domingo, 7 de fevereiro de 2016

MotoGP - Honda Nunca Segue o Caminho Mais Fácil


Muitos acreditam que os indicadores mais importantes dos testes pré-temporada são os tempos por volta. Estes números são analisados em detalhes ​​pelos “especialistas” que tentam antever os acontecimentos da próxima temporada, assim como adivinhos acreditam que podem prever o futuro pela leitura de cartas, borra de café ou entranhas de um pombo.
Para os engenheiros os tempos de voltas individuais em pré-temporadas não significam muita coisa. Os testes no início de fevereiro Sepang registraram as máquinas oficiais da Yamaha como as mais rápidas, enquanto os técnicos e projetistas da Honda ficavam confinados nos boxes ajustando a RC213V para a sexagésima oitava temporada da MotoGP.
Os registros dos tempos por volta ao final dos três dias de treino não proporcionaram conforto à HRC, seu principal piloto Marc Márquez ficou a quilométricos 1,2 segundos atrás de Jorge Lorenzo. O estilo suave do atual campeão parece melhor adequado a um cenário de menos aderência e menor influência da eletrônica. Para a imprensa o fato de Valentino Rossi ficar a quase um segundo do companheiro de equipe não pareceu muito significativo, as dificuldades da Honda é que monopolizaram as manchetes.

A HRC parece sempre apostar em obter os melhores resultados trilhando o caminho mais difícil, enquanto seus adversários diretos, Yamaha e Ducati, optaram por motores mais comportados com resposta mais comedida, adequados a um pacote de eletrônica mais simples, a Honda continua a buscar mais potência. Na beira da pista o ruído da passagem de um M1 ou GP16 pode ser confundido com uma moto de rua barulhenta, um RCV é assustador, aparenta estar indócil, rosnando, rangendo os dentes.
O motor Honda tem quatro cilindros dispostos em V com um ângulo de 90 graus, solução encontrada para evitar perda de energia devido a vibrações. O V4 de 90 graus maximiza a geração de potência, que resulta em maior dificuldade de controle. A moto tem resposta excelente em retas, mas é complicada nas curvas, com respostas agressivas demais. Até o ano passado a Honda utilizou software para contornar esta dificuldade, construiu motos com sinergia perfeita entre motor, chassis e eletrônica da era espacial. Foi a primeiro fabricante a enveredar por este caminho, obteve ótimos resultados, no entanto este ano teve que jogar todo este trabalho no lixo e adaptar-se a um software menos evoluído. Em Sepang o vice-presidente da HRC, Shuhei Nakamoto, declarou que “O software unificado é semelhante ao que utilizamos dez anos atrás". Sua irritação é compreensível, Nakamoto está no negócio para construir motos mais evoluídas que os modelos anteriores e agora está rebobinando seus conhecimentos para produzir um motor em 2016 compatível com uma configuração eletrônica de 2006.
A pergunta que se impõe é óbvia: O regulamento e a especificação do software são conhecidos desde o início da temporada passada, por que a Honda não seguiu o caminho dos outros fabricantes?

Historicamente a fábrica desenvolve soluções próprias, não segue exemplos exitosos de concorrentes. Sua história no motociclismo esportivo é fazer sempre as coisas à sua maneira, frequentemente tem sucesso, às vezes não funciona. A Honda acredita que corridas tem um valor para o desenvolvimento de tecnologia maior que os resultados de exibição da marca. Utiliza as pistas para apreender, não exclusivamente para vencer. Soichiro Honda costumava afirmar que se aprende mais perdendo que ganhando. Quando a Honda tem um problema nem sempre segue a maneira mais fácil ou mais sensata, costuma procurar novas soluções, tentando técnicas ainda não experimentadas. Em síntese, o que move a fabricante japonesa é tentar fazer o que ninguém mais tentou.

Tudo começou na década de 1960, enquanto Suzuki e Yamaha empilhavam títulos mundiais com os seus motores de dois tempos, a Honda se manteve fiel às raízes com os de quatro tempos. Construíram motores fantásticos como um 250cc de seis cilindros, 125cc de cinco cilindros e um 50cc de dois cilindros, todos com mais de 20.000rpm. O RC115 50cc que alcançava 22.000 rpm e produzia 280 HPs por litro, mais que uma máquina de MotoGP atual, foi concebido em 1966.

Quando a FIM anunciou em 1968 uma nova regulamentação limitando os motores em quatro cilindros e 500cc, a disputa com os dois tempos ficou muito desigual e a Honda retirou-se das competições e concentrou seus esforços em automóveis.  No final da década de 70 anunciou que iria voltar às provas de motos, insistindo nos quatro tempos. Os motores de dois tempos ainda apresentavam muitas vantagens, então o fabricante decidiu compensar com tecnologia. Uma vez que um motor convencional de quatro cilindros e quatro tempos nunca poderia produzir a mesma potência que um dois tempos, a Honda aumentou a área das válvulas. O regulamento da época permitia até quatro câmaras de combustão, a Honda projetou um V8 de 32 válvulas, com quatro pares de câmaras de combustão ligados, um motor inovador com quatro cilindros em forma oval. Os cilindros ovais permitiram espaço para 32 válvulas e oito velas de ignição, as mesmas de um motor de oito cilindros, enquanto permanecia dentro do limite da regra de quatro cilindros. Outra inovação utilizada no NR500 foi sua estrutura monochoque, que envolveu o motor como um casulo de aço e ajudou a reduzir o peso.  Em um esforço para reduzir o arrasto, baixar o centro de gravidade e reduzir as forças giroscópicas, a moto foi equipada com rodas de 16 polegadas em vez das tradicionais de 18 pol dos outros competidores. O NR500 nunca se classificou entre os “top ten” em uma prova oficial.

O fracasso do NR, explorado pela mídia que interpretou o acrônimo NR como “Never Ready”, não mudou o modo de pensar da Honda. No início dos anos 80 os GPs de 500cc eram dominados pelas motos da Yamaha 4 cilindros e Suzuki 4 cilindros, ambos com válvulas rotativas e chassi de alumínio. Depois do fracasso embaraçoso do NR o sensato seria a Honda utilizar a mesma tecnologia comprovada e confiável com que os concorrentes estavam vencendo provas. Não foi o caminho seguido, a empresa decidiu apostar em um motor de dois tempos, três cilindros, com estrutura de aço e alimentado por válvulas de palhetas. O novo motor, NS500, foi recebido com descrença pelos especialistas, era inconcebível um três cilindros ser mais competitivo que um quatro cilindros, porém seu desempenho foi suficiente para conduzir Freddie Spencer ao título mundial de 1983. Quando faltou espaço para aumentar a potência, a Honda partiu para um quatro cilindros, mas seguiu inovando, em vez de construir um motor convencional com duas manivelas (twincrank), optou por uma única manivela, com todos os problemas decorrentes da falta de balanceamento.

A criatividade também foi empregada na criação do chassi, o NS500 versão 1984 deslocou o tanque de combustível para baixo do motor e migrou o sistema de exaustão para cima. Para os engenheiros da fábrica era uma ideia razoável porque em automóveis um centro de gravidade baixo ajuda na velocidade final, entretanto o modo como o momento de inercia trabalha nas motos é diferente e o “monstrengo” nasceu fadado ao fracasso. Novamente a HRC tinha aprendido alguma coisa, para 1985 mudou o chassi para um desenho mais convencional e em 1992 inovou criando uma moto aerodinâmica extremamente fácil de pilotar, que conquistou em sete campeonatos entre1994 e 2001. 

Em 2002 a FIM em associação com a Dorna alteraram o regulamento de modo radical, o campeonato passou a ser chamado MotoGP, disputado exclusivamente por protótipos e a especificação do motor contemplou dois tempos 500cc ou quatro tempos 990cc. A Honda manteve nas pistas o NS500 (dois tempos) e introduziu o RC211V, quatro cilindros e quatro tempos. Os NS500 foram abandonados durante a temporada por não terem condições de acompanhar os quatro tempos, um dos pilotos que trocou de motor com o campeonato em andamento foi o brasileiro Alex Barros, que recebeu uma RC211V para as quatro últimas provas da temporada, venceu duas e conseguiu um segundo e um terceiro lugar. A Honda garantiu para Valentino Rossi dois campeonatos mundiais (2002 & 2003) e nestes anos venceu 27 das 32 corridas disputadas.

É importante lembrar a história da Honda e sua filosofia de trabalho ao analisar o desempenho do RC213V nos testes de Sepang. Alguns sugerem que a fábrica tenha relaxado no ano passado, confiando demais nos bons resultados de 2013 e 2014.

Uma análise despretensiosa do que ocorreu durante os testes indica que os dois pilotos da equipe oficial trabalharam com agendas diferentes, um preocupado com a relação entre motor & eletrônica e outro com pneus e distribuição de peso. O fato da fábrica não estar preocupada com tempos de voltas ficou evidenciado por uma declaração de Marc Márquez que poderia arriscar mais para ser mais veloz, mas não era o caso. Para corroborar esta afirmação existe o fato de ele, que frequentemente excede os limites, não ter caído nenhuma vez durante o fim de semana. Dani Pedrosa também não pareceu preocupado com melhores voltas, Cal Crutchlow pilotando uma Honda satélite sem evolução obteve tempos melhores.

O maior problema é que, embora a Honda tenha o motor mais potente e mais selvagem da MotoGP, os seus esforços para controlar esta agressividade na entrega de torque utilizando sua vasta experiência estão comprometidos pela regulamentação rigorosa da competição. As chamadas regras de corte de custos buscam privilegiar o espetáculo proporcionando mais competidores e maior competitividade, em detrimento ao principal objetivo da Honda, o desenvolvimento de tecnologia.

Estas regras são conhecidas desde o início do ano passado, ou seja, não são nenhuma surpresa.  O início do campeonato se aproxima e é trabalho da Honda utilizar todos os seus recursos de engenharia para, dentro das regras, obter o melhor resultado.

A HRC tem pouco mais de cinco semanas antes de os motores serem selados na véspera da prova de abertura no Qatar. Será que a Honda tem algum coelho escondido na cartola?



(Original de Mat Oxley publicado em 03 de fevereiro na MotoSport Magazine, traduzido e adaptado por Carlos Alberto Goldani)

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