quinta-feira, 26 de novembro de 2020

MotoGP - E la nave va

 

 
Joan Mir – Campeão da MotoGP em 2020

“E la nave va” é um filme italiano de 1983 dirigido por Federico Fellini que conta a história dos eventos ocorridos a bordo de um cruzeiro em um navio luxuoso, onde os amigos de uma falecida cantora de ópera se reúnem para o seu funeral. Nave também é um epíteto carinhoso utilizado pelo narrador Guto Nejaim para designar o protótipo da Suzuki pilotado pelo novo campeão mundial, o espanhol Joan Mir, relacionando com a designação da primeira estação espacial em órbita.

 

Estação espacial MIR

 

MIR é um termo do idioma russo que pode ser traduzido “Mundo” e foi o nome de uma estação espacial que operou na órbita baixa da Terra entre 1986 e 2001, lançada pela União Soviética e que, com o colapso do comunismo, passou a ser controlada pela Rússia. Foi a primeira estação espacial modular e sua montagem em órbita aconteceu entre 1986 e 1996. A estação MIR serviu como laboratório na pesquisa de ausência de gravidade, experimentos sobre biologia, física, astronomia, meteorologia e sistemas de naves espaciais com o objetivo de desenvolver tecnologias para a ocupação humana permanente do espaço.

 

O campeonato da MotoGP acabou e o rearranjo causado pela Covid-19 garantiu que nunca houve uma temporada com tantas surpresas como essa. Em apenas 14 etapas (a classe MotoGP não correu na abertura da temporada no Catar, quando houve provas da Moto2 e Moto3), cinco pilotos conquistaram a sua primeira vitória da carreira, impondo uma nova geração de vencedores. Este número (primeiras vitórias) é inédito na história da principal categoria do Mundial de Pilotos. Brad Binder, Joan Mir, Franco Morbidelli (3), Miguel Oliveira (2) e Fabio Quartararo (3) subiram no degrau mais alto do pódio nesta temporada. Os estreantes venceram 65% das provas realizadas e três deles comandando equipamentos de equipes satélites (Oliveira, Quartararo & Morbidelli). As grandes forças (fabricantes Yamaha, Honda e Ducat)i cederam espaço e proporcionaram uma mudança notável no equilíbrio de poder entre pilotos e equipes.

 

Iker Lecuona – Tech3 KTM

 

Nas últimas temporadas, a maioria das equipes oficiais optou por pilotos jovens e promissores que surgiam das classes Moto2 e Moto3, na esperança de repetir o fenômeno Marc Márquez. A pouca idade e falta de currículo permite investir relativamente pouco em salários e trabalhar com material humano mais maleável, não tão exigente. Os desentendimentos entre Andrea Dovizioso (piloto) e Gigi Dall'Igna (administrador da equipe) são uma prova que os interesses entre pilotos consagrados e equipe por vezes podem ser conflitantes. Adicionalmente os pilotos passaram a fazer parte do pacote de fornecimento do equipamento para equipes independentes, Alex Márquez assinou com a Honda e vai pilotar para a LCR, Iker Lecuona foi selecionado pela KTM e presta serviços à Tech3. Até Valentino Rossi, que viveu o seu melhor momento na Yamaha, foi emprestado para a satélite Petronas. A Suzuki apresenta o histórico mais bem-sucedido nesta área, Joan Mir e Alex Rins foram contratados quando eram jovens para que pudessem ser moldados para as características da GSX-RR.

 

Cal Crutchlow – Adeus como piloto regular

 

Marcos Valle no meio da década de 70 emplacou um sucesso chamado “Não confie em ninguém com mais de trinta”, que pode ser espelhada na MotoGP atual. Por muito tempo pilotos que já ultrapassaram à casa dos trinta como Cal Crutchlow, Andrea Dovizioso, Jorge Lorenzo e o interminável Valentino Rossi lideraram e venceram GPs. Com o sucesso de Márquez e Mir, pilotos com mais de trinta perderam o argumento da experiência, estão mais para candidatos à aposentadoria.

