quinta-feira, 1 de outubro de 2020

MotoGP – Mundial em tempos de Corona Vírus

 

   

Largada do GP de Misano 2020


Para caracterizar um campeonato como mundial a abrangência geográfica é tão fundamental quanto a diversidade dos concorrentes. Protagonista em 2020, o Corona Vírus criou um contexto totalmente diferente para a temporada, alterando as estruturas da MotoGP desde as limitações geográficas impostas por barreiras sanitárias até a restrição de espectadores nos circuitos. O circo itinerante, que leva o espetáculo aos quatro cantos do mundo, este ano está restrito às fronteiras da Europa. Os 16 países que hospedaram GPs em 2019 foram limitados a 6 este ano, metade (7) das provas na Espanha. GPs icônicos como TT Assen e Mugello não constam da programação. Um circuito que não recebia provas da MotoGP, o Autódromo Internacional do Algarve (Portimão) deve fechar a temporada. 

 O desafio enfrentado pelos promotores do mundial foi hercúleo. Praticamente toda a máquina montada para dar suporte ao mundial teve que ser refeita ou adaptada. A engenharia financeira foi profundamente alterada, as equipes sofrem com a crise econômica mundial e um corte no orçamento foi necessário. Para reduzir custos os motores atuais foram congelados para a temporada 2021. O financiamento dos circuitos, cujas fontes de receita são a bilheteria, cessão de espaços comerciais durante o evento e contribuição com a indústria do turismo, simplesmente desapareceu. Os organizadores perderam as taxas de hospedagem e tiveram que bancar parte das despesas, negociaram com administrações políticas e sanitárias locais, regionais e nacionais acordos para viabilizar a realização dos eventos. Um protocolo de contenção de propagação do vírus foi montado e está sendo rigidamente observado.

 Há pilotos de 8 nacionalidades diferentes, a maioria de espanhóis ou italianos. Antes da identificação da pandemia, a Dorna, a entidade que detém os direitos de comercialização dos GPs, intermediou negociações para manter o piloto gaulês Johann Zarco na disputa, endereçando o mercado francês. Fábio Quartararo também tem nacionalidade francesa, porém desenvolveu toda a sua carreira na Espanha e não é tão festejado em sua terra natal.

 Com todas estas limitações, o campeonato está andamento. Houve o acidente com Marc Márquez na primeira prova da temporada, que o excluiu da disputa pelo quinto campeonato consecutivo. Uma versão compacta com apenas 14 etapas e a adaptação dos protótipos e pilotos a uma nova concepção de pneu traseiro são as tônicas desta temporada.

 Estamos com 6 provas concluídas de uma temporada possível, de 14 GPs. Foram duas provas em Jerez, uma semana de folga seguida de três em fins de semana consecutivos (uma corrida em Brno e duas na Áustria), mais um intervalo de dois fins semana antes do primeiro GP em Misano.   Até agora foi um campeonato cuja característica principal foi desafiar qualquer tipo de prognóstico.

 Marc Márquez começou a temporada como o favorito para vencer mais um título, porém dois erros durante a primeira corrida, o primeiro saindo da pista e sendo ultrapassado por quase todo o grid enquanto excursionava pela brita, o segundo ao sair de frente em uma curva depois de uma recuperação excepcional, já na disputa pela segunda posição, resultou em um braço fraturado. Somando estes infortúnios a um erro de avaliação, estressar a placa que segurava o úmero quebrado, que exigiu um segundo procedimento cirúrgico para encaixar uma nova placa o excluíram completamente da disputa pelo campeonato. Márquez e a equipe esqueceram que a função da placa de titânio utilizada para consolidar fraturas é manter o osso alinhado, não suportar os esforços que o membro sinistrado está submetido durante uma prova. Este conjunto de adversidades sofridas pelo campeão prova que, ao contrário do que divulgavam as fake-news, Marc Márquez é humano.

 Diz o ditado que, na ausência do gato, os ratos fazem a festa. Com Márquez fora, a MotoGP contabilizou cinco vencedores nas seis primeiras corridas. Duas vitórias consecutivas de Fábio Quartararo na satélite Petronas Yamaha (com um equipamento igual aos da equipe oficial). Uma vitória do estreante para Brad Binder em sua primeira temporada na classe principal, a primeira para a KTM. Andrea Dovizioso estendendo a invencibilidade da Ducati no Red Bull Ring, antes de Miguel Oliveira quebrar essa sequência ao vencer com a KTM de uma equipe independente (a KTM RC16 da Tech3 KTM RC16 é idêntica às utilizadas pela equipe oficial). Por último a consagração de Franco Morbidelli da Petronas Yamaha. Quatro corridas vencidas por pilotos de equipes satélites em sua segunda temporada na classe principal. Uma vitória de um novato. Apenas uma vitória de um veterano, que tem no currículo 3 vice-campeonatos consecutivos nos últimos três anos.

