Na reta mais rápida do Red Bull Ring, que não é uma das mais rápidas do campeonato, os pilotos atingem velocidades perto de 315 km/h, contornam a curva 2 e reduzem para entrar na 3, que é feita a 75 km/h. Uma sequência arriscada e complexa, principalmente quando os pilotos estão disputando posições e tem equipamentos com performance muito semelhante. É um procedimento complicado, a moto está desenvolvendo mais de 300 km/h, o piloto precisa acionar o freio dianteiro com uma inclinação de 50° na curva 2, com a certeza que, se algo acontecer, é possível que as motos deslizem até a curva 3.
Johann Zarco – Avintia
No
final do ano passado a Dorna, administradora da MotoGP, realizou um grande
esforço para arrumar uma equipe para Johann Zarco. Foi uma decisão pragmática
endereçando o mercado francês, onde o piloto tem grande popularidade. Os
franceses defendem os interesses de sua pátria e, por extensão, de seus
conterrâneos. Fabio Quartararo é francês de nascimento e embora seja mais
bem-sucedido, desenvolveu toda a sua carreira na Espanha, Zarco é considerado
um francês legítimo e tem a preferência do público. Negociando com fabricantes
e donos de equipes independentes, a Dorna conseguiu colocar Zarco na Avintia, com
uma moto Ducati de 2019 e garantia de assistência técnica da fábrica. Nas três
etapas que antecederam o primeiro GP em Red Bull Ring, Zarco foi 11º e 9º nas
provas escaldantes de Jerez e surpreendentemente o 3º colocado em Brno, na
frente das Ducati GP20 da equipe oficial e da satélite Pramac. É considerado um
piloto impetuoso, suas manobras na pista nem sempre são bem aceitas por outros
competidores. Na República Checa ele esteve envolvido em uma colisão que que
causou a queda de Pol Espargaro e na primeira prova na Áustria foi acusado de
causar o acidente que causou a bandeira vermelha ao tentar defender a sua
posição.
Na
8ª volta da prova no Red Bull Ring Zarco abriu demais a curva 2 e a partir
deste ponto as versões divergem. Zarco diz que não teve opção e buscou a tomada
para a curva 3 sem ter notado a presença da moto de Morbidelli. Alguns
observadores entendem que o francês sabia a posição da Yamaha 21 e tentou
proteger a sua colocação fazendo uma manobra defensiva, Morbidelli ficou sem
opção e sua roda dianteira chocou com a traseira da Ducati. Lembrando, era um
dos trechos de velocidade mais alta de toda a pista. Morbidelli caiu e sua moto
desgovernada foi capotando até a curva 3, onde passou como um projétil pelo
estreito espaço entre Vinales e Valentino que estavam saindo da curva. O
equipamento de Zarco, depois de descartar o piloto, continuou rodando alinhado
e em linha reta, comandado pelo movimento giroscópio, até bater na proteção da
defensa metálica e ser catapultado de volta para a pista, passando a
centímetros do capacete de Vinales. Por milagre os dois pilotos da Yamaha
oficial não foram atingidos e os dois diretamente envolvidos no incidente não
sofreram ferimentos graves.
Moto de Morbidelli passando entre Vinales e Rossi
Destroços da Ducati GP19 de Johann Zarco
No
calor da emoção as críticas ao piloto francês foram excepcionalmente cáusticas,
Morbidelli disse que Zarco é um assassino em potencial e Valentino Rossi apelou
para a intervenção dos organizadores porque, em suas palavras, “Ele está
louco”. Muitos pilotos quando reduzem a velocidade procuram fechar a porta para
impedir a oportunidade de ultrapassagem de quem vem atrás. Na opinião de
Valentino, Zarco abriu demais e travou para Morbidelli não o ultrapassar. “Isto
é muito perigoso quando se está acima de 300km/h, Morbidelli nunca teve
qualquer oportunidade de evitar a batida”.
A atitude do francês pôs em risco todos os que estavam na pista.
O
comportamento de Johann Zarco nas pistas não é exatamente de um piloto
preocupado com a segurança. Dani Pedrosa lembra que ele sempre está envolvido
em situações controversas. Um toque de Zarco derrubou Dani na Argentina em
2017, no mesmo ano nas vésperas da última e decisiva etapa em Valência a mãe de
Marc Márquez afirmou para a mídia que temia que um acidente com Zarco impedisse
a conquista do campeonato pelo filho. A equipe do gaulês liberou dados da
telemetria que, segundo afirmam, comprova que o piloto não causou o acidente, a
Federação Francesa de Motociclismo também saiu em defesa do piloto. Valentino
Rossi abrandou as críticas ao dizer que talvez não tenha sido proposital, mas
com certeza foi uma ação irresponsável que colocou em risco todos os pilotos.