 

O ano se encerra com o adeus de vários ídolos. Cal Crutchlow foi o primeiro britânico a vencer na MotoGP desde Barry Sheene nos anos 70, disputou 168 GPs desde que iniciou sua carreira na principal categoria em 2011 e sofreu 179 acidentes (considerando apenas os ocorridos em fins de semana de corridas).  Andrea Dovizioso, com um histórico de229 GPs na classe principal e 327 GPs em todas as classes desde 2001, embora diga que decidiu ter um ano sabático em 2021, sabe que dificilmente vai voltar a alinhar em uma largada. Até pilotos que nunca brilharam na MotoGP e que, entretanto, contribuíam para o espetáculo como Tito Rabat também estão abandonando o barco. Rabat teve uma carreira brilhante na Moto2 (campeão em 2014) e nunca conseguiu sucesso na MotoGP, onde disputou 77 GPs desde 2016.

 

Chicho Lorenzo Competições

 

Joan Mir iniciou no motociclismo esportivo em sua ilha natal, Palma de Mallorca, onde frequentou a escola de competições de Chicho Lorenzo, pai de multicampeão Jorge Lorenzo. A técnica desenvolvida por Chicho não envolve a busca incessante de velocidade, exige repetição sem fim de exercícios de corrida em baixa velocidade em torno de cones até que a perfeição se internalize no subconsciente do piloto. Não é surpresa que o estilo de pilotagem de Mir seja semelhante ao de Lorenzo, fluido, sem sobressaltos e com um forte componente mental, leia-se comprometimento.

 

Quando Mir foi contratado em 2019 para pilotar uma Suzuki na MotoGP foi alertado que não se preocupasse com resultados, apenas tinha que se familiarizar com as corridas, a moto e os rivais. Em 2019 sofreu um acidente do pior tipo nos testes pós-GP da República Tcheca, os engenheiros da Suzuki sabiam que tinha sido causado por uma falha técnica, mas não sabiam exatamente qual. Há poucas coisas que preocupam mais um piloto que não saber como proceder para evitar um sinistro quando acelera a mais de 300 km/h em uma pista.

 

Joan Mir conseguiu o título de campeão da MotoGP 2020 por sua consistência. Embora não tenha pontuado em 3 corridas (Jerez, República Tcheca e Portimão) e tenha vencido em apenas uma, em 9 esteve entre os top 5 e foi beneficiado pela desastrosa atuação dos outros aspirantes ao título, Fábio Quartararo por exemplo conseguiu apenas 19 pontos nas 6 últimas provas. Se não foi uma temporada brilhante do espanhol, seu desempenho foi suficiente para somar mais pontos que todos os seus adversários.

 

Miguel Oliveira conquistou a primeira vitória para a Tech3 KTM

 

A temporada de 2020 foi caracterizada por vencedores e perdedores. Entre os vitoriosos está a equipe independente Tech3, que em 19 anos como satélite da Yamaha nunca conseguiu uma vitória e numa temporada curta com máquinas KTM viu Miguel Oliveira vencer duas vezes. Entre os perdedores a equipe oficial da Yamaha que por ser sido flagrada violando o regulamento perdeu representatividade, embora um piloto (Franco Morbidelli) com um protótipo de especificação 2019 da equipe satélite Petronas tenha conseguido o vice-campeonato. Das quatro Yamaha inscritas na competição, o modelo antigo foi o melhor classificado. Fábio Quartararo sonhou alto no início do ano, a cirurgia sofrida pelo espanhol Marc Márquez e a dupla vitória em Jerez indicavam que este seria o seu ano, porém o baixo rendimento na segunda prova na Áustria e a ausência de pontos em San Marino minaram suas aspirações. Ainda acompanhou o brilhante desempenho de seu colega de equipe que, com um equipamento Especificação B (2019), venceu 2 das 4 últimas provas. Como prêmio de consolação ganhou o BMW que é entregue ao piloto com maior rendimento nas classificações para o grid de largada, desde 2013 este prêmio era exclusivo da Honda #93 de Marc Márquez.

 

Em 2021 Quartararo assume a vaga de Valentino Rossi na equipe Yamaha oficial, ao lado de Maverick Vinales. Ele aprende as lições rápido, assim como o Doutor, nas últimas provas creditou seus maus resultados ao desempenho do equipamento.

