Estatísticas costumam ser comparadas com o uso de biquínis, mostram quase tudo, menos o essencial. A credibilidade dos números, ou a ausência deles, tem um papel relevante em todos os aspectos da formação da sociedade, como pode ser observado na exaltação ou condenação de fatos históricos. A Revolução Francesa (1789-1799) foi um período de intensa agitação política e social, que teve repercussões no mundo todo com o colapso das monarquias absolutistas. O custo em vidas humanas para substituir os privilégios feudais, aristocráticos e religiosos pelos princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade foi alto. Estima-se que nos anos de 1793 e 1794 entre 16 mil e 40 mil pessoas literalmente perderam a cabeça, condenadas em ritos sumários por tribunais de exceção. A Inquisição é um grupo de instituições do sistema jurídico da Igreja Católica Romana, cujo objetivo é combater a heresia. Neste contexto se insere a Inquisição espanhola ou Tribunal do Santo Ofício, uma instituição que atuou entre 1478 e 1834 orientada para manter a ortodoxia religiosa. É praticamente impossível encontrar uma referência elogiosa a este período, que ficou marcado como o tempo da “Caça às Bruxas”. Não existe uma estatística confiável sobre as pessoas condenadas por este tribunal que perderam a vida, as estimativas mais exageradas ficam entre 3 e quatro mil.
Apesar dos números de vítimas, a Revolução Francesa é saudada como um marco da evolução da sociedade e a Inquisição como um período negro da história. Ou seja, o fato em si, perda de vidas humanas, não é importante, a história interpreta como mais importante os resultados e a maneira como são contados.
Um raciocínio semelhante pode ser portado para a MotoGP. A temporada de 2019 resultou no 6º mundial de Marc Márquez em 7 anos de disputa na classe principal do motociclismo mundial. Os resultados obtidos pelo espanhol foram massacrantes, além de vencer 12 das 19 corridas do campeonato, obteve 6 segundos lugares, só não marcou pontos na prova dos EUA, em que caiu enquanto estava liderando. Os organizadores do mundial estão tentando de todas as formas uniformizar, pela adoção de regras restritivas, o desempenho dos protótipos. Não é palatável para espectadores e patrocinadores que as corridas sejam sem disputa, onde alguma moto apresente uma superioridade muito grande. O último ano em que um protótipo participante era muito superior aos demais foi em 2014, quando não havia no grid máquina que pudesse rivalizar com a RC213V da Honda. Nos dias atuais todos os protótipos que alinham para a largada têm um desempenho semelhante.
Talvez a Aprilia, que não tem equipe oficial de fábrica, e a KTM, que é relativamente nova na competição, ainda não sejam consideradas com potencial de vitórias em GPs. As demais fábricas (Yamaha, Honda, Suzuki & Ducati), em tese, dispõem de equipamentos e pilotos que podem competir em condição de igualdade pelo título mundial. Infelizmente não há como equalizar por regulamentação a competência dos pilotos e, neste particular, a técnica e o talento de Marc Márquez fazem toda a diferença. O indicativo mais claro da competência do atual campeão é a abissal distância entre as pontuações no final da temporada de 2019, 420 (de um máximo de 475) pontos contra 269 do segundo colocado Andrea Dovizioso. A segunda Honda melhor classificada no mundial, da satélite LCR pilotada pelo britânico Cal Crutchlow obteve a 9ª colocação, atrás das Ducati de Dovizioso, Petrucci e Miller, das Yamaha de Vinales, Rossi e Quartararo e da Suzuki de Rins.
As revisões divulgadas pela imprensa especializada, que pretendem resumir o que aconteceu durante a temporada de 2019, são praticamente unânimes ao citar cinco disputas fantásticas que decidiram o vencedor nos últimos metros de etapas do mundial. Enaltecem as vitórias de Dovizioso no Catar e na Áustria, de Petrucci no GP da Itália e de Alex Rins em Silverstone, todos derrotaram Márquez, e a do campeão sobre Fábio Quartararo na Tailândia como ocorrências que justificam o extraordinário sucesso do campeonato. As vitórias simples do piloto da Honda #93, 12 ao todo, não despertam tanto interesse.