Por sorte Zarco não vai estar presente na segunda prova de Red Bull Ring, o que
pode servir para acalmar os ânimos.
Parte
da culpa pode ser repartida entre as características do autódromo e os
regulamentos da MotoGP. O livro de regras da competição está orientado para
todos os participantes terem possibilidades de vitória, os protótipos que
disputam a competição estão com o desempenho muito semelhante. Durante os
últimos dez anos, as regras técnicas para MotoGP, Moto2 e Moto3 foram
reescritas inúmeras vezes para reduzir a diferença de performance entre
diferentes máquinas de modo a tornar as corridas mais emocionantes.
Esses
regulamentos criaram provas com muitas disputas. Novos recordes, quando
acontecem, sempre são com uma diferença mínima sobre os anteriores. Um
documento publicado pela organizadora da MotoGP, com estatísticas elencando as
10 corridas com a menor diferença entre os 15 primeiros colocados nos 71 anos
do mundial indicou que todas são das últimas 3 temporadas.
Quando
os pilotos usam protótipos e pneus muito semelhante, os tempos por volta tem
uma diferença mínima e durante as provas os pilotos ficam muito próximos. Esta
é a magia da MotoGP, é ótimo para os espectadores, porém tem consequências.
Aumenta a possibilidade de contatos entre os pilotos como também torna as
ultrapassagens mais complicadas, o comportamento das motos é semelhante nas
frenagens, em curvas ou em retas. Nos dias atuais é quase impossível fazer uma
ultrapassagem limpa, a menos que o piloto na frente cometa um erro.
A
consequência é que pilotos se arriscam e usam mais agressividade quando estão
tentando passar uns aos outros, ou tentam bloquear os que vem atrás. Nestas
condições as colisões são inevitáveis. A natureza humana indica que é
necessário procurar um culpado, quando em muitas vezes a responsabilidade por
uma ocorrência é difusa.
O
GP da Áustria
A
sabedoria popular é baseada no senso comum, está presente em nosso cotidiano e
passa de geração a geração. É lícito afirmar que esse tipo de conhecimento é
culturalmente aceito, o que não garante a sua validade. A cultura popular
resulta da observação de fatos que se repetem e não obrigatoriamente está
correta. Não é possível confiar nesse
tipo de conhecimento como se acredita na ciência, mas também não pode ser desconsiderado,
não estabelecer uma metodologia de testes comprobatórios não implica
necessariamente que está errado.
Os
exemplos encontrados na MotoGP são inúmeros. A Honda, fabricante mais vitoriosa
desde que as bases das regras atuais foram estabelecidas em 2002 (motores de 4
cilindros e quatro tempos), devia saber o que todos os comentaristas
esportivos, usualmente profetas do acontecido, sempre afirmam: “Quem tem um,
pode não ter ninguém”. Quando Dani Pedrosa foi aposentado no final de 2018,
todas as esperanças da equipe foram centradas na habilidade de Marc Márquez e
no currículo de Jorge Lorenzo. A junção de dois pilotos campeões do mundo não
funcionou, Márquez continuou a apresentar bons resultados, porém diversos
acidentes prejudicaram Lorenzo que, desencantado, solicitou desligamento da
equipe no final da temporada passada. Sem alternativas no mercado, a Honda
acreditou que competência era genética e contratou o campeão da Moto2 Alex
Márquez, irmão de Marc, que ainda não justificou o investimento. Com o acidente
de Marc Márquez na prova de abertura da temporada (fraturou o úmero), somado
com a infelicidade de Cal Crutchlow, principal piloto da equipe satélite LCR no
mesmo fim de semana (fraturou o escafoide), a Honda ficou sem os seus dois
melhores pilotos e conseguiu zero pódios nas 4 provas já realizadas. Os poucos
pontos que somou para o mundial de construtores foram em sua maioria obtidos
com uma RC213V modelo antigo (2019), tripulada por Takaaki Nakagami, Alex
Márquez e Stefan Bradl comparecem apenas como figurantes. Nada indica que vai
haver mudanças no próximo fim de semana (segunda prova no Red Bull Ring),
considerando que o campeão do mundo continua ausente e o britânico ainda não
está nas melhores condições.
A
KTM, que investiu muito nesta temporada, também está amargando os resultados de
outro ditado popular: “Goleiro azarado não joga na seleção”. Embora a fábrica
tenha conquistado a primeira vitória na República Checa com o novato Brad
Binder, seu principal piloto, Pol Espargaro, foi afastado da disputa em Brno
por uma manobra atrapalhada de Johann Zarco (sempre ele) quando tinha um ritmo
consistente que o creditava para a vitória. No primeiro GP da Áustria, onde
liderava, a prova foi interrompida por bandeira vermelha. Depois