 

A temporada de 2020, que por causa da Covid-19 programou GPs em localidades fora de época (clima muito quente ou muito frio), acrescida da novidade do pneu traseiro da Michelin que prejudicou os equipamentos que respondem melhor com curvas agressivas (motores com cilindros em V), e só foi possível graças à capacidade gerencial e de negociação dos organizadores, que inclusive administraram uma engenharia financeira diferenciada pela perda de bilheteria em provas sem público.


GSX-RR - A máquina mais equilibrada da temporada
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 Joan Mir é o Campeão Mundial de MotoGP de 2020 de fato e de direito, com méritos conquistados pela qualidade do seu equipamento e consistência da sua condução. Há motos que alinham no grid com potencial de performance melhor que a Suzuki GSR-XX, mas com características que só operam com plena eficiência em condições muito específicas. O equipamento utilizado por Mir e Rins não tem o melhor desempenho, mas sua ampla gama de operações, seu caráter equilibrado permite que os pilotos o levem ao limite em praticamente todas as pistas. O equilíbrio do protótipo também ajuda a cuidar dos pneus, desde o início a GSX-RR foi projetada para ser uma máquina equilibrada, em vez de ser muito forte em algumas áreas e inevitavelmente deixar a desejar em outras. A palavra mais importante no motociclismo esportivo é compromisso, é quase impossível melhorar uma característica sem prejudicar outra. A única desvantagem real da Suzuki é a falta de potência, que este ano foi em parte compensada pelo pneu traseiro da Michelin, os milissegundos que o equipamento perde em retas são compensados com maior velocidade em curvas.

 

Finalmente, longe de desmerecer a conquista de Mir, que foi obtida segundo as regras do jogo, é imperioso mencionar que Marc Márquez não participou da competição este ano. Se a Suzuki é o equipamento com janela de operação mais ampla no momento, Márquez é o piloto com maiores recursos, que consegue extrair 100% do desempenho de uma máquina mesmo quando as condições não são ideais, o clima não está correto e existem dificuldades com a durabilidade e aquecimento dos pneus. Na era dos 3 M (Michelin, Magneti & Marelli), a capacidade dos pilotos excede às vantagens dos equipamentos. Marc Márquez e Joan Mir compartilham uma característica de comportamento pessoal, mesmo quando as coisas não dão certo, nunca externaram reclamações públicas sobre o equipamento.


 A Suzuki e Joan Mir, campeões mundiais de 2020

MotoGP - O gambito da rainha

“O xadrez é um esporte que, quando praticado com assiduidade, desenvolve a capacidade de ... jogar xadrez”

 


Tem uma série de TV disponível no Netflix chamada “O Gambito da Rainha”, direcionada para pessoas que jogam ou admiram o xadrez, um esporte, que também pode ser considerado como arte ou ciência. As novas gerações, habituadas à cultura de comunicações rápidas curtas do Twitter dificilmente se encantam com o poderio bélico de Torres, a retidão eclesiástica de Bispos, a agilidade dos Cavalos, a descartabilidade dos Peões para proteção do rei e ao incomparável poder da Rainha, que são a essência do xadrez.

 

Os dicionários da língua portuguesa definem o termo gambito como um substantivo masculino que define um ardil para derrotar um adversário, um lance inicial do xadrez onde o sacrifício de um peão permite adquirir uma vantagem posicional ou causar a perda de uma peça importante do adversário.

 

As KTM de Binder e Oliveira sem concessões em 2021

 

A temporada de 2020 da MotoGP, que alguns consideram como épica por oportunizar a disputa do título por contendores que seriam considerados descartados em função dos registros históricos, ou insossa segundo a ótica de outros por acontecimentos que tiraram o foco de pilotos consagrados, apesar da pandemia, e de todas as dificuldades, está chegando ao final.