 

Valentino Rossi em Misano 2020

 

O intervalo entre Jerez e a tripla jornada de Brno e Spielberg foi um ponto de inflexão para o desempenho das Yamaha, que marcaram o início da temporada como favoritas ao título. Duas provas com a vitória de Quartararo, 50 pontos conquistados em 50 disputados, o piloto de fábrica Maverick Vinales obteve dois segundos lugares e Valentino Rossi contribuiu para a primeiro pódio exclusivo da Yamaha desde 2014.

Entretanto bons resultados não implicam necessariamente em felicidade geral, a fábrica perdeu três motores no curto espaço de dois fins de semana, uma falha que pode indicar um problema de controle de qualidade e as válvulas foram eleitas como vilãs da história. Como os motores estão lacrados para a temporada, a Yamaha ensaiou um pedido para substituir as válvulas por motivos de segurança, porém recuou, como havia o risco de serem introduzidos melhoramentos durante o processo, outros fabricantes exigiram a fiscalização “in loco” por seus engenheiros. Para evitar expor soluções tecnológicas para a concorrência, a fábrica resolveu conviver com o problema minimizando os riscos reduzindo a rotação em, não é informação oficial, 500 RPM. Em outras palavras, reduzir a potência de propulsores que já não estão entre os melhores.

 Houve também os problemas com freios em Red Bull Ring. As Yamaha estavam superaquecendo seus freios, devido, em parte, as pinças Brembo. A fábrica disponibiliza quatro sistemas de pinças diferentes, nenhum foi adequado para o circuito de alta velocidade. Houve a necessidade de Vinales abandonar a moto ao se aproximar da Curva 3 totalmente sem freios. Valentino Rossi, o melhor dos pilotos da Yamaha nas duas corridas austríacas, terminou em quinto e nono respectivamente. Fabio Quartararo que marcou 50 pontos nas duas primeiras corridas, conseguiu somar apenas mais 20 pontos nos três que se seguiram e passou em branco na primeira prova de Misano.

 

Queda de Quartararo – Misano 2020

 

Abstraindo a dupla queda de Quartararo na última prova, a Yamaha ficou com a vitória (Morbidelli), 4º (Rossi) e 6º (Vinales). As Suzuki de Mir (3º) e Rins (5º) comprovam que Misano privilegia motores com cilindros em linha, a exceção que confirma a regra foi a Ducati V4 de Peco Bagnaia, 2º colocado. No mesmo circuito em 2019 Márquez venceu, quatro Yamaha ficaram com as colocações seguintes (na ordem, Quartararo, Vinales, Rossi & Morbidelli). Estes resultados podem servir de estímulo para a prova do próximo sinal de semana, embora na presente temporada todas as bolas de cristal estão apresentando defeitos

 

Ducati de Peco Bagnaia

 

Um dos competidores que pode ameaçar as Yamaha é a Ducati, o circuito de Misano é uma das suas pistas de teste oficiais. Duas Ducati estiveram no pódio (Petrucci & Dovizioso) em 2017, Dovizioso venceu em 2018 e no ano passado as Yamaha compartilharam o pódio com Márquez. O piloto italiano lidera o mundial e ainda não está confortável com a construção do pneu o pneu traseiro desde ano. Seu maior problema é a entrada de curvas, crucial em Misano, com uma série de pontos onde os pilotos acionam os freios com a moto inclinada. Dovizioso está seis pontos na frente de Quartararo, a corrida seguinte é em Barcelona, onde as Ducati podem usar sua maior potência, depois Le Mans, onde esteve no pódio em 2019. Ele pode encaminhar uma base sólida para o terço final do campeonato.

O benefício que a KTM tinha de haver realizado testes na pista antes da prova de domingo passado não foi representativo. As duas máquinas da equipe oficial (Pol Espargaro e Brad Binder) e as da independente Tech3 (Miguel Oliveira e Iker Lecuona) não conseguiram bons resultados. A qualificação que a mídia estava fazendo que a KRTM RC16 era a melhor moto do grid está em sob suspeita. Não há dúvidas que tanto Pol como Brad e Miguel ainda podem vencer nesta temporada, a questão é se tem folego para ameaçar os líderes atuais.

 


Suzuki de Joan Mir

 

Uma grata surpresa tem sido a Suzuki GSX-RR, parece ter alguns pontos fortes sérios sem nenhuma fraqueza óbvia: é ágil, veloz nas curvas como se espera de uma moto com cilindros em linha. Tem agilidade incomparável, uma capacidade surpreendente em curvas e ainda assim não perde muito em velocidade final comparada com as Ducati e Honda. Acelera, freia, gira e desenvolve bem em linha reta. Joan Mir e Alex Rins tem, ambos, 2 desistências em 6 provas, ambos com desempenho equivalente, embora Mir tenha 20 pontos a mais na contagem geral. Talvez a fábrica pudesse aparecer mais se tivesse uma equipe satélite e tem todos os motivos para esperar resultados fortes nas próximas corridas. Joan Mir esteve no pódio na última prova, o equipamento Suzuki evoluiu muito desde 2019. O bom desempenho em Misano pode se repetir em Barcelona, a moto responde com o equilíbrio nos itens de velocidade de curva e aceleração.

 

A equipe mais bem-sucedida de toda a MotoGP está atravessando um período difícil, pagando um preço alto por ser apostado suas fichas em um exército de um homem só. A RC213V é um equipamento excelente quando pilotado por Marc Márquez, forte nas mãos de Cal Crutchlow e complicado para qualquer outro piloto. Os resultados obtidos pela constituição atual da equipe oficial, Alex Márquez & Stefan Bradley são indignos de uma representação Honda. Marc e Cal afastados por problemas médicos deixaram toda a responsabilidade nas mãos de Takaaki Nakagami, que pilota um equipamento 2019, como resultado a Honda é a quinta colocada no campeonato de fabricantes, na frente apenas da Aprilia.

 


Aprilia de Aleix Espargaro

A RS-GP de 2020 é um equipamento melhor que a versão 2019, infelizmente para Aleix Espargaro, não é o suficiente para que ele seja verdadeiramente competitivo. A moto ainda não tem potência e precisa evoluir muito, como o motor deste ano não vai ser mudado para 2021, não tem como prever um futuro melhor para a equipe.

 

A evolução dos motores de 2 para 4 tempos foi caracterizada por mais que uma alteração técnica, houve uma mudança estrutural nas equipes. Seguindo o exemplo da Fórmula 1 onde a genialidade dos que o Comendador Ferrari chamava de garagistas, que desenvolviam o carro como um todo, a MotoGP substituiu o talento dos engenheiros-chefe por um conjunto de especialistas, cada qual responsável por sua área de excelência. O desempenho final do equipamento depende de decisões coletivas que envolvem o engenheiro de suspenção, administrador de telemetria, gestor do controle de software, especialista de motores e encarregado de estratégias, além dos técnicos dos fornecedores de freios e pneus, além obviamente do piloto. Não existe mais a figura do chefe de equipe plenipotenciário, a harmonia de esforços é que determina a competitividade do protótipo. O processo de um indivíduo cedendo lugar a um conjunto de especialistas foi necessário na medida que regulamentos e motos ficaram cada vez mais complexos. Infelizmente o grupo de pessoas imprescindíveis está sendo reduzido em um mundial onde relações públicas e promoção de marcas parecem mais importantes que pilotos e motocicletas.

 

 

Duas observações:

 

Stefan Bradl testou um capacete equipado com rádio em Misano. Esta inovação atenta contra um dos pilares da MotoGP, uma competição entre pilotos e equipamentos sem interferências externas. Todos lembram da pressão que a Ducati fez sobre Jorge Lorenzo na prova final de 2018 quando queriam que ele cedesse a posição para seu colega de equipe (Suggested Mapping: Mapping 8). A MotoGP corre o risco de que, como na Fórmula 1, vitórias sejam definidas por contratos entre executivos em escritórios. Hoje as comunicações e orientações entre pilotos e pessoal de retaguarda são unidirecionais, via painéis no muro do Pitlane ou curtas mensagens no dashboard. Com o equilíbrio sútil de uma moto em alta velocidade, qualquer desatenção do piloto pode causar acidentes.

 

 

O capacete de Franco Morbidelli era o mais próximo que o Brasil chegou da MotoGP desde que Alex Barros saiu da categoria. As cores da bandeira brasileira dividiam espaço com a bandeira italiana. Em sua primeira vitória na classe principal Morbidelli fez no capacete uma homenagem a seu mentor, Valentino Rossi. O Brasil, mesmo indiretamente, perdeu a oportunidade de estar no degrau mais alto do pódio.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário