sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

MotoGP – Comparações


 Não há como comparar abacaxi com avestruz.

Toda a discussão sobre quem é o melhor piloto de motovelocidade de todos os tempos implica em comparar realizações distintas ocorridos em tempos e condições diferentes. Aquela assertiva que conjunto de números podem ser comparados a biquínis, permitem a visão de quase tudo, menos o que é realmente importante, continua válida. Estatísticas são apenas indicadores que servem, quando muito, para defender paixões e pontos de vista sem analisar uma conjuntura ampla.

Recentemente um administrador da HRC afirmou que as realizações de Marc Márquez superam as de Valentino Rossi porque são obtidas em um contexto onde a competitividade é bem mais acirrada. Diferentemente das vitórias de Agostini ou Rossi, as distâncias que atualmente separam o primeiro do segundo colocado são significativamente menores, resultado de um esforço contínuo das entidades organizadoras em equilibrar recursos e concentrar as decisões exclusivamente nos pilotos. Recursos equivalentes recompensam os mais competentes (estrategistas, mecânicos e pilotos), resultam em melhor espetáculo para o público presente nos autódromos, maior audiência de TV e consequentemente retorno para os patrocinadores.

 


Márquez vs Rossi – Rio Hondo 2018

 

É possível, de um modo subjetivo, avaliar quem é mais importante para o esporte sem utilizar métricas que possam ser reduzidas a números. Por exemplo, é inegável a contribuição de Barry Sheene na popularização do motociclismo esportivo no Reino Unido. Seu sucesso dentro e fora das pistas foi compatível com a receita de sucesso de uma geração, um vencedor nos esportes com agenda social intensa. Depois dos anos de Sheene os ingleses, que haviam conquistado 17 dos 29 campeonatos disputados até então (Leslie Graham 1, Geoff Duke 4, John Surtees 4, Mike Hailwood 4, Phil Read 2 e Barry Sheene 2), não venceram um único GP por 35 anos, desde a Suécia em 1981 (Barry Sheene) até a República Tcheca em 2016 (Cal Crutchlow).


Cal Crutchlow – Brno 2016

 

Valentino Rossi, por sua extroversão, ajudou muito a popularizar o esporte em todo o planeta. O multicampeão italiano sempre foi mais que um excelente piloto, além de diversas vitórias nas pistas utilizou seu carisma pessoal para criar um império econômico, bandeiras amarelas com o número 46 que estão onipresentes em todos os circuitos onde são realizadas competições e gerou polêmicas que mantiveram a MotoGP constantemente nas manchetes. São históricas as suas desavenças com Max Biaggi, Sete Gibernau, Casey Stoner e Marc Márquez. Jorge Lorenzo é considerado o seu pior inimigo porque cometeu a heresia de em 2 anos (2010 e 2015) vencer do italiano utilizando rigorosamente os mesmos recursos na Yamaha. Uma frase de Marco Melandri, que herdou a máquina e ouviu conselhos de Rossi nos tempos da Tech3, sintetiza o sentimento dos boxes em relação ao VR46. “Valentino é o melhor companheiro de equipe que algum piloto pode ter, a menos que ameace a sua posição”.


Valentino Rossi & legião de fãs


Dois campeões têm em comum a fidelidade a uma única equipe. Mick Doohan, que conquistou 5 campeonatos consecutivos entre 1994 e 1998, desenvolveu toda a sua carreira entre 1989 e 1999 na Repsol Honda, mesma equipe em que Marc Márquez pilota desde 2013 e acumula 6 títulos, falhando em 2015 (Jorge Lorenzo) e 2020 (Joan Mir). Ambos ainda compartilham, cada qual ao seu tempo, uma vontade de vencer e nunca desistir. Iniciam as corridas pensando em vencer, independentemente da posição de largada. Os dois concordam com um diagnóstico de Ayrton Senna, “Segundo é o primeiro que perde”. Importante, nenhum dos dois pilotos nutre especial preocupação por quantidade de realizações porque, segundo eles, estatística nunca é o foco durante as competições, embora seja importante para a mídia.

 

Marc Márquez e Mick Doohan

 

Michael “Mick” Doohan foi o mais bem-sucedido piloto das 500cc, 2T, de todos os tempos. Surgiu para o universo das provas de velocidade em motos no Campeonato Australiano de Superbike, seu sucesso nas pistas justificou a contratação para pilotar pela Honda no mundial de MotoGP em 1989, compartilhando as pistas com pilotos consagrados como Wayne Rainey, Eddie Lawson, Randy Mamola e Kevin Schwantz. Sua maneira de controlar a moto era ideal para a agressividade das 500cc, em uma época onde os fabricantes privilegiavam a potência e a curva acentuada de torque fazia da NSR500 um equipamento complicado para pilotar.