 

Os registros oficiais dos 72 anos de competições indicam que houve épocas onde a superioridade de alguns pilotos na classe principal foi incontestável. Marc Márquez é o recordista por vitórias em uma única temporada, 13 conquistas em 2014, e ainda compartilha com Mick Doohan o segundo índice por ano,12 primeiras colocações obtidas por Marc (2019) e por Mick (1997). Valentino Rossi e Giacomo Agostini compartilham a marca de 11 triunfos em um único ano, Rossi em 2001, 2002 (Honda) e 2005 (Yamaha) e Agostini em 1972 (MV Agusta). Casey Stoner e Agostini venceram 10 vezes, Stoner em 2 oportunidades (2007 com Ducati e 2011 com Honda) e Agostini em 3 (1968, 1969 & 1970, todas com MV Agusta). Em apenas duas temporadas o mesmo piloto venceu todas as provas realizadas, John Surtees em 1959 (7 GPs) e Agostini em 1968 (10 GPs), ambos equipados com MV Agusta.

 

O último grande ponto de inflexão técnica do mundial de motovelocidade aconteceu em 2002 quando, pressionados por políticas ambientais, as equipes migraram dos poluidores dois tempos para quatro tempos. Desde então já foram disputados 325 GPs, dos quais 248 (76,31%) foram vencidos por apenas 4 pilotos, Rossi, Lorenzo, Stoner, Pedrosa e Márquez.

 

Nicky Hayden - Campeão em 2006

 

Nem sempre foi assim. O histórico do campeonato mundial contabiliza disputas acirradas, onde o vencedor do título só foi conhecido na última prova. O mais significativo aconteceu na conquista do norte americano Nicky Hayden (Kentucky Boy) em 2006. Valentino Rossi estava com condições amplas de conquistar o título e era necessária uma sequência muito improvável de eventos para o italiano não emplacar seu sexto campeonato consecutivo. Nas próprias palavras de Hayden: “Preciso ter muita sorte e Rossi muito azar”. O inesperado aconteceu, no último GP do ano Rossi caiu, recuperou a sua Yamaha e conseguiu ainda a 13ª colocação, Hayden fez uma prova burocrática e com seu 3º lugar garantiu os pontos suficientes para conquistar o título.

 

Circuito Ricardo Tormo – Valência

 

A estranha temporada de 2020 está próxima do final, as três últimas provas, duas em Valência e a última no Algarve, devem ocorrer nos próximos fins de semana, 75 pontos possíveis no total, e o campeonato está em aberto com, pelo menos, 6 candidatos. A temporada condensada se aproxima do final com uma vantagem de 14 pontos do líder, em um campeonato de 14 provas, 11 já foram disputadas com 8 vencedores diferentes, 6 pilotos têm chances reais ao título com a curiosidade do líder da competição ainda não contabiliza nenhuma vitória.

 

Joan Mir, piloto da Suzuki nascido em Palma de Mallorca, lidera em número de pontos o mundial. Em um ano caótico, Mir tem sido o rei da consistência e ainda persegue a sua primeira vitória na classe principal. Se conseguir em uma das 3 provas que faltam, a temporada de 2020 deve igualar o recorde de 2016 em número de vencedores (9), se não alcançar este objetivo e manter a sua regularidade, pode ser o primeiro piloto da classe principal a conquistar o título sem ter pisado no degrau mais alto do pódio.

 

Seis pilotos podem ser considerados como candidatos ao título, além de Mir, Fábio Quartararo, Maverick Vinales, Franco Morbidelli, Andrea Dovizioso e Alex Rins, 3 Yamaha, 2 Suzuki e 1 Ducati (cadê as onipresentes Honda?). Uma equipe independente, a Petronas SRT é a única cujos pilotos já repetiram vitórias, 3 de Quartararo e 2 de Morbidelli, este com um modelo 2019.

 

Nunca houve em toda a história da classe principal da MotoGP um campeão sem pelo menos uma vitória na temporada. Se Mir conseguir este feito, seu título terá o mesmo valor de um disputado até a última prova como foi o de Nick Hayden em 2006 ou de um folgado como o último de Marc Márquez em 2019. O livro de regras da MotoGP define como vencedor da competição o piloto que durante todos os GPs do campeonato acumular o maior número de pontos. Vencer corridas é a melhor maneira de acumular pontos e no final do ano o título é dado ao piloto que tem mais, não para quem obteve mais vitórias, mais poles ou mais voltas rápidas. Um piloto ter mais vitórias que o campeão significa apenas que foi mais rápido em algumas provas, mas não foi rápido ou consistente o suficiente durante toda a temporada. Há quem faça uma alusão à parábola da lebre e da tartaruga, a lebre é claramente mais rápida, sua estratégia de corrida é falha e a vitória final é da tartaruga.

