Joan Mir –
Campeão da MotoGP em 2020
“E la nave va” é um filme italiano de 1983 dirigido
por Federico Fellini que conta a história dos eventos ocorridos a bordo de um
cruzeiro em um navio luxuoso, onde os amigos de uma falecida cantora de ópera
se reúnem para o seu funeral. Nave também é um epíteto carinhoso utilizado pelo
narrador Guto Nejaim para designar o protótipo da Suzuki pilotado pelo novo
campeão mundial, o espanhol Joan Mir, relacionando com a designação da primeira
estação espacial em órbita.
Estação espacial MIR
MIR é um termo do idioma russo que pode ser
traduzido “Mundo” e foi o nome de uma estação espacial que operou na órbita
baixa da Terra entre 1986 e 2001, lançada pela União Soviética e que, com o
colapso do comunismo, passou a ser controlada pela Rússia. Foi a primeira
estação espacial modular e sua montagem em órbita aconteceu entre 1986 e 1996.
A estação MIR serviu como laboratório na pesquisa de ausência de gravidade,
experimentos sobre biologia, física, astronomia, meteorologia e sistemas de
naves espaciais com o objetivo de desenvolver tecnologias para a ocupação
humana permanente do espaço.
O campeonato da MotoGP acabou e o rearranjo causado
pela Covid-19 garantiu que nunca houve uma temporada com tantas surpresas como
essa. Em apenas 14 etapas (a classe MotoGP não correu na abertura da temporada
no Catar, quando houve provas da Moto2 e Moto3), cinco pilotos conquistaram a
sua primeira vitória da carreira, impondo uma nova geração de vencedores. Este
número (primeiras vitórias) é inédito na história da principal categoria do
Mundial de Pilotos. Brad Binder, Joan Mir, Franco Morbidelli (3), Miguel
Oliveira (2) e Fabio Quartararo (3) subiram no degrau mais alto do pódio nesta
temporada. Os estreantes venceram 65% das provas realizadas e três deles
comandando equipamentos de equipes satélites (Oliveira, Quartararo &
Morbidelli). As grandes forças (fabricantes Yamaha, Honda e Ducat)i cederam
espaço e proporcionaram uma mudança notável no equilíbrio de poder entre
pilotos e equipes.
Iker Lecuona – Tech3 KTM
Nas últimas temporadas, a maioria das equipes
oficiais optou por pilotos jovens e promissores que surgiam das classes Moto2 e
Moto3, na esperança de repetir o fenômeno Marc Márquez. A pouca idade e falta
de currículo permite investir relativamente pouco em salários e trabalhar com
material humano mais maleável, não tão exigente. Os desentendimentos entre
Andrea Dovizioso (piloto) e Gigi Dall'Igna (administrador da equipe) são uma
prova que os interesses entre pilotos consagrados e equipe por vezes podem ser
conflitantes. Adicionalmente os pilotos passaram a fazer parte do pacote de
fornecimento do equipamento para equipes independentes, Alex Márquez assinou
com a Honda e vai pilotar para a LCR, Iker Lecuona foi selecionado pela KTM e
presta serviços à Tech3. Até Valentino Rossi, que viveu o seu melhor momento na
Yamaha, foi emprestado para a satélite Petronas. A Suzuki apresenta o histórico
mais bem-sucedido nesta área, Joan Mir e Alex Rins foram contratados quando
eram jovens para que pudessem ser moldados para as características da GSX-RR.
Marcos Valle no meio da década de 70 emplacou um
sucesso chamado “Não confie em ninguém com mais de trinta”, que pode ser
espelhada na MotoGP atual. Por muito tempo pilotos que já ultrapassaram à casa
dos trinta como Cal Crutchlow, Andrea Dovizioso, Jorge Lorenzo e o interminável
Valentino Rossi lideraram e venceram GPs. Com o sucesso de Márquez e Mir,
pilotos com mais de trinta perderam o argumento da experiência, estão mais para
candidatos à aposentadoria.
O ano se encerra com o adeus de vários ídolos. Cal
Crutchlow foi o primeiro britânico a vencer na MotoGP desde Barry Sheene nos
anos 70, disputou 168 GPs desde que iniciou sua carreira na principal categoria
em 2011 e sofreu 179 acidentes (considerando apenas os ocorridos em fins de
semana de corridas). Andrea Dovizioso, com um histórico de229 GPs na
classe principal e 327 GPs em todas as classes desde 2001, embora diga que
decidiu ter um ano sabático em 2021, sabe que dificilmente vai voltar a alinhar
em uma largada. Até pilotos que nunca brilharam na MotoGP e que, entretanto,
contribuíam para o espetáculo como Tito Rabat também estão abandonando o barco.