Na temporada de 92 a Honda mudou a temporização dos disparos do motor introduzindo a característica “Big Bang”, resultando em menor potência em alta rotação, facilitando o seu controle. O talento de Doohan já era reconhecido, classificou-se em segundo na temporada anterior nove pontos atrás do americano Wayne Rainey. Em um acidente na primeira prova da temporada de 1992 (GP do Japão em Suzuka) seu colega de equipe, o também australiano Wayne Gardner (campeão de 1987) fraturou uma perna e a equipe Honda centrou todas as atenções em Doohan. Nas primeiras 7 provas de uma temporada de 13 GPs, o australiano colecionou 5 vitórias e 2 segundos lugares abriu 65 pontos de vantagem para o então bicampeão mundial, o americano Wayne Rainey da equipe Yamaha.




Com uma campanha impecável liderava o campeonato com folga até o TT da Holanda. Nos testes livres em Assen, a Catedral da Motovelocidade, Doohan depois de uma primeira queda sem consequências, voltou para a pista e sofreu um highside, um acidente onde o piloto é catapultado da moto e resultou em uma fratura na tíbia direita. O acidente não foi nada incomum, havia concluído uma volta rápida na classificação e a bandeira vermelha foi acionada porque a moto de Randy Mamola estava vazando fluido na pista, Doohan entrou em uma curva 180 km/h, perdeu o controle e foi catapultado da moto. O acidente resultou em uma fratura em espiral dupla da perna direita. Para qualquer pessoa isso implicaria em muitas semanas de descanso e recuperação, porém liderando o campeonato por apenas 65 pontos e faltando ainda seis provas na temporada, um longo afastamento poderia comprometer o resultado de todo o ano. Para poupar tempo Doohan decidiu ser operado na Holanda, imaginando que as opções do Reino Unido ou EUA demandassem maior demora para o início da correção clínica. O   Dr. Claudio Costa, médico chefe do GP, aconselhou utilizar meios mecânicos para fixar os pedaços de osso. O resultado foi desastroso, faltou habilidade ao cirurgião holandês e, além da possibilidade de Doohan ter a perna amputada, ele passou a correr risco de vida. Por insistência do Dr. Costa foi formada uma junta médica para reexaminar sua perna. Cortaram a musculatura da parte de trás do joelho até o tornozelo e investigaram o pé. A gangrena crônica, que obrigaria a amputação do membro ainda não estava instalada, mas havia indícios que o processo já havia iniciado. O Dr. Costa decidiu que Doohan e outro piloto que estava em tratamento, Kevin Shantz, deviam ser removidos imediatamente para a Itália. O australiano foi transferido para uma clínica na privada já com diversos órgãos entrando em colapso devido à pouca circulação no membro sinistrado, o risco de amputação havia evoluído para risco de vida.

 O piloto foi então submetido a uma cirurgia experimental, o médico italiano Claudio Costa utilizou o sistema de irrigação da perna esquerda para revitalizar a direita, Doohan ficou com as duas pernas costuradas por 14 dias, a circulação foi restabelecida, entretanto parte da funcionalidade do seu membro direito foi irremediavelmente comprometida.

O piloto perdeu quatro etapas da temporada. O seu retorno no GP do Brasil foi feito em circunstâncias desfavoráveis, a pista de Interlagos é um ícone da Fórmula 1, porém um circuito inadequado para as 500cc. Para aumentar a segurança foi construída uma chicane na curva do Café, mas para o piso ondulado e os muros que antecedem a reta dos boxes muito próximos da pista não havia solução. Os principais pilotos, entre eles Wayne Rainey, Eddie Lawson e o próprio Mick Doohan pressionaram pelo cancelamento da prova que, se efetivado, garantiria o título da temporada para o australiano, entretanto os interesses comerciais prevaleceram e a corrida foi mantida.