 

Emilio Alzamora - Campeão mundial de 125cc em 1999 sem nenhuma vitória


Nas classes de acesso existem registros de campeões mundiais sem vencer durante a temporada. O caso mais recente é o de Emilio Alzamora, assessor pessoal dos irmãos Márquez, que conquistou o título mundial de 125cc de 1999 sem vencer nenhum dos 14 GPs. No mesmo ano, seu adversário, Marco Melandri, venceu cinco. A história de Emilio na temporada de 1999 pode ser equiparada a uma rua que existe em Copacabana, Rio de Janeiro, chamada Bulhões de Carvalho, que o bom humor carioca rebatizou como “Quase-Quase”. Alzamora quase foi vitorioso em diversas ocasiões, ficou a 0,10 seg em Sepang, 0,01 seg em Barcelona, 0,18 seg em Sachsenring. Na prova final em Buenos Aires, Melandri venceu Alzamora por uma fração de segundo, porém não foi o suficiente. No final da temporada o mentor dos irmãos Márquez acumulou 227 pontos, 1 a mais que Melandri (226). Dez anos antes, Manuel Herreros ganhou o último título mundial das 80cc com uma Derbi sem vencer uma única corrida, supreendentemente o seu vice-campeão Stefan Dorflinger também terminou a temporada sem vitória. O homem mais rápido do ano o foi Peter Ottlque venceu 3 GPs, mas não conseguiu terminar outros 2, enquanto Herreros e Dorflinger marcaram pontos em todas as 6 provas da temporada. Motociclismo esportivo não é uma competição só de velocidade, a confiabilidade dos pilotos e equipamentos também é importante.

 

Xadrez e MotoGP têm algo em comum, a estratégia é fundamental. Evitar quedas e marcar pontos é mais importante que eventuais vitórias, como deve ter aprendido o 6 vezes campeão do mundo (na principal categoria) Marc Márquez. O espanhol vacilou em Jerez estava com o pódio garantido e tentou vencer, caiu e fraturou o braço, está pagando um preço muito alto.

 

Não há registros de fraturas em jogadores de xadrez

 

MotoGP - Campeão Europeu ou Campeão Mundial

 


MotoGP é um esporte, um negócio ou um espetáculo? Talvez a resposta mais honesta seja um pouco de tudo. A definição ampla de esporte especifica a prática metódica, individual ou coletiva, de jogo ou qualquer atividade que demande exercício físico e destreza com fins de competição. Sob esta ótica corridas de motos podem ser consideradas disputas esportivas, embora com grande influência dos fatores negócio e espetáculo.

 

O transporte aéreo é um recurso importante para o sucesso da MotoGP

 

A pandemia gerou um grande clima de incerteza, com o fechamento de fronteiras por questões sanitárias e o distanciamento social como forma de conter o contágio. Um dos setores econômicos mais impactados foi o transporte aéreo, que enfrentou restrições em diversos países por facilitar a disseminação do vírus. Sem a liberdade de viajar, um mundial ficou inviabilizado e para manter a MotoGP os organizadores optaram por uma abrangência geográfica restrita.

 

A Honda comemorou no último fim de semana a vitória número 800 dos 3182 GPs oficiais já disputados em todas as classes, o impressionante índice de 25% das provas disputadas. Uma história que começou em março de 1954 quando Soichiro Honda, o fundador da empresa, intuiu que vencer o GP da Isle of Man, uma das provas do maior evento de desporto motorizado do seu tempo, permitiria não só internacionalizar sua marca, assim como contribuir para o desenvolvimento tecnológico do Japão. A MotoGP é uma forma de estabelecer e impulsionar negócios.


