Distanciamento Social
Estamos vivendo dias estranhos. Nem os meus sonhos mais delirantes imaginei que um dia entraria mascarado em um estabelecimento bancário, seria recebido por um atendente solícito, sairia com dinheiro no bolso e ainda ouviria um “volte sempre”.
Parodiando Lulu Santos, ”Nada do que foi será, de novo, do jeito que já foi um dia.” A situação atual da MotoGP é semelhante à de um piloto correndo em uma pista molhada, com pneus slick e com a viseira do totalmente embaçada. Ninguém sabe o que vai acontecer em um futuro próximo, se vai haver e como será a temporada de 2020. A única certeza que temos é que a MotoGP que todos estavam acostumados já não existe. Todos na organização do campeonato estão trabalhando em diferentes cenários para, se houver chance, retomar as provas este ano. A atual crise em que se encontra o esporte deve mostrar o que é absolutamente necessário para a competição e o que é supérfluo, sem alterar a essência das corridas.
Economia é a palavra central do processo. Um dos primeiros objetivos é descobrir qual é o número mínimo de pessoas necessárias no circuito para não descaracterizar uma prova. Uma equipe de fábrica em tempos antes da crise deslocava uma centena de funcionários para cada GP, incluindo pessoal de marketing, gestão e hospitalidade. Este número pode ser reduzido para 40 em cada prova, para manter o show sem sacrificar o espetáculo. Equipes independentes calculam um mínimo entre 20 e 25 funcionários, incluindo chefe de equipe, responsável pela eletrônica, analista de telemetria, três mecânicos, um especialista em pneus/combustível, incluindo também os técnicos do fabricante de pneus (Michelin), do fornecedor da suspensão (Ohlins ou WP) e do especialista em freios (Brembo), além do pessoal administrativo. Considerando o universo das três classes (MotoGP, Moto2 e Moto3) o contingente de pessoas em serviço nas provas pode ser reduzido de 3.000 para 1.500 pessoas. Ainda assim é um número razoável, que pode esbarrar em restrições sanitárias dos países que hospedam circuitos. Há ainda o problema do transporte, empresas aéreas foram particularmente prejudicadas durante a pandemia e não há uma previsão de quando podem voltar a prestar bons serviços.
A organização da MotoGP está negociando com as autoridades regionais e administrações de autódromos sobre a prováveis datas para iniciar a temporada de 2020. A Dorna manteve contatos com a vice-presidência do Governo Regional da Andaluzia e com o Prefeito de Jerez propondo realizar duas provas, sem público, nos dias 19 e 26 de julho. É necessária a aprovação do governo espanhol e deve haver um protocolo que permita manter a segurança de todos os envolvidos. O fluxo financeiro deve ser invertido, em vez de cobrar uma taxa pela realização de um evento a organização da MotoGP deve alugar a pista, pagando por sua manutenção e segurança. Ainda não houve uma resposta. Existem procedimentos semelhantes com os governos dos países que tem autódromos habilitados a receber a competição e, talvez, na primeira quinzena de junho possa ser proposto um calendário. Há ainda o complicador da Fórmula 1, seria desejável não haver a coincidência de datas, mas há pouco tempo para muitos eventos. A luta é insana, diversos países impõem restrições e alguns especialistas insistem que grandes eventos esportivos, festivais e assim por diante, não devem recomeçar até meados de 2021.
A administração da MotoGP não especifica um número mínimo de corridas por
temporada e está ciente que provavelmente todas sejam realizadas sem a presença
do público. Todos os participantes já se comprometeram com a economia de custos,
ao concordar em ficar com as mesmas motos utilizadas nos testes no Catar no
início deste ano para a temporada de 2021. Em verdade não é um programa de
economia de custos, é um programa de sobrevivência. A International Road Racing
Teams Association (IRTA), que é formada por equipes, fornecedores de
suprimentos e patrocinadores que participam da MotoGP, já liberou contribuição
financeira para as equipes Moto2 e Moto3 e planeja ajudar as equipes
independentes da MotoGP. A Dorna está fazendo um trabalho incrível porque
entende que ao ajudar as equipes a continuar, quando a crise passar pode
reiniciar tudo sem perder muito tempo. Se equipes forem à falência, perderão
funcionários e o grid de largada pode ser muito reduzido prejudicando o
espetáculo. A próxima tarefa é desenvolver regulamentações de corte de custos a
longo prazo, porque quando o mundo sair dessa crise haverá mais desemprego e
menos dinheiro, o que significa menores vendas e lucros reduzidos para os
fabricantes. O raciocínio das fábricas é linear, só gastar o que ganha, menos
lucros implica forçosamente em orçamentos menores para competições. É uma
equação complexa, a MotoGP tem por finalidade desenvolver motocicletas no mais
alto nível possível. Manter as mesmas motos pelos próximos dez anos implicaria
em uma economia muito grande, mas também haveria menos dinheiro dos
patrocinadores porque todos querem ver novidades. As fábricas estão tomando
medidas drásticas para superar esta crise e sobreviver às suas consequências. No
ambiente da MotoGP todos, pilotos, gerentes, técnicos e pessoal da retaguarda já
concordaram em cortar os salários, até porque a produção e comercialização de
motos está paralisada
Antes da pandemia o longo prazo estava planejado para até 22 GPs por temporada,
objetivo que dificilmente vai ser alcançado. A economia mundial vai ser diferente,
por isso é difícil imaginar 22 corridas por ano a partir de 2022.Talvez o
número se estabilize em 18, com alteração no modelo de financiamento do
negócio. Até o final da temporada passada as equipes independentes recebiam 50%
do dinheiro dos patrocinadores e 50% dos organizadores, esta proporção pode
mudar. Os organizadores ficarão este ano sem as taxas pagas pelos circuitos,
que por sua vez não poderão contar com ganhos das bilheterias.
