quinta-feira, 26 de novembro de 2020

MotoGP - O gambito da rainha

“O xadrez é um esporte que, quando praticado com assiduidade, desenvolve a capacidade de ... jogar xadrez”

 


Tem uma série de TV disponível no Netflix chamada “O Gambito da Rainha”, direcionada para pessoas que jogam ou admiram o xadrez, um esporte, que também pode ser considerado como arte ou ciência. As novas gerações, habituadas à cultura de comunicações rápidas curtas do Twitter dificilmente se encantam com o poderio bélico de Torres, a retidão eclesiástica de Bispos, a agilidade dos Cavalos, a descartabilidade dos Peões para proteção do rei e ao incomparável poder da Rainha, que são a essência do xadrez.

 

Os dicionários da língua portuguesa definem o termo gambito como um substantivo masculino que define um ardil para derrotar um adversário, um lance inicial do xadrez onde o sacrifício de um peão permite adquirir uma vantagem posicional ou causar a perda de uma peça importante do adversário.

 

As KTM de Binder e Oliveira sem concessões em 2021

 

A temporada de 2020 da MotoGP, que alguns consideram como épica por oportunizar a disputa do título por contendores que seriam considerados descartados em função dos registros históricos, ou insossa segundo a ótica de outros por acontecimentos que tiraram o foco de pilotos consagrados, apesar da pandemia, e de todas as dificuldades, está chegando ao final.

 

Os registros oficiais dos 72 anos de competições indicam que houve épocas onde a superioridade de alguns pilotos na classe principal foi incontestável. Marc Márquez é o recordista por vitórias em uma única temporada, 13 conquistas em 2014, e ainda compartilha com Mick Doohan o segundo índice por ano,12 primeiras colocações obtidas por Marc (2019) e por Mick (1997). Valentino Rossi e Giacomo Agostini compartilham a marca de 11 triunfos em um único ano, Rossi em 2001, 2002 (Honda) e 2005 (Yamaha) e Agostini em 1972 (MV Agusta). Casey Stoner e Agostini venceram 10 vezes, Stoner em 2 oportunidades (2007 com Ducati e 2011 com Honda) e Agostini em 3 (1968, 1969 & 1970, todas com MV Agusta). Em apenas duas temporadas o mesmo piloto venceu todas as provas realizadas, John Surtees em 1959 (7 GPs) e Agostini em 1968 (10 GPs), ambos equipados com MV Agusta.

 

O último grande ponto de inflexão técnica do mundial de motovelocidade aconteceu em 2002 quando, pressionados por políticas ambientais, as equipes migraram dos poluidores dois tempos para quatro tempos. Desde então já foram disputados 325 GPs, dos quais 248 (76,31%) foram vencidos por apenas 4 pilotos, Rossi, Lorenzo, Stoner, Pedrosa e Márquez.

 

Nicky Hayden - Campeão em 2006

 

Nem sempre foi assim. O histórico do campeonato mundial contabiliza disputas acirradas, onde o vencedor do título só foi conhecido na última prova. O mais significativo aconteceu na conquista do norte americano Nicky Hayden (Kentucky Boy) em 2006. Valentino Rossi estava com condições amplas de conquistar o título e era necessária uma sequência muito improvável de eventos para o italiano não emplacar seu sexto campeonato consecutivo. Nas próprias palavras de Hayden: “Preciso ter muita sorte e Rossi muito azar”. O inesperado aconteceu, no último GP do ano Rossi caiu, recuperou a sua Yamaha e conseguiu ainda a 13ª colocação, Hayden fez uma prova burocrática e com seu 3º lugar garantiu os pontos suficientes para conquistar o título.

 

Circuito Ricardo Tormo – Valência

 

A estranha temporada de 2020 está próxima do final, as três últimas provas, duas em Valência e a última no Algarve, devem ocorrer nos próximos fins de semana, 75 pontos possíveis no total, e o campeonato está em aberto com, pelo menos, 6 candidatos. A temporada condensada se aproxima do final com uma vantagem de 14 pontos do líder, em um campeonato de 14 provas, 11 já foram disputadas com 8 vencedores diferentes, 6 pilotos têm chances reais ao título com a curiosidade do líder da competição ainda não contabiliza nenhuma vitória.