O ano de 2019 testemunhou a 20ª temporada de Valentino Rossi na 500cc/MotoGP, onde conseguiu 7 títulos mundiais. Foi o ano em que registrou o seu pior desempenho (7ª colocação) desde que retornou à Yamaha em 2013, depois de 2 anos horrorosos na Ducati. O decano dos pilotos está sem pisar no lugar mais alto do pódio a 46 GPs, que além de ser um número cabalístico na sua carreira, indica a o maior intervalo de provas sem vitórias desde que começou a competir. Embora o encanto e a magia que cercam seu nome ainda possam ser identificados, acabou de perder a vaga de 2021 na Yamaha oficial para o novato Fábio Quartararo que, com um equipamento antigo e em uma equipe satélite foi o 5º colocado em 2019. Embora a fábrica nipônica tenha assumido em público o compromisso de disponibilizar um equipamento no estado da arte para o velho campeão em qualquer outra equipe, fica evidente que a Yamaha prefere apostar suas fichas nas novas gerações. Valentino Rossi ocupa um espaço na mídia desproporcional ao seu nível atual de realizações, o último campeonato vencido pelo italiano foi em 2009, desde então a Yamaha conseguiu três títulos, todos com Jorge Lorenzo. Rossi foi vice-campeão em 2014, 2015 e 2016, suas melhores colocações nos últimos mundiais. Valentino Rossi tem uma carreira fantástica que coincidiu com uma revolução no mundo das comunicações, identificou e foi muito hábil ao explorar as oportunidades oferecidas e impôs o seu nome como um sinônimo de motovelocidade. Suas conquistas nas pistas são inspiradoras: 24 temporadas e 402 grandes prêmios disputados desde março de 1996, 115 vitórias, 234 pódios e nove títulos mundiais em três classes. Em paralelo à sua carreira Valentino montou um império econômico em Tavullia, a cidade onde cresceu e onde em sua homenagem o limite de velocidade é de 46km/h (não 50km/h). Tudo indica que o ápice da carreira de Valentino está no passado e que, embora ainda tenha potencial para apresentar eventuais resultados, dificilmente vai igualar ao seu antigo brilho.
A MotoGP na temporada que precedeu o Corona Vírus foi pródiga em acontecimentos extra pista. Johann Zarco patrocinou um espetáculo deprimente de falta de profissionalismo ao debitar exclusivamente ao equipamento KTM a sua insuficiência de resultados. Depois de um bicampeonato na Moto2 (2015 & 2016) e uma performance excelente com uma Yamaha satélite (3 pódios em 2017 e repetiu a dose em 2018), o francês não se entendeu com a máquina austríaca e, embora tenha recebido o tratamento de principal piloto da equipe, para sua infelicidade em todas as provas que disputou terminou atrás do seu companheiro Pol Espargaro. Não é de todo improvável que um conceito diferente de equipamento demore para ser assimilado, o três vezes campeão do mundo Jorge Lorenzo levou uma temporada e meia antes de apresentar resultados com a Ducati, o que não é admissível é se referir a moto produzida por quem paga seu salário em termos chulos e impublicáveis. Johann Zarco dilapidou o capital de realizações no passado e atualmente está em débito com os torcedores. Endereçando o mercado da França, a direção da MotoGP intermediou as negociações de uma vaga para ele na Avintia (Ducati).
Jorge Lorenzo é um caso à parte. Como esperado, enfrentou grandes dificuldades com a mudança para a Honda. Sua melhor contribuição para a equipe foi dizimar a concorrência na prova de Barcelona quando em uma manobra desastrosa causou a queda de Vinales, Dovizioso e Rossi. Lorenzo sofreu um grave acidente nos treinos preliminares para o GP da Holanda, que por detalhe não o deixou paraplégico. O piloto não recuperou a confiança no equipamento e decidiu se afastar do esporte. Depois de haver formalmente anunciado que a prova de encerramento da temporada 2019 era a última de sua carreira, assinou um contrato como piloto de testes com a Yamaha.
O respeito aos contratos nunca foi muito valorizado no ambiente da MotoGP, como comprova a desistência de Lorenzo em continuar com a Honda, as críticas de Zarco em relação a KTM e o fato de Alex Márquez assumir a uma vaga na Repsol-Honda depois de ter assinado com a equipe onde conseguiu o título da Moto2. Karel Abraham foi defenestrado da Avintia (Ducati) em meio a um contrato de 2 anos para abrir uma vaga para Johann Zarco, a Yamaha não quis esperar por uma definição de Rossi e a KTM Tech3 deu um tiro no escuro contratando Iker Lecuona, que tem no currículo 56 largadas, um 2º e um 3º lugares como seus melhores resultados.
Retomar as provas da MotoGP vai ser complicado. Um único evento movimenta um contingente de aproximadamente 3.000 pessoas (inclui pilotos, engenheiros, técnicos, administradores e pessoal de apoio das 3 categorias), entre 260 a 280 toneladas de material para o circuito, 210 toneladas são motos e peças mecânicas, o restante (50 toneladas) é material utilizado pela organização do evento para possibilitar processos complementares como cronometragem e transmissões de TV. Todo este deslocamento deve ser autorizado entre os países que hospedam a competição. Provas fechadas ao público impedem a receita dos autódromos (mantendo as despesas), não estimulam o turismo da região e reduzem a exposição de patrocinadores. Só quando (e se) iniciar a nova temporada os resultados dos investimentos que foram mantidos durante a paralização do mundial podem ser avaliados.
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