quinta-feira, 26 de novembro de 2020

MotoGP - E la nave va

 

 
Joan Mir – Campeão da MotoGP em 2020

“E la nave va” é um filme italiano de 1983 dirigido por Federico Fellini que conta a história dos eventos ocorridos a bordo de um cruzeiro em um navio luxuoso, onde os amigos de uma falecida cantora de ópera se reúnem para o seu funeral. Nave também é um epíteto carinhoso utilizado pelo narrador Guto Nejaim para designar o protótipo da Suzuki pilotado pelo novo campeão mundial, o espanhol Joan Mir, relacionando com a designação da primeira estação espacial em órbita.

 

Estação espacial MIR

 

MIR é um termo do idioma russo que pode ser traduzido “Mundo” e foi o nome de uma estação espacial que operou na órbita baixa da Terra entre 1986 e 2001, lançada pela União Soviética e que, com o colapso do comunismo, passou a ser controlada pela Rússia. Foi a primeira estação espacial modular e sua montagem em órbita aconteceu entre 1986 e 1996. A estação MIR serviu como laboratório na pesquisa de ausência de gravidade, experimentos sobre biologia, física, astronomia, meteorologia e sistemas de naves espaciais com o objetivo de desenvolver tecnologias para a ocupação humana permanente do espaço.

 

O campeonato da MotoGP acabou e o rearranjo causado pela Covid-19 garantiu que nunca houve uma temporada com tantas surpresas como essa. Em apenas 14 etapas (a classe MotoGP não correu na abertura da temporada no Catar, quando houve provas da Moto2 e Moto3), cinco pilotos conquistaram a sua primeira vitória da carreira, impondo uma nova geração de vencedores. Este número (primeiras vitórias) é inédito na história da principal categoria do Mundial de Pilotos. Brad Binder, Joan Mir, Franco Morbidelli (3), Miguel Oliveira (2) e Fabio Quartararo (3) subiram no degrau mais alto do pódio nesta temporada. Os estreantes venceram 65% das provas realizadas e três deles comandando equipamentos de equipes satélites (Oliveira, Quartararo & Morbidelli). As grandes forças (fabricantes Yamaha, Honda e Ducat)i cederam espaço e proporcionaram uma mudança notável no equilíbrio de poder entre pilotos e equipes.

 

Iker Lecuona – Tech3 KTM

 

Nas últimas temporadas, a maioria das equipes oficiais optou por pilotos jovens e promissores que surgiam das classes Moto2 e Moto3, na esperança de repetir o fenômeno Marc Márquez. A pouca idade e falta de currículo permite investir relativamente pouco em salários e trabalhar com material humano mais maleável, não tão exigente. Os desentendimentos entre Andrea Dovizioso (piloto) e Gigi Dall'Igna (administrador da equipe) são uma prova que os interesses entre pilotos consagrados e equipe por vezes podem ser conflitantes. Adicionalmente os pilotos passaram a fazer parte do pacote de fornecimento do equipamento para equipes independentes, Alex Márquez assinou com a Honda e vai pilotar para a LCR, Iker Lecuona foi selecionado pela KTM e presta serviços à Tech3. Até Valentino Rossi, que viveu o seu melhor momento na Yamaha, foi emprestado para a satélite Petronas. A Suzuki apresenta o histórico mais bem-sucedido nesta área, Joan Mir e Alex Rins foram contratados quando eram jovens para que pudessem ser moldados para as características da GSX-RR.

 

Cal Crutchlow – Adeus como piloto regular

 

Marcos Valle no meio da década de 70 emplacou um sucesso chamado “Não confie em ninguém com mais de trinta”, que pode ser espelhada na MotoGP atual. Por muito tempo pilotos que já ultrapassaram à casa dos trinta como Cal Crutchlow, Andrea Dovizioso, Jorge Lorenzo e o interminável Valentino Rossi lideraram e venceram GPs. Com o sucesso de Márquez e Mir, pilotos com mais de trinta perderam o argumento da experiência, estão mais para candidatos à aposentadoria.

 

O ano se encerra com o adeus de vários ídolos. Cal Crutchlow foi o primeiro britânico a vencer na MotoGP desde Barry Sheene nos anos 70, disputou 168 GPs desde que iniciou sua carreira na principal categoria em 2011 e sofreu 179 acidentes (considerando apenas os ocorridos em fins de semana de corridas).  Andrea Dovizioso, com um histórico de229 GPs na classe principal e 327 GPs em todas as classes desde 2001, embora diga que decidiu ter um ano sabático em 2021, sabe que dificilmente vai voltar a alinhar em uma largada. Até pilotos que nunca brilharam na MotoGP e que, entretanto, contribuíam para o espetáculo como Tito Rabat também estão abandonando o barco. Rabat teve uma carreira brilhante na Moto2 (campeão em 2014) e nunca conseguiu sucesso na MotoGP, onde disputou 77 GPs desde 2016.

 

Chicho Lorenzo Competições

 

Joan Mir iniciou no motociclismo esportivo em sua ilha natal, Palma de Mallorca, onde frequentou a escola de competições de Chicho Lorenzo, pai de multicampeão Jorge Lorenzo. A técnica desenvolvida por Chicho não envolve a busca incessante de velocidade, exige repetição sem fim de exercícios de corrida em baixa velocidade em torno de cones até que a perfeição se internalize no subconsciente do piloto. Não é surpresa que o estilo de pilotagem de Mir seja semelhante ao de Lorenzo, fluido, sem sobressaltos e com um forte componente mental, leia-se comprometimento.