 

Joan Mir, piloto da Suzuki nascido em Palma de Mallorca, lidera em número de pontos o mundial. Em um ano caótico, Mir tem sido o rei da consistência e ainda persegue a sua primeira vitória na classe principal. Se conseguir em uma das 3 provas que faltam, a temporada de 2020 deve igualar o recorde de 2016 em número de vencedores (9), se não alcançar este objetivo e manter a sua regularidade, pode ser o primeiro piloto da classe principal a conquistar o título sem ter pisado no degrau mais alto do pódio.

 

Seis pilotos podem ser considerados como candidatos ao título, além de Mir, Fábio Quartararo, Maverick Vinales, Franco Morbidelli, Andrea Dovizioso e Alex Rins, 3 Yamaha, 2 Suzuki e 1 Ducati (cadê as onipresentes Honda?). Uma equipe independente, a Petronas SRT é a única cujos pilotos já repetiram vitórias, 3 de Quartararo e 2 de Morbidelli, este com um modelo 2019.

 

Nunca houve em toda a história da classe principal da MotoGP um campeão sem pelo menos uma vitória na temporada. Se Mir conseguir este feito, seu título terá o mesmo valor de um disputado até a última prova como foi o de Nick Hayden em 2006 ou de um folgado como o último de Marc Márquez em 2019. O livro de regras da MotoGP define como vencedor da competição o piloto que durante todos os GPs do campeonato acumular o maior número de pontos. Vencer corridas é a melhor maneira de acumular pontos e no final do ano o título é dado ao piloto que tem mais, não para quem obteve mais vitórias, mais poles ou mais voltas rápidas. Um piloto ter mais vitórias que o campeão significa apenas que foi mais rápido em algumas provas, mas não foi rápido ou consistente o suficiente durante toda a temporada. Há quem faça uma alusão à parábola da lebre e da tartaruga, a lebre é claramente mais rápida, sua estratégia de corrida é falha e a vitória final é da tartaruga.

 

Emilio Alzamora - Campeão mundial de 125cc em 1999 sem nenhuma vitória


Nas classes de acesso existem registros de campeões mundiais sem vencer durante a temporada. O caso mais recente é o de Emilio Alzamora, assessor pessoal dos irmãos Márquez, que conquistou o título mundial de 125cc de 1999 sem vencer nenhum dos 14 GPs. No mesmo ano, seu adversário, Marco Melandri, venceu cinco. A história de Emilio na temporada de 1999 pode ser equiparada a uma rua que existe em Copacabana, Rio de Janeiro, chamada Bulhões de Carvalho, que o bom humor carioca rebatizou como “Quase-Quase”. Alzamora quase foi vitorioso em diversas ocasiões, ficou a 0,10 seg em Sepang, 0,01 seg em Barcelona, 0,18 seg em Sachsenring. Na prova final em Buenos Aires, Melandri venceu Alzamora por uma fração de segundo, porém não foi o suficiente. No final da temporada o mentor dos irmãos Márquez acumulou 227 pontos, 1 a mais que Melandri (226). Dez anos antes, Manuel Herreros ganhou o último título mundial das 80cc com uma Derbi sem vencer uma única corrida, supreendentemente o seu vice-campeão Stefan Dorflinger também terminou a temporada sem vitória. O homem mais rápido do ano o foi Peter Ottlque venceu 3 GPs, mas não conseguiu terminar outros 2, enquanto Herreros e Dorflinger marcaram pontos em todas as 6 provas da temporada. Motociclismo esportivo não é uma competição só de velocidade, a confiabilidade dos pilotos e equipamentos também é importante.

 

Xadrez e MotoGP têm algo em comum, a estratégia é fundamental. Evitar quedas e marcar pontos é mais importante que eventuais vitórias, como deve ter aprendido o 6 vezes campeão do mundo (na principal categoria) Marc Márquez. O espanhol vacilou em Jerez estava com o pódio garantido e tentou vencer, caiu e fraturou o braço, está pagando um preço muito alto.

 

Não há registros de fraturas em jogadores de xadrez

 

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