domingo, 28 de junho de 2020

F1 - 1994, o ano que não deveria ter existido








Ayrton Senna acompanhando a cobertura do acidente de Roland Ratzenberger



Frank Williams foi, na concepção de Enzo Ferrari, um garagista, um construtor de monopostos Fórmula 1 que não produzia seus próprios motores. Comandando a equipe Williams tinha hábitos peculiares, por exemplo, as vitórias nos mundiais nunca eram mérito dos pilotos, seus carros eram os principais protagonistas responsáveis pelos sucessos. A Williams não tinha o hábito de renovar com pilotos campeões, foi assim com Nelson Piquet em 1987, Nigel Mansell em 1992 e repetiu com Alain Prost em 1993. Em 1994 a equipe realizou um sonho antigo e contratou Ayrton Senna. A equipe Williams sempre trabalhou com os melhores técnicos e engenheiros mais criativos, faltava o melhor piloto. Seu carro em 1993 era equipado com o auge da tecnologia em competições, tinha implementado o controle de tração, controle de largada, suspensão ativa, freios ABS e câmbio automático. O Williams Renault FW15C era um carro imbatível.



A FIA percebeu que a diferença tecnológica estava destruindo a competitividade e, por extensão, o esporte. Optou por uma decisão radical, proibir todos os auxílios eletrônicos a partir de 1994. A temporada teria o retorno do reabastecimento, uma maneira artificial de provocar mudanças de posições nas corridas.



O FW16 nasceu errado, os engenheiros da Williams não conseguiram desenvolver um projeto equilibrado com um chassi convencional, segundo o próprio Senna o carro era extremamente complicado para guiar. Por outro lado, algumas equipes conseguiram produzir bons carros, como era o caso da Benetton com o modelo B194, que era conduzido por Michael Schumacher.



Na primeira etapa da temporada, o GP Brasil, Senna conseguiu a pole e liderou o primeiro trecho da corrida, mas foi ultrapassado nos boxes pelo piloto da Benetton durante um pit-stop de reabastecimento. Tentando recuperar a ponta exagerou, rodou sozinho e abandonou. O alemão venceu a prova.



A segunda etapa foi realizada no circuito de Aida no Japão, o chamado GP do Pacífico. Ayrton Senna conseguiu a sua segunda pole, mas durou pouco na prova, ao disputar a primeira curva foi tirado da pista por Mika Hakkinen e depois abalroado por Nicola Larini. Schumacher venceu mais uma. A nota positiva da prova foi o primeiro pódio de Rubens Barrichello com uma Jordan


Circuito de Ainda - 1994



Então chegou o fatídico GP de San Marino, disputado no circuito de Ímola na Itália. A terceira etapa foi marcada pelo acidente que vitimou Rubens Barrichello na sexta-feira, pela morte de Roland Ratzenberger no dia seguinte e o acidente que causou o óbito de Ayrton Senna durante a prova no domingo.

 


Rubens Barrichello sofreu o pior acidente de sua carreira ao perder o controle da sua Jordan na chamada Variante Baixa do circuito, o carro decolou após tocar numa zebra, bateu na barreira de pneus e nas telas de proteção antes de capotar O piloto foi prontamente socorrido. 

Rubens Barrichello – Ímola 1994



O austríaco Roland Ratzenberger é lembrado por ter sido o primeiro piloto a sofrer um acidente fatal em um final de semana da Formula 1 desde o GP do Canadá em 1982, quando ocorreu o óbito de Ricardo Paletti. Mais de oito passaram desde que Elio de Angelis sofreu um acidente fatal enquanto participava de uma seção privada de testes da Brabham no circuito de Paul Ricard em 1986. No treino de qualificação em Ímola, Roland Ratzenberger fazia uma volta rápida quando perdeu a asa dianteira do seu Simtek na entrada da curva Villeneuve, o carro descontrolado bateu contra um muro a 314,9 km/h. Sua morte foi anunciada oito minutos após o piloto ter dado entrada no Hospital Maggiore de Bolonha. Como o show não pode parar, após o acidente a Simtek anunciou que não iria se retirar da prova, alegando que Roland gostaria que seu companheiro de equipe David Brabham participasse da corrida.  Em relação a este acidente houve uma grande controvérsia, a discussão se concentrou na determinação da hora e local do óbito de Ratzenberger. Os organizadores da corrida e da FIA alegaram que ele foi levado ainda com vida para Bolonha, enquanto os investigadores garantem que, pelos danos causados, ele teve morte instantânea ou, no máximo, ainda nas dependências do circuito de Ímola. Segundo as leis italianas, se um atleta morrer durante uma ocorrência esportiva, o evento deve ser cancelado e todo o complexo desportivo colocado à disposição dos peritos até o final da investigação, que pode durar meses ou anos. Se isso tivesse acontecido, o acidente do dia posterior que vitimou Ayrton Senna seria evitado.