 

Quando Mir foi contratado em 2019 para pilotar uma Suzuki na MotoGP foi alertado que não se preocupasse com resultados, apenas tinha que se familiarizar com as corridas, a moto e os rivais. Em 2019 sofreu um acidente do pior tipo nos testes pós-GP da República Tcheca, os engenheiros da Suzuki sabiam que tinha sido causado por uma falha técnica, mas não sabiam exatamente qual. Há poucas coisas que preocupam mais um piloto que não saber como proceder para evitar um sinistro quando acelera a mais de 300 km/h em uma pista.

 

Joan Mir conseguiu o título de campeão da MotoGP 2020 por sua consistência. Embora não tenha pontuado em 3 corridas (Jerez, República Tcheca e Portimão) e tenha vencido em apenas uma, em 9 esteve entre os top 5 e foi beneficiado pela desastrosa atuação dos outros aspirantes ao título, Fábio Quartararo por exemplo conseguiu apenas 19 pontos nas 6 últimas provas. Se não foi uma temporada brilhante do espanhol, seu desempenho foi suficiente para somar mais pontos que todos os seus adversários.

 

Miguel Oliveira conquistou a primeira vitória para a Tech3 KTM

 

A temporada de 2020 foi caracterizada por vencedores e perdedores. Entre os vitoriosos está a equipe independente Tech3, que em 19 anos como satélite da Yamaha nunca conseguiu uma vitória e numa temporada curta com máquinas KTM viu Miguel Oliveira vencer duas vezes. Entre os perdedores a equipe oficial da Yamaha que por ser sido flagrada violando o regulamento perdeu representatividade, embora um piloto (Franco Morbidelli) com um protótipo de especificação 2019 da equipe satélite Petronas tenha conseguido o vice-campeonato. Das quatro Yamaha inscritas na competição, o modelo antigo foi o melhor classificado. Fábio Quartararo sonhou alto no início do ano, a cirurgia sofrida pelo espanhol Marc Márquez e a dupla vitória em Jerez indicavam que este seria o seu ano, porém o baixo rendimento na segunda prova na Áustria e a ausência de pontos em San Marino minaram suas aspirações. Ainda acompanhou o brilhante desempenho de seu colega de equipe que, com um equipamento Especificação B (2019), venceu 2 das 4 últimas provas. Como prêmio de consolação ganhou o BMW que é entregue ao piloto com maior rendimento nas classificações para o grid de largada, desde 2013 este prêmio era exclusivo da Honda #93 de Marc Márquez.

 

Em 2021 Quartararo assume a vaga de Valentino Rossi na equipe Yamaha oficial, ao lado de Maverick Vinales. Ele aprende as lições rápido, assim como o Doutor, nas últimas provas creditou seus maus resultados ao desempenho do equipamento.

 

A temporada de 2020, que por causa da Covid-19 programou GPs em localidades fora de época (clima muito quente ou muito frio), acrescida da novidade do pneu traseiro da Michelin que prejudicou os equipamentos que respondem melhor com curvas agressivas (motores com cilindros em V), e só foi possível graças à capacidade gerencial e de negociação dos organizadores, que inclusive administraram uma engenharia financeira diferenciada pela perda de bilheteria em provas sem público.


GSX-RR - A máquina mais equilibrada da temporada
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 Joan Mir é o Campeão Mundial de MotoGP de 2020 de fato e de direito, com méritos conquistados pela qualidade do seu equipamento e consistência da sua condução. Há motos que alinham no grid com potencial de performance melhor que a Suzuki GSR-XX, mas com características que só operam com plena eficiência em condições muito específicas. O equipamento utilizado por Mir e Rins não tem o melhor desempenho, mas sua ampla gama de operações, seu caráter equilibrado permite que os pilotos o levem ao limite em praticamente todas as pistas. O equilíbrio do protótipo também ajuda a cuidar dos pneus, desde o início a GSX-RR foi projetada para ser uma máquina equilibrada, em vez de ser muito forte em algumas áreas e inevitavelmente deixar a desejar em outras. A palavra mais importante no motociclismo esportivo é compromisso, é quase impossível melhorar uma característica sem prejudicar outra. A única desvantagem real da Suzuki é a falta de potência, que este ano foi em parte compensada pelo pneu traseiro da Michelin, os milissegundos que o equipamento perde em retas são compensados com maior velocidade em curvas.

 

Finalmente, longe de desmerecer a conquista de Mir, que foi obtida segundo as regras do jogo, é imperioso mencionar que Marc Márquez não participou da competição este ano. Se a Suzuki é o equipamento com janela de operação mais ampla no momento, Márquez é o piloto com maiores recursos, que consegue extrair 100% do desempenho de uma máquina mesmo quando as condições não são ideais, o clima não está correto e existem dificuldades com a durabilidade e aquecimento dos pneus. Na era dos 3 M (Michelin, Magneti & Marelli), a capacidade dos pilotos excede às vantagens dos equipamentos. Marc Márquez e Joan Mir compartilham uma característica de comportamento pessoal, mesmo quando as coisas não dão certo, nunca externaram reclamações públicas sobre o equipamento.


 A Suzuki e Joan Mir, campeões mundiais de 2020

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