A pandemia complicou o mundial de motovelocidade de muitas
maneiras diferentes, algumas e inesperadas e foram necessárias uma série de
exceções às regras para a temporada 2020. Uma medida já havia limitado o
desenvolvimento de motores porque os fabricantes tiveram suas fábricas
fechadas, todos os concordaram em usar os motores que deveriam homologar para a
temporada de 2020 na temporada 2021. A Aprilia ficou em uma situação complicada
porque acabou de produzir um novo motor de 90°V, uma reformulação radical e
ainda não suficientemente testada, ou seja, sem a confiabilidade necessária.
Para não penalizar o fabricante, as regras admitem que as fábricas com
concessões – não obtiveram 2 pódios nas últimas duas temporadas (KTM e Aprilia)
- continuem desenvolvendo seus motores até 29 de junho. As regras de concessões
são outro complicador que foi agravado pela pandemia. O sistema permite que
fábricas que não apresentam resultados possam desenvolver seus motores durante
a temporada, com testes ilimitados. As concessões são baseadas em resultados
obtidos nas duas últimas temporadas, se uma fábrica consegue o mínimo dois
pódios, perde o direito a testes e desenvolvimento de motores. As regras também
contemplam os fabricantes que não conseguem pódios em uma temporada inteira,
então passam a ter o direito a concessões. Em uma temporada normal de 19 ou 20 provas
essa é uma boa medida. Em 2020, com a temporada encurtada e um número ainda desconhecido
de corridas no calendário, pode acontecer que uma fábrica de com orçamento
farto apresentar desempenho ruim e se habilitar a ter concessões. Exagerando,
se nenhuma Ducati terminasse no pódio em qualquer uma das corridas, a Ducati
teria concessões, apesar de Andrea Dovizioso ter terminado em segundo lugar no
campeonato nos últimos três anos. Para enfrentar essa improvável anomalia, concessões
não serão concedidas (retiradas pode) a nenhum fabricante no final da temporada
2020.
Não faz sentido em um ambiente rígido de economia consentir que
uma equipe inscreva três pilotos em uma única prova. É possível que as corridas
deste ano sejam realizadas sem espectadores, convidados, VIPs e com um número
restrito de credenciais para a mídia. Permitir engenheiros e mecânicos
necessários para um piloto extra, além dos necessários da equipe oficial, é um risco
desnecessário e pode ser um fator para complicar as negociações com as
autoridades sanitárias locais e nacionais sobre a segurança da realização dos
eventos. O cancelamento dos “wildcards” significa que Jorge Lorenzo não correrá
pela Yamaha em Barcelona, como havia planejado originalmente. Isso também
significa que pilotos de testes como Sylvain Guintoli, Stefan Bradl, Michele
Pirro e Mika Kallio não estejam presentes em competições nesta temporada. Bradley
Smith só permanece no grid se o apelo ao CAS (Court
of Arbitration
for Sport) de Andrea Iannone ao não for aceito.
Em 1687, consolidando as teorias de Galileu e Kepler, Isaac
Newton publicou um trabalho em três volumes, intitulado Philosophiae Naturalis
Principia Mathematica, que é um dos alicerces da física atual e explica os
resultados observados em relação ao movimento dos corpos. O conjunto de leis
físicas contidas nestes volumes permitiu a Newton demonstrar matematicamente
que “As forças que fazem com que os planetas se desviem constantemente do seu
movimento retilíneo e se mantenham em suas órbitas, estão dirigidas para o Sol
e são inversamente proporcionais aos quadrados das distâncias ao centro deste”.
Newton generalizou a afirmação em um dos princípios fundamentais da Física, a
Lei da Atração Universal. Como bom matemático, Newton considerou a
possibilidade de não ter examinado a questão sob todas as óticas possíveis,
enunciou a lei da seguinte forma: “Tudo acontece como se a matéria atraísse a
matéria na razão direta de suas massas, e na razão inversa do quadrado das
distâncias”.
Os princípios físicos enunciados por Newton nunca foram
desmentidos, a evolução da humanidade, em termos de corpos em movimento,
incluindo o comportamento dos equipamentos da MotoGP e viagens espaciais à Lua,
estão lastreados em suas teorias. No entanto, as leis de Newton não
correspondem a uma verdade absoluta, uma prova consistente que existem aspectos
não contemplados nos princípios enunciados é o voo do besouro. O besouro é
pesado demais, seu desenho não é aerodinâmico, as asas são muito pequenas e a
frequência com que o inseto as agita é, matematicamente comprovado,
insuficiente para alçar e manter um voo. No entanto ele voa. Desajeitado, mas
voa.
O calendário da MotoGP em 2020 tem o mesmo grau de incerteza das teorias de Newton. Tudo acontece como se os protótipos utilizem a pista de Jerez em 15/07 para uma seção de testes e a primeira prova da temporada seja realizada em 19/07.
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