Syntek de Roland Ratzenberger – Ímola 1994

Antes da terceira corrida do ano, Senna declarou que esta deveria ser sua corrida de início da temporada, pois não havia terminado as anteriores Conquistou mais uma vez a pole, mas estava particularmente preocupado com dois eventos: Um deles, na sexta-feira, durante a sessão de qualificação da tarde o piloto tupiniquim Rubens Barrichello foi vitimado por um grave acidente, sofreu pequenas escoriações e quebrou o nariz, o suficiente para ser impedido de correr no domingo. Senna visitou o colega no hospital do circuito, mas foi obrigado a pular um muro depois de ser impedido pelos médicos. Ficou impressionado e saiu convencido de que as normas de segurança deveriam ser revisadas. O segundo ocorreu no sábado, durante os treinos livres, quando Ratzemberger morreu em um acidente que começou a ser causado na curva Tamburello,  quando a asa dianteira de seu carro se soltou. Senna contrariou as recomendações da FIA e convenceu os oficiais de pista a permitir que visitasse o local do acidente. Esta  ousadia lhe custou mais uma advertência e maior desgaste na sua atribulada relação com a FIA (que até o ano anterior era presidida por Jean-Marie Balestre).



Senna passou parte da manhã de domingo reunido com outros pilotos, determinado a recriar a antiga Comissão de Segurança a fim de melhorar as condições de disputa na F1. A largada do GP foi desastrosa, a Benetton de J.J. Letho apagou o motor, forçando os outros pilotos a fazerem manobras evasivas, Pedro Lamy (Lotus) não conseguiu e bateu forte na traseira do carro parado,  provocou a entrada do safety-car por cinco voltas para liberar a pista. O acidente causou ferimentos sem gravidade em 4 espectadores, que foram atingidos por destroços. Na sexta volta a corrida foi reiniciada, na abertura do sétimo giro Senna estava fazendo os melhores tempos, porém passou reto na curva Tamburello, a mesma que assistiu a batida de Nélson Piquet (Williams) em 1987 e de Gerhard Berger (Ferrari) em 1989. Piquet costumava definir a antiga curva Tamburello (o traçado foi modificado) como uma “reta torta”, que os pilotos costumavam fazer com o pé embaixo. A telemetria informa que depois de perder o controle do carro Senna ainda conseguiu reduzir de 300 km/h para 200 km/h em milésimos de segundo. O socorro foi rápido, mas não havia mais nada a ser feito. Mais tarde foi encontrada no carro de Senna uma bandeira austríaca, o
piloto pretendia, em caso de vitória, homenagear Ratzenberger. 



Ayrton Senna – Ímola 1994


Talvez a palavra mais concisa para descrever o GP de San Marino de 1994 seja “baderna”. Além dos acidentes de Barichello, Ratzenberger e Senna, a batida de Pedro Lamy na largada arremessou dois pneus para as arquibancadas, ferindo espectadores. Michele Alboreto (Minardi) perdeu um pneu na saída dos boxes e atorpelou mecânicos da Ferrari e da Lotus. Logo depois do acidente de Senna as comunicações no circuito entraram em colapso, Érik Comas (Larrousse) não foi informado que a corrida tinha sido paralizada e por detalhe não abalroou o helicóptero que se encontrava pousado no asfalto da pista aguardando para levar Senna ao hospital. A emissora do Jardim Botânico, que tem o monopólio das transmissões de TV para Pindorama, criou mais uma frase emblemática que ficou armazenada no histórico das transmissões da Fórmula 1 para o país. Roberto Cabrini anunciou por telefone em uma edição extraordinária direto do hospital em Bolonha: “Morreu Ayrton Senna da Silva... Uma notícia que a gente nunca gostaria de dar”.