Jaume Masiá, da Moto3, conquistou a vitória nº 800 da Honda em Motorland (Teruel)

 

Dorna Sports é uma empresa internacional de gestão e marketing esportivo sediada em Madrid (Espanha) que desde 1992 obteve da Federação Internacional de Motociclismo (FIM), o único órgão com autoridade de organizar campeonatos mundiais de motocicletas, os diretos exclusivos comerciais e televisivos relativos ao Campeonato Mundial de Motos. Dez anos depois (2002), a classe principal assumiu o formato atual da MotoGP. Investindo em uma regulamentação que privilegiasse a disputa via equalização de recursos, a empresa transformou a MotoGP em um espetáculo com abrangência mundial. Para organizar um campeonato em 2020 a empresa foi obrigada a ajustar diversos procedimentos, provas sem público privam os administradores de autódromos de uma receita importante, toda a engenharia econômica teve ser refeita e valeu o lema principal dos artistas de circo: “O espetáculo não pode parar”.

 

Marc Márquez se acidentou em Jerez na abertura da temporada


A expressão popular “Desgraça pouca é bobagem” provou a sua eficiência ao acontecer, na primeira prova da temporada, um acidente com Marc Márquez que tirou da disputa uma de suas principais referências. O 6 vezes campeão do mundo estava no auge de sua forma física e técnica, havia completado uma temporada dos sonhos, conquistando 420 dos 475 pontos possíveis em 2019, um feito inimaginável nos últimos tempos. Sem uma referência clara as disputas ficaram em aberto, a presente temporada apresenta dois jovens pilotos em seu segundo ano na principal categoria liderando a disputa, em 11 provas 8 pilotos já venceram, um número muito próximo dos 9 em 18 provas de 2016, ano em que houve uma grande revolução na categoria com troca de fornecedor exclusivo de pneus e obrigatoriedade de uso de uma central eletrônica padronizada.

Regularidade de Joan Mir o levou à liderança do campeonato

 

Joan Mir, que lidera o campeonato, ainda não conseguiu uma vitória enquanto seu concorrente mais próximo, Fabio Quartararo, conta com 3 primeiros lugares e não pontuou em 2 provas. As características desta temporada tem sido a imprevisibilidade, o sucesso de equipes independentes (6 vitórias contra 5 de equipes oficiais) e os bons resultados obtidos por modelos 2019 (Zarco & Nakagami). A Honda melhor classificada no mundial, o modelo 2019 de Takaaki Nakagami da independente LCR acumula 92 pontos com uma versão antiga da RC213V, contra apenas 67 de Alex Márquez da equipe oficial de fábrica com um modelo atualizado. Cinco fábricas classificam seus protótipos entre os Top-10 do campeonato, 3 Yamaha (Quartararo, Vinales e Morbidelli), 2 Suzuki (Rins & Mir), duas KTM (Pol Espargaro & Miguel Oliveira), 2 Ducati (Dovizioso & Miller) e uma única Honda (Nakagami), 5 destes pilotos competem por equipes independentes.

 

A solução possível para a temporada de 2020 encontrada pelos organizadores para manter as equipes em atividade e apresentar algum retorno aos patrocinadores foi condensar as provas em fins de semana seguidos, repetindo provas em um mesmo circuito. Este recurso contribui para reduzir a mobilidade do staff das equipes, entretanto se as características de um traçado são adequadas para um conceito de equipamento para um concorrente específico, podem resultar em um grande benefício. Houve também uma nova construção do pneu traseiro que exigiu um novo modo de pilotar, não bem assimilado por nomes consolidados do esporte, Andrea Dovizioso tem sido um crítico contumaz, diz que todo o know-how acumulado na carreira tem pouca validade com o novo componente. Valentino Rossi. Uma legenda do esporte, só conseguiu pontuação em 5 das 11 provas disputadas, sendo que nas duas últimas esteve afastado por ter testado positivo para a Covid-19.

 

Todo o campeonato restrito à Europa e concentrado em pouco tempo causou um problema para os engenheiros. Em tempos normais as provas eram itinerantes buscando sempre uma estação do ano mais favorável. Em 2020 não foi possível, tivemos provas no auge do verão e em outras condições de clima (frio ou calor) que não seriam comuns em temporadas normais. Em uma atividade onde um dos talentos básicos do atleta é a capacidade de manter os pneus aquecidos em uma janela estreita, a temperatura da pista pode decidir o vencedor. Talvez este detalhe explique mudanças abissais de rendimento de Fabio Quartararo nas duas primeiras provas da temporada e em algumas outras pistas como, por exemplo, no Circuito Marco Simoncelli em Misano.

