O GP da Fórmula 1 no circuito do Estoril em 1985 foi disputado abaixo de mau tempo. Desde aquela ocasião as casas de apostas de Londres passaram a adotar como regra “devolver” as apostas em Ayrton Senna quando a previsão do tempo indicava chuva para o horário da prova. Devolver significava pagar £1,01 por cada libra apostada, era o reconhecimento formal da capacidade do piloto em controlar o equipamento na chuva. Onze anos depois, em 1996, Damon Hill e Jacques Villeneuve dominavam a F1 com os Williams Renault, os melhores carros das pistas. Os F310 da Ferrari, apelidados de “banheirão”, em condições normais não eram páreo para os FW18 da equipe britânica. Então aconteceu o GP da Espanha, sétima corrida da temporada, com a pista em péssimas condições. O clima chuvoso nivelou os carros e o talento de Michael Schumacher fez a diferença. Em pistas molhadas vale a capacidade dos pilotos.
Os exemplos citados foram portados da F1, porém podem ser
aplicados se nenhuma chance de erro na MotoGP. O clima hostil separa os
verdadeiros pilotos dos bons condutores.
Para quem costuma imaginar que uma etapa da MotoGP (inclui Moto2
& Moto3) implica em pouco mais de algumas horas confortavelmente sentados
em frente a uma TV, não imagina o trabalho insano que é preparar um par de protótipos
para um fim de semana. As condições em que acontece um evento nunca são iguais.
Mesmo quando o circuito hospeda um GP em anos seguidos, as condições da
pista nunca se repetem, como pode ser observado na temporada passada no
Circuito da Américas em Austin, onde o asfalto deteriorou, ou no desastre em Silverstone
em 2018.
Todos os aspectos da pista e dos equipamentos são analisados, permitindo
que os mecânicos configurem as motos de acordo com as condições do piso e preferências
de cada piloto. O clima, mesmo com todo o avanço científico na análise das previsões,
ainda pode reservar surpresas inesperadas.
Se existe a previsão de chuva para o fim de semana as equipes configuram
dois equipamentos, um para piso molhado e um para piso seco. Planejar detalhes
como a alocação de pneus é o mais fácil. Porém, mesmo que os fatores climáticos
indiquem com razoável certeza como o tempo deve se comportar, a
imprevisibilidade sempre existe. Em Phillip Island, por exemplo, pela
proximidade do oceano o clima muda de forma imprevisível em pouco mais de 15
minutos. Esta inconstância também existe em Silverstone e em outros circuitos
do calendário. Em caso de mau tempo repentino, as equipes têm competência para
ajustar uma moto para o seco ou molhado em menos de 5 minutos.
O roteiro para reconfigurar o equipamento inclui trocar pneus, freios, amortecedores,
molas, reequilibrar a moto, adequar o software eletrônico e uma pequena
alteração na carenagem na parte inferior, removendo receptores que servem o
para evitar derramamento de óleo em caso de falha técnica, para não acumular
água.
Embora as mudanças óbvias enderecem pneus e freios, as outras que não
comentadas com frequência são igualmente importantes. A suspensão e o
amortecedor na frente são trocados. A troca da parte traseira é mais complexa, requer
muito mais trabalho e só é possível no curto espaço de tempo se a equipe já
tiver um sistema traseiro todo configurado e pronto para ser instalado. Isto só
acontece com os equipamentos das equipes oficiais de fábrica (orçamentos mais
robustos). O protótipo exige um reequilíbrio, um processo delicado que é realizado
por um profissional qualificado, essencial para um bom desempenho na pista. Um
especialista em eletrônica atualiza os parâmetros da ECU e IMU (o núcleo do
software é padronizado).
Suspensão dianteira
Até recentemente, chuva indicava o retorno para os discos de freios de aço
inoxidável, porque a eficiência dos freios de fibra de carbono requer uma
janela de temperatura muito estreita. Esta limitação foi removida graças aos
avanços tecnológicos realizados pela Brembo, fornecedora de todos os
fabricantes. Os pilotos podem optar manter
os discos de carbono, mas as pastilhas devem ser trocadas por peças mais
eficientes de acordo com as condições do tempo. Caso a equipe decida reverter
para os discos de aço, requer uma mudança completa do sistema, incluindo as
pinças e drenagem do sistema hidráulico.