Os resultados do GP de San Marino acenderam um alarme nos organizadores da F1, os carros ficaram muito instáveis sem o auxílio eletrônico, recursos foram adotados para reduzir a velocidade. As equipes foram instruídas que a partir do GP da Espanha teriam limitações nas asas dianteiras e difusores, no GP do Canadá deveriam apresentar reforços nas laterais e suspensões, e na Alemanha teriam que usar asas traseiras menores e uma prancha de madeira na parte inferior e aumentar a distância do chão e reduzir a pressão aerodinâmica. 
A primeira metade de 1994 foi o início de temporada dos sonhos para a Benetton, seis vitórias e um segundo lugar em sete provas. O que parecia ser um passeio no parque em um domingo ensolarado mudou radicalmente no restante do campeonato.

Começou com desconfianças que algumas equipes ainda utilizavam recursos eletrônicos. Nicola Larini comentou em Aida (GP do Pacífico) que a Ferrari não tinha desativado o controle de tração, a FIA investigou, detectou a violação às regras e mandou a equipe remover o componente, não houve punições. No GP em Ímola a FIA requisitou as centrais eletrônicas dos três primeiros colocados, Schumacher (Benetton), Larini (Ferrari) e Hakkinen (McLaren). O componente da Ferrari foi aprovado sem restrições, a McLaren de Hakkinen apresentou um câmbio automático não permitido e a Benetton de Schumacher incluía uma opção oculta de controle de largada. A equipe explicou que era um resquício do software antigo e que não era usado. McLaren e Benetton sofreram apenas punições financeiras. Algum tempo mais tarde (2011) Jos Verstappen (suposto pai do Max, pela tradição judaica maternidade é fato, paternidade é hipótese) afirmou que o carro de Schumacher não era igual ao seu, sem especificar exatamente qual a diferença. 

No GP da Inglaterra o alemão ultrapassou o pole Damon Hill na volta de apresentação, os comissários o penalizaram com um stop-and-go. O box orientou para que o piloto não cumprisse a punição e três voltas mais tarde Schumacher recebeu a bandeira preta (desclassificação). O alemão então cumpriu a pena inicial e voltou para a prova, classificando-se em 2º lugar. O GP foi vencido por Damon Hill, Schumacher chegou a comemorar a 2ª colocação no pódio, porém foi posteriormente desclassificado. A arrogância de Flávio Briatore ao orientar que o piloto não cumprisse a primeira penalização saiu caro, a Benetton foi multada em US$ 500 mil, Schumacher além da desclassificação foi suspenso por duas provas, Espanha e Portugal.


No GP da Alemanha nova polêmica, a Benetton de Jos Verstappen incendiou durante o reabastecimento, a equipe havia retirado os filtros para a gasolina chegar mais rápida ao tanque. Muitos lembraram que no primeiro GP do ano Schumacher ultrapassou Senna justamente por ter feito um reabastecimento bem mais rápido. Todas as equipes utilizavam no reabastecimento os equipamentos de uma única fornecedora, a Intertechnique, que havia enviado uma carta para a Larrousse autorizando a retirada dos filtros. Foi a defesa alegada pela Benetton e também desta vez não houve punições.

Fogo na Benetton de Jos Verstappen – Alemanha 1994

O GP da Bélgica terminou com a vitória do alemão, que foi mais uma vez desclassificado. A vistoria depois da prova indicou que o carro tinha uma distância do chão inferior à permitida. A equipe alegou que o assoalho do carro tinha sido danificado em uma saída de pista, explicação que não foi aceita pelos comissários e a desclassificação mantida.


Todos estes infortúnios de Schumacher conduziram a uma situação inesperada, na última etapa da temporada na Austrália ele chegou com apenas um ponto de diferença sobre o britânico Damon Hill. Liderou a prova até a volta 36 quando escapou da pista. Com um retorno atabalhoado atropelou a Williams de Hill, que estava em segundo, ambos os carros ficaram danificados e tiveram que abandonar, permitindo o primeiro mundial de Michael Schumacher. Honrando a fleugma britânica (espécie de frieza ante as adversidades), Hill recusou acusar o alemão de ter provocado o acidente considerando o ocorrido como normal em competições.

Michael Schumacher joga o carro sobre Damon Hill – Austrália 1994
Nunca antes na história da F1 um piloto conseguiu ser campeão apesar de ser penalizado em 4 provas. Foi um final desanimador para uma temporada que, para muitos, não deveria ter existido.

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