Rabat teve uma carreira brilhante na Moto2 (campeão em 2014) e nunca conseguiu
sucesso na MotoGP, onde disputou 77 GPs desde 2016.
Joan Mir iniciou no motociclismo esportivo em sua
ilha natal, Palma de Mallorca, onde frequentou a escola de competições de
Chicho Lorenzo, pai de multicampeão Jorge Lorenzo. A técnica desenvolvida por
Chicho não envolve a busca incessante de velocidade, exige repetição sem fim de
exercícios de corrida em baixa velocidade em torno de cones até que a perfeição
se internalize no subconsciente do piloto. Não é surpresa que o estilo de
pilotagem de Mir seja semelhante ao de Lorenzo, fluido, sem sobressaltos e com
um forte componente mental, leia-se comprometimento.
Quando Mir foi contratado em 2019 para pilotar uma
Suzuki na MotoGP foi alertado que não se preocupasse com resultados, apenas
tinha que se familiarizar com as corridas, a moto e os rivais. Em 2019 sofreu
um acidente do pior tipo nos testes pós-GP da República Tcheca, os engenheiros
da Suzuki sabiam que tinha sido causado por uma falha técnica, mas não sabiam
exatamente qual. Há poucas coisas que preocupam mais um piloto que não saber
como proceder para evitar um sinistro quando acelera a mais de 300 km/h em uma
pista.
Joan Mir conseguiu o título de campeão da MotoGP
2020 por sua consistência. Embora não tenha pontuado em 3 corridas (Jerez,
República Tcheca e Portimão) e tenha vencido em apenas uma, em 9 esteve entre
os top 5 e foi beneficiado pela desastrosa atuação dos outros aspirantes ao
título, Fábio Quartararo por exemplo conseguiu apenas 19 pontos nas 6 últimas
provas. Se não foi uma temporada brilhante do espanhol, seu desempenho foi
suficiente para somar mais pontos que todos os seus adversários.
Miguel Oliveira conquistou a primeira vitória para a Tech3 KTM
A temporada de 2020 foi caracterizada por vencedores
e perdedores. Entre os vitoriosos está a equipe independente Tech3, que em 19
anos como satélite da Yamaha nunca conseguiu uma vitória e numa temporada curta
com máquinas KTM viu Miguel Oliveira vencer duas vezes. Entre os perdedores a
equipe oficial da Yamaha que por ser sido flagrada violando o regulamento
perdeu representatividade, embora um piloto (Franco Morbidelli) com um protótipo
de especificação 2019 da equipe satélite Petronas tenha conseguido o
vice-campeonato. Das quatro Yamaha inscritas na competição, o modelo antigo foi
o melhor classificado. Fábio Quartararo sonhou alto no início do ano, a
cirurgia sofrida pelo espanhol Marc Márquez e a dupla vitória em Jerez
indicavam que este seria o seu ano, porém o baixo rendimento na segunda prova
na Áustria e a ausência de pontos em San Marino minaram suas aspirações. Ainda
acompanhou o brilhante desempenho de seu colega de equipe que, com um
equipamento Especificação B (2019), venceu 2 das 4 últimas provas. Como prêmio
de consolação ganhou o BMW que é entregue ao piloto com maior rendimento nas
classificações para o grid de largada, desde 2013 este prêmio era exclusivo da
Honda #93 de Marc Márquez.
Em 2021 Quartararo assume a vaga de Valentino Rossi
na equipe Yamaha oficial, ao lado de Maverick Vinales. Ele aprende as lições
rápido, assim como o Doutor, nas últimas provas creditou seus maus resultados
ao desempenho do equipamento.
A temporada de 2020, que por causa da Covid-19
programou GPs em localidades fora de época (clima muito quente ou muito frio),
acrescida da novidade do pneu traseiro da Michelin que prejudicou os
equipamentos que respondem melhor com curvas agressivas (motores com cilindros
em V), e só foi possível graças à capacidade gerencial e de negociação dos
organizadores, que inclusive administraram uma engenharia financeira
diferenciada pela perda de bilheteria em provas sem público.
Finalmente, longe de desmerecer a conquista de Mir,
que foi obtida segundo as regras do jogo, é imperioso mencionar que Marc
Márquez não participou da competição este ano. Se a Suzuki é o equipamento com
janela de operação mais ampla no momento, Márquez é o piloto com maiores
recursos, que consegue extrair 100% do desempenho de uma máquina mesmo quando
as condições não são ideais, o clima não está correto e existem dificuldades
com a durabilidade e aquecimento dos pneus. Na era dos 3 M (Michelin, Magneti
& Marelli), a capacidade dos pilotos excede às vantagens dos equipamentos.
Marc Márquez e Joan Mir compartilham uma característica de comportamento
pessoal, mesmo quando as coisas não dão certo, nunca externaram reclamações
públicas sobre o equipamento.
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