Os pneus para piso molhado têm o mesmo processo de fabricação dos pneus slick (para pista seca). Uma seleção de compostos é desenvolvida pela Michelin considerando as condições para melhor desempenho em pistas secas ou molhadas, podem ser simétricos ou assimétricos dependendo do layout do circuito. As opções para piso molhado normalmente são variações de pneus macios. Os compostos para tempo úmido normalmente têm ranhuras porque, embora a superfície de contato com a pista seja mínima (menor que um cartão de crédito), pode ocorrer o fenômeno de aquaplanagem.
Muitas outras coisas podem acontecer quando
autorizada uma largada com chuva. Atrasos, a corrida pode ser interrompida, reiniciada
ou até ser encurtada. Ouve até um caso, GP da Inglaterra de 2018, que foi
cancelado por absoluta impraticabilidade da pista. Quando isto acontece todos
perdem, pilotos que não podem competir, equipes que investiram em transporte e
infraestrutura, patrocinadores que não obtém retorno publicitário e equipes de
TV que reservaram canais internacionais.
Quando uma prova é declarada pelo diretor como pista molhada (Wet Race),
usualmente permite a troca de equipamento porque o desgaste dos componentes tende
a ser é mais acentuado. O público e os pilotos são informados por bandeiras
brancas nos postos dos comissários de pista. Os pilotos são então autorizados para
entrar nos boxes e trocar de equipamento, o mesmo acontece caso tenham iniciado
a corrida no molhado e a pista secar ou vice versa. Este procedimento é chamado
de Flag-to-Flag.
A condição de pista molhada é indicada claramente pela direção da prova
por uma placa classificando a prova de “Wet Race”. Neste caso todos iniciam com
configuração para pista molhada.
Diversas provas já foram decididas na troca de equipamentos. O GP de
Brno em 2017 foi declarado como Wet Race e todos os pilotos começaram com pneus
de chuva. A pista secou rapidamente e os pilotos começaram a entrar no pit para
trocar de moto. A Honda havia preparado para Márquez um protótipo para molhado
e um segundo para tempo seco, a Ducati teve de se manter seus pilotos na pista
enquanto o box readequava a sua segunda moto. Márquez venceu a prova.
Pode acontecer que uma prova declarada para pista seca e, depois de
iniciada, começar a chover. Neste caso a direção de prova mostra a bandeira
branca permitindo que os boxes reabram para a troca de motos.
Uma prova pode ser retardada se houver uma indicação clara de mudança rápida
do tempo. Neste caso os pilotos permanecem nos boxes para os ajustes
necessários, a formação do grid e a volta de apresentação são mantidas. Caso um
equipamento não consiga ser preparado a tempo, o condutor deve permanecer no
box e largar do pit lane depois que o último competidor passar.
O Regulamento Geral da competição cobre qualquer omissão com a seguinte cláusula:
"As
condições climáticas e sua gravidade nunca podem ser previstas com precisão de
modo a cobrir todas as possíveis ocorrências. A Direção de Corrida pode reagir
a situações específicas emitindo instruções diferentes. Todas as instruções
serão exibidas nos monitores de cronometragem e as equipes serão informadas
pela equipe do IRTA"
O texto dessa regra permite que a direção da corrida tome qualquer decisão necessária para garantir a segurança dos pilotos e espectadores. Foi o que aconteceu em Rio Hondo, 2018. Todos os pilotos voltaram aos boxes depois da volta de apresentação, com exceção de Jack Miller, que ficou isolado no grid. Como era impossível garantir a segurança de 22 pilotos largando do pit lane, a direção da prova optou por um tipo de distanciamento social, Miller largou com uma vantagem de 50m.
Se durante uma prova o tempo tornar impraticável a sua continuidade, uma
bandeira vermelha pode ser acionada. Os competidores devem voltar aos boxes e,
se as condições melhorarem, um procedimento de largada rápida (sem volta de
aquecimento) pode ser realizado. Pode acontecer algum imprevisto que provoque a
entrada do safety car, a MotoGP utiliza dois veículos, um para atender a
ocorrência e um segundo para manter os pilotos em uma velocidade segura. Há
também a possibilidade de a corrida ser encurtada para apenas dois terços de
seu comprimento original. Quando a bandeira vermelha é acionada e a prova não
puder ser reiniciada, se mais de três quartos da corrida tiverem sido
disputados a contagem de pontos é integral.
Em raras circunstâncias, o evento é cancelado. Aconteceu na etapa da
Inglaterra 2018, chegou a ser aventada a possibilidade de postergar o evento
pata a segunda feira, mas não foi possível.