prevaleceram e a corrida foi mantida.

Michael Doohan chegou em São Paulo em uma cadeira de rodas e com a musculatura das pernas pouco desenvolvida devido a prolongada ausência de exercícios. O piloto ocultou dos responsáveis que sua perna direita não estava recuperada, não sentia absolutamente nada do joelho para baixo. Ele participou de uma corrida em um circuito desfavorável para motos, com um clima hostil (humidade) e com uma perna só. O 12° lugar no Brasil e o 6° na última etapa não foram suficientes para acompanhar a pontuação de Wayne Rainey, que com sua Yamaha conquistou o terceiro título consecutivo.

Doohan ainda estava em processo de recuperação da funcionalidade da perna, que continuava sem sensibilidade do joelho para baixo durante a maior parte da temporada de 93. Foi o ano de estreia de Alex Barros na moto GP e do trágico acidente de Wayne Rainey, que o colocou definitivamente em uma cadeira de rodas. Kevin Schwantz foi o campeão encerrando o ciclo de ouro dos pilotos americanos, o australiano foi o quarto colocado e conseguiu uma vitória no GP de San Marino. A falta de mobilidade do tornozelo direito impedia o uso correto do freio traseiro e a Honda improvisou um controle com acionamento do polegar esquerdo, alterando a técnica de pilotagem da moto. Óbvio, houve quem alegasse que o freio traseiro controlado pela mão era uma vantagem indevida, reclamação desconsiderada pela FIM porque o regulamento da competição era omisso nesta área e todos poderiam replicar a inovação.

A temporada de 1994 encontrou o piloto melhor adaptado às suas limitações, a Honda convocou o espanhol Alex Crivillé para ser seu companheiro de equipe, Doohan arrasou a concorrência conquistando 317 pontos contra 174 do segundo colocado, a Yamaha de Luca Cadalora. Venceu 9 vezes em 14 provas, seu companheiro de equipe somou apenas 144 pontos sem nenhuma vitória.

Michael Doohan pilotou para a Honda durante toda a sua permanência no Mundial de Motociclismo. Conquistou cinco mundiais seguidos, de 94 a 98, todos com uma larga margem de pontos. Seu comportamento na pista sempre foi pilotar no limite, houve provas em que venceu com mais de 30 segundos de vantagem sobre o segundo colocado. Em 1999 acidentou-se no terceiro GP da temporada, Espanha, e abandonou as pistas.

As estatísticas de Mick Doohan são impressionantes, nos campeonatos da FIM competiu exclusivamente na 500cc, participou de 137 provas com 54 vitórias, 95 pódios, 58 poles e 46 voltas mais rápidas. Acumulou em sua carreira 2.283 pontos.

A Honda manteve o título de 99 com Alex Crivillé e foi derrotada em 2000 pela Suzuki de Kenny Roberts Jr. A fábrica retornou ao topo do mundial em 2001 com um italiano que viria a ser o maior ídolo do motociclismo esportivo de todos os tempos.



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