Michael Doohan chegou em São Paulo em uma cadeira de rodas e com a musculatura das pernas pouco desenvolvida devido a prolongada ausência de exercícios. O piloto ocultou dos responsáveis que sua perna direita não estava recuperada, estava sem sensibilidade do joelho para baixo. Ele participou de uma corrida em um circuito desfavorável para motos, com um clima chuvoso e com uma perna só. O 12° lugar no Brasil e o 6° na última etapa não foram suficientes para acompanhar a pontuação de Wayne Rainey, que com sua Yamaha conquistou o terceiro título consecutivo.

Doohan ainda estava em processo de recuperação da funcionalidade da perna, que continuava sem sensibilidade do joelho para baixo durante a maior parte da temporada de 93, ano de estreia de Alex Barros na moto GP e do trágico acidente de Wayne Rainey que o colocou definitivamente em uma cadeira de rodas. Kevin Schwantz foi o campeão encerrando o ciclo dos pilotos americanos, o australiano foi o quarto colocado e conseguiu uma vitória no GP de San Marino. A falta de mobilidade do tornozelo direito impedia o uso correto do freio traseiro e a Honda improvisou um controle com acionamento do polegar esquerdo, alterando a técnica de pilotagem da moto. Óbvio, houve quem alegasse que o freio traseiro controlado pela mão era uma vantagem indevida, reclamação desconsiderada pela FIM porque o regulamento da competição era omisso nesta área e todos poderiam replicar a inovação. Este recurso foi recuperado para equipar a moto de Marc Márquez porque com a inclinação do equipamento maior de 60° impede e o acionamento do freio com o pé. A temporada de 1994 encontrou o piloto melhor adaptado às suas limitações, Doohan arrasou a concorrência conquistando 317 pontos contra 174 do segundo colocado, a Yamaha de Luca Cadalora. Venceu 9 vezes em 14 provas, os melhores resultados de seu companheiro de equipe (Alex Crivillé) foram três 3º lugares.

Michael Doohan conquistou cinco mundiais seguidos, de 94 a 98, todos com uma larga margem de pontos. Seu comportamento na pista sempre foi pilotar no limite, houve provas em que venceu com mais de 30 segundos de vantagem sobre o segundo colocado. Em 1999 acidentou-se no terceiro GP da temporada, Espanha, e abandonou as pistas.

Marc Márquez foi campeão mundial na 125cc e Moto2 antes de ser confirmado na vaga de Casey Stoner, que se aposentou em 2012, na MotoGP. Depois de uma temporada acidentada em 2013 quando conseguiu vencer Jorge Lorenzo, foi o campeão da categoria mais jovem de todo os tempos e iniciou uma estatística repleta de recordes.

Conseguiu um início dos sonhos em 2014, venceu as 10 primeiras corridas e seu segundo título mundial da principal categoria, garantiu o título faltando 3 provas para o final da temporada. O projeto do equipamento de 2015 não correspondeu, seu desempenho só melhorou quando decidiram utilizar o quadro do ano anterior. Assistiu uma disputa fratricida entre as duas Yamaha da equipe oficial e foi atraído para o olho do furacão por uma tentativa esdrúxula de Valentino Rossi de montar uma guerra psicológica contra seu companheiro de equipe, o campeão da temporada Jorge Lorenzo.

 

Marc Márquez – Jerez de la Frontera (2020)


Recuperou o título em 2016, temporada em que Rossi foi o desafiante mais consistente, porém com 4 quedas (Circuito das Américas, Mugello, Assen & Motegi) sepultaram suas aspirações de disputa do título. A disputa de Márquez com Lorenzo em Mugello foi fantástica, com a vitória do piloto de Palma de Mallorca na linha de chegada. Enfrentou um novo desafiante nas 2017, 2018 e 2019, a Ducati de Andrea Dovizioso que ameaçou em 2017 e foi massacrado em 2018 e 2019. A temporada de 2019 poderia ser classificada de perfeita não fosse a queda no GP dos EUA, em todas as outras provas esteve em 1º (12) e 2º (6).

Em 2020 o piloto espanhol encarou sua pior temporada, acidentou-se na primeira prova e colecionou uma série de contratempos resultantes da pressa em voltar às pistas e mau aconselhamento médico. Além de perder a toda a temporada, ainda está em processo de recuperação e sem data para voltar a pilotar.

Michael Doohan e Marc Márquez partilham, além das carreiras exclusivas na Honda, históricos de superação de problemas. Seu comportamento fora das pistas também é semelhante, se não evitam, também não buscam holofotes, são atenciosos com fãs e imprensa e não há registro de alguma vez terem reclamado em público de seus equipamentos.

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