 

 

Valentino Rossi & Marc Márquez são os campeões mundiais em atividade


Existem ainda interpretações que a atual temporada, pelo cancelamento de GPs fora da Europa, não poderia ser considerada um campeonato mundial, fato contestado com veemência pelos pilotos com chances de vencer a competição. Há quem diga que, no máximo, poderia ser um tipo de “Champions League” do motociclismo, um título que para equipes europeias de futebol é mais importante que o mundial de clubes da Fifa.

 

A ausência, pela primeira vez em muitos anos, de pelo menos um campeão mundial da principal categoria em algumas provas justificaria a pouca representatividade do título. Marc Márquez e Valentino Rossi são os únicos inscritos que se enquadram neste requisito. Um acordo entre equipes antes do início da temporada, para baixar custos, impede a presença de pilotos de testes como “Wild Cards” (pilotos convidados), que em tese excluiria a possibilidade de Jorge Lorenzo substituir eventualmente Valentino Rossi durante sua ausência, por estar cumprindo isolamento por conta da Covid-19. Fica difícil entender depois que a Honda substituiu Marc Márquez por Stefan Bradl, porém talvez seja uma maneira de evitar constrangimentos para Rossi no caso de algum excelente resultado do piloto de Palma de Mallorca.

 

MotoGP - Temporada Insana

 MotoGP – Temporada Insana

Pista de Imatra (Finlândia) cruzava uma via férrea

 

A vida do francês Michel de Nostredame (1503-1566) foi intensa. Estudou medicina, inventou seus próprios remédios, interpretou o horóscopo de membros da realeza (entre outros clientes), e com muito talento criou uma aura milagrosa em torno de si mesmo.

Mudou seu nome para uma forma latinizada, Nostradamus, para ser associado com a sabedoria dos antigos, escreveu centenas de versos enigmáticos que chamou de profecias e até os dias atuais cativa os crédulos que acreditam no sobrenatural. Seus defensores mais ardorosos creem que Nostradamus anteviu todos os grandes acontecimentos da História entre sua morte e os dias de hoje, sem falar no que ainda aguarda a humanidade no futuro. Há quem diga que até o desastre da barragem de Brumadinho em janeiro de 2019 foi prevista em detalhe nas profecias de Nostradamus, e que ele teria indicado inclusive o número aproximado de fatalidades, 259 pessoas, e o desaparecimento de outras 11.

Porém nem o mais arguto seguidor de Nostradamus consegue interpretar o que acontece no mais estranho ano da MotoGP de todos os tempos. Nunca houve em mais de 7 décadas de disputa do mundial de motovelocidade uma temporada como 2020.

Várias razões podem ser listadas para que esta seja um ano diferente. É só a 4ª oportunidade nos registros de 72 anos de disputa em que o campeão mundial de MotoGP não defende seu título. A última vez que isso aconteceu foi em 1961, depois que o campeão classe 500cc John Surtees trocou a MV Agusta por um Fórmula 1 construído pela Lotus. Todos os anos, desde então, o campeão mundial do ano anterior tenta manter a sua hegemonia. A bem da verdade, Marc Márquez alinhou para a primeira largada em Jerez, porém não marcou um único ponto. Esta temporada está restrita às pistas europeias e é a única afetada por uma pandemia global. Com 10 provas já disputadas, esta é a temporada com menor pontuação dos líderes desde o início do campeonato na década de 1950.

Após as dez primeiras provas de 2020 Joan Mir lidera o campeonato com 121 pontos, menos da metade dos 250 pontos possíveis. A única vez que o campeonato foi conquistado com menos de 50% foi em 1952, quando Umberto Masetti, com uma Gilera, ficou com o título com 43,7% dos pontos disponíveis. Mir está atualmente em 48,4% dos pontos disputados, comparados com a eficiência de 88,4% de Márquez em 2019 indica que, se estivesse na disputa, o atual campeão seria bem mais que um simples favorito ao título.

Esta comparação entre as décadas de 50 e a atual é absurda. As máquinas que disputavam o mundial nos anos 50 eram muito frágeis, montadas por mecânicos carentes de formação técnica em oficinas precárias e com poucos recursos. A quantidade de abandonos por motivos mecânicos era frequente. Em 2020, os protótipos atuais da MotoGP são desenvolvidos com tecnologia de ponta e podem ser considerados indestrutíveis.

Joan Mir, o atual líder, tem pontuação baixa não por problemas em sua máquina, não pontuou em Jerez e na República Checa por acidentes e nas outras provas não conseguiu ser muito superior aos concorrentes, mas manteve um desempenho constante.

Há duas outras variáveis prejudicando os contendores; (1) uma nova concepção do pneu traseiro que muda toda a característica do equipamento e a (2) disponibilidade de pistas devido a pandemia, que forçou a MotoGP a realizar muitas corridas em épocas incomuns do ano. Pilotos e engenheiros encontram condições diversas, temperaturas de pistas não usuais e com dificuldades em conservar os pneus em uma janela de temperatura ideal. Esta é a razão de um piloto se dar super bem em um fim de semana e fracassar completamente no seguinte, por vezes na mesma pista. A presente temporada já apresentou 8 pilotos vencedores em 10 etapas e, paradoxalmente, o atual líder, Joan Mir, ainda não venceu. A equipe de fábrica da Suzuki é a estrela do campeonato até agora, o piloto mais consistente, Mir, conquistou 5 pódios, enquanto nenhum de seus concorrentes tem mais de 3.

Fabio Quartararo (Petronas Yamaha) é um caso à parte. Subiu ao pódio 3 vezes, com 3 vitórias. Depois da segunda prova na Andaluzia e sua segunda vitória confidenciou que seu maior adversário para a disputa do campeonato era a Covid-19.  Nas 5 provas seguintes seus resultados não atenderam às expectativas, inclusive com uma queda. Recuperou-se em Barcelona vencendo novamente, mas fracassou nas provas de Le Mans e Aragon perdendo a liderança do campeonato pela segunda vez este ano.

No início da temporada, a Honda apostava na competência de Marc Márquez e experiência de Cal Crutchlow. Perdeu os dois por acidentes na primeira prova e passou a depender de Takaaki Nakagami (com uma RC213V modelo 2019) e do rookie Alex Márquez. Taka está fazendo um campeonato regular, esteve no top10 em todas as provas, duas no top 5 e é o quinto colocado no mundial. Alex Márquez apresentou um excelente resultado na prova da França caracterizada por umidade na pista e repetiu a atuação no piso seco de Aragon. Seu sucesso nas últimas provas rendeu uma homenagem no 6 vezes campeão do Mundo Marc Márquez, em uma rede social ele expressou seu orgulho em ser a irmão de Alex.

A KTM está consolidando a sua atuação no mundial, com vitórias de Brad Binder (República Checa) e Miguel Oliveira (Áustria), seu principal piloto Pol Espargaro ainda não conseguiu vencer.  Com 3 poles e apenas uma vitória Maverick Vinales da Yamaha oficial já pode ser considerado o rei da inconsistência. Os desempenhos durante as provas de classificação quase nunca são reprisados durante as provas, para desespero de sua tripulação.

O 3 vezes vice-campeão Andrea Dovizioso pode se considerar a maior vítima do novo componente traseiro da Michelin. Sem assento para 2021 depois de recusar a oferta da Ducati, o piloto ficou brevemente na liderança depois de Misano 1, porém fora do top 5 em cinco corridas. A Ducati já foi considerada a Ferrari na MotoGP devido as desastrosas intervenções de seus diretores, o recente desencontro de informações entre os pilotos oficiais (Dovizioso e Petrucci) na classificação da prova de Aragon é apenas mais um exemplo da falta de harmonia na equipe.

O barão de Itararé, personagem fictícia criada por Aparício Torelly, popularizou uma frase lapidar: “ De onde menos se espera, não sai absolutamente nada”, que pode ser aplicada para avaliar a performance da Aprilia no mundial. Apesar de utilizar esta temporada um protótipo radicalmente novo, uma 10ª colocação foi o melhor resultado de Aleix Espargaro. A equipe ainda está privada dos serviços de Andrea Iannone, cujo recurso da penalização por uso de doping só deve ser julgado no final deste mês