Muitos
acreditam que os indicadores mais importantes dos testes pré-temporada são os
tempos por volta. Estes números são analisados em detalhes pelos
“especialistas” que tentam antever os acontecimentos da próxima temporada,
assim como adivinhos acreditam que podem prever o futuro pela leitura de cartas,
borra de café ou entranhas de um pombo.
Para os
engenheiros os tempos de voltas individuais em pré-temporadas não significam
muita coisa. Os testes no início de fevereiro Sepang registraram as máquinas
oficiais da Yamaha como as mais rápidas, enquanto os técnicos e projetistas da
Honda ficavam confinados nos boxes ajustando a RC213V para a sexagésima oitava
temporada da MotoGP.
Os registros
dos tempos por volta ao final dos três dias de treino não proporcionaram
conforto à HRC, seu principal piloto Marc Márquez ficou a quilométricos 1,2
segundos atrás de Jorge Lorenzo. O estilo suave do atual campeão parece melhor
adequado a um cenário de menos aderência e menor influência da eletrônica. Para
a imprensa o fato de Valentino Rossi ficar a quase um segundo do companheiro de
equipe não pareceu muito significativo, as dificuldades da Honda é que
monopolizaram as manchetes.
A HRC
parece sempre apostar em obter os melhores resultados trilhando o caminho mais
difícil, enquanto seus adversários diretos, Yamaha e Ducati, optaram por
motores mais comportados com resposta mais comedida, adequados a um pacote de eletrônica
mais simples, a Honda continua a buscar mais potência. Na beira da pista o
ruído da passagem de um M1 ou GP16 pode ser confundido com uma moto de rua
barulhenta, um RCV é assustador, aparenta estar indócil, rosnando, rangendo os
dentes.
O
motor Honda tem quatro cilindros dispostos em V com um ângulo de 90 graus,
solução encontrada para evitar perda de energia devido a vibrações. O V4 de 90
graus maximiza a geração de potência, que resulta em maior dificuldade de
controle. A moto tem resposta excelente em retas, mas é complicada nas curvas, com
respostas agressivas demais. Até o ano passado a Honda utilizou software para
contornar esta dificuldade, construiu motos com sinergia perfeita entre motor,
chassis e eletrônica da era espacial. Foi a primeiro fabricante a enveredar por
este caminho, obteve ótimos resultados, no entanto este ano teve que jogar todo
este trabalho no lixo e adaptar-se a um software menos evoluído. Em Sepang o
vice-presidente da HRC, Shuhei Nakamoto, declarou que “O software unificado é semelhante
ao que utilizamos dez anos atrás". Sua irritação é compreensível, Nakamoto
está no negócio para construir motos mais evoluídas que os modelos anteriores e
agora está rebobinando seus conhecimentos para produzir um motor em 2016 compatível
com uma configuração eletrônica de 2006.
A pergunta que se impõe é óbvia: O regulamento e a
especificação do software são conhecidos desde o início da temporada passada, por
que a Honda não seguiu o caminho dos outros fabricantes?
Historicamente a fábrica desenvolve soluções próprias, não
segue exemplos exitosos de concorrentes. Sua história no motociclismo esportivo
é fazer sempre as coisas à sua maneira, frequentemente tem sucesso, às vezes
não funciona. A Honda acredita que corridas tem um valor para o desenvolvimento
de tecnologia maior que os resultados de exibição da marca. Utiliza as pistas
para apreender, não exclusivamente para vencer. Soichiro Honda costumava
afirmar que se aprende mais perdendo que ganhando. Quando a Honda tem um
problema nem sempre segue a maneira mais fácil ou mais sensata, costuma
procurar novas soluções, tentando técnicas ainda não experimentadas. Em
síntese, o que move a fabricante japonesa é tentar fazer o que ninguém mais
tentou.
Tudo começou na década de 1960, enquanto Suzuki e Yamaha empilhavam
títulos mundiais com os seus motores de dois tempos, a Honda se manteve fiel às
raízes com os de quatro tempos. Construíram motores fantásticos como um 250cc
de seis cilindros, 125cc de cinco cilindros e um 50cc de dois cilindros, todos
com mais de 20.000rpm. O RC115 50cc que alcançava 22.000 rpm e produzia 280 HPs
por litro, mais que uma máquina de MotoGP atual, foi concebido em 1966.
Quando a FIM anunciou em 1968 uma nova regulamentação
limitando os motores em quatro cilindros e 500cc, a disputa com os dois tempos
ficou muito desigual e a Honda retirou-se das competições e concentrou seus
esforços em automóveis. No final da
década de 70 anunciou que iria voltar às provas de motos, insistindo nos quatro
tempos. Os motores de dois tempos ainda apresentavam muitas vantagens, então o
fabricante decidiu compensar com tecnologia. Uma vez que um motor convencional
de quatro cilindros e quatro tempos nunca poderia produzir a mesma potência que
um dois tempos, a Honda aumentou a área das válvulas. O regulamento da época
permitia até quatro câmaras de combustão, a Honda projetou um V8 de 32
válvulas, com quatro pares de câmaras de combustão ligados, um motor inovador
com quatro cilindros em forma oval. Os cilindros ovais permitiram espaço para
32 válvulas e oito velas de ignição, as mesmas de um motor de oito cilindros,
enquanto permanecia dentro do limite da regra de quatro cilindros. Outra
inovação utilizada no NR500 foi sua estrutura monochoque, que envolveu o motor
como um casulo de aço e ajudou a reduzir o peso. Em um esforço para reduzir o arrasto, baixar
o centro de gravidade e reduzir as forças giroscópicas, a moto foi equipada com
rodas de 16 polegadas em vez das tradicionais de 18 pol dos outros
competidores. O NR500 nunca se classificou entre os “top ten” em uma prova
oficial.
O fracasso do NR, explorado pela mídia que interpretou o
acrônimo NR como “Never Ready”, não mudou o modo de pensar da Honda. No início
dos anos 80 os GPs de 500cc eram dominados pelas motos da Yamaha 4 cilindros e
Suzuki 4 cilindros, ambos com válvulas rotativas e chassi de alumínio. Depois
do fracasso embaraçoso do NR o sensato seria a Honda utilizar a mesma
tecnologia comprovada e confiável com que os concorrentes estavam vencendo
provas. Não foi o caminho seguido, a empresa decidiu apostar em um motor de dois
tempos, três cilindros, com estrutura de aço e alimentado por válvulas de
palhetas. O novo motor, NS500, foi recebido com descrença pelos especialistas,
era inconcebível um três cilindros ser mais competitivo que um quatro cilindros,
porém seu desempenho foi suficiente para conduzir Freddie Spencer ao título
mundial de 1983. Quando faltou espaço para aumentar a potência, a Honda partiu
para um quatro cilindros, mas seguiu inovando, em vez de construir um motor convencional
com duas manivelas (twincrank), optou por uma única manivela, com todos os
problemas decorrentes da falta de balanceamento.
A criatividade também foi empregada
na criação do chassi, o NS500 versão 1984 deslocou o tanque de combustível para
baixo do motor e migrou o sistema de exaustão para cima. Para os engenheiros da
fábrica era uma ideia razoável porque em automóveis um centro de gravidade
baixo ajuda na velocidade final, entretanto o modo como o momento de inercia
trabalha nas motos é diferente e o “monstrengo” nasceu fadado ao fracasso. Novamente
a HRC tinha aprendido alguma coisa, para 1985 mudou o chassi para um desenho
mais convencional e em 1992 inovou criando uma moto aerodinâmica extremamente
fácil de pilotar, que conquistou em sete campeonatos entre1994 e 2001.
Em 2002 a FIM em associação com a Dorna alteraram o
regulamento de modo radical, o campeonato passou a ser chamado MotoGP, disputado
exclusivamente por protótipos e a especificação do motor contemplou dois tempos
500cc ou quatro tempos 990cc. A Honda manteve nas pistas o NS500 (dois tempos)
e introduziu o RC211V, quatro cilindros e quatro tempos. Os NS500 foram
abandonados durante a temporada por não terem condições de acompanhar os quatro
tempos, um dos pilotos que trocou de motor com o campeonato em andamento foi o
brasileiro Alex Barros, que recebeu uma RC211V para as quatro últimas provas da
temporada, venceu duas e conseguiu um segundo e um terceiro lugar. A Honda
garantiu para Valentino Rossi dois campeonatos mundiais (2002 & 2003) e nestes
anos venceu 27 das 32 corridas disputadas.
É importante lembrar a história da Honda e sua filosofia
de trabalho ao analisar o desempenho do RC213V nos testes de Sepang. Alguns
sugerem que a fábrica tenha relaxado no ano passado, confiando demais nos bons
resultados de 2013 e 2014.
Uma análise despretensiosa do que ocorreu durante os
testes indica que os dois pilotos da equipe oficial trabalharam com agendas
diferentes, um preocupado com a relação entre motor & eletrônica e outro
com pneus e distribuição de peso. O fato da fábrica não estar preocupada com
tempos de voltas ficou evidenciado por uma declaração de Marc Márquez que
poderia arriscar mais para ser mais veloz, mas não era o caso. Para corroborar
esta afirmação existe o fato de ele, que frequentemente excede os limites, não
ter caído nenhuma vez durante o fim de semana. Dani Pedrosa também não pareceu
preocupado com melhores voltas, Cal Crutchlow pilotando uma Honda satélite sem
evolução obteve tempos melhores.
O maior problema é que, embora a Honda tenha o motor mais
potente e mais selvagem da MotoGP, os seus esforços para controlar esta
agressividade na entrega de torque utilizando sua vasta experiência estão
comprometidos pela regulamentação rigorosa da competição. As chamadas regras de
corte de custos buscam privilegiar o espetáculo proporcionando mais
competidores e maior competitividade, em detrimento ao principal objetivo da
Honda, o desenvolvimento de tecnologia.
Estas regras são conhecidas desde o início do ano passado,
ou seja, não são nenhuma surpresa. O
início do campeonato se aproxima e é trabalho da Honda utilizar todos os seus
recursos de engenharia para, dentro das regras, obter o melhor resultado.
A HRC tem pouco mais de cinco semanas antes de os motores
serem selados na véspera da prova de abertura no Qatar. Será que a Honda tem
algum coelho escondido na cartola?
(Original de Mat Oxley publicado em 03 de fevereiro na
MotoSport Magazine, traduzido e adaptado por Carlos Alberto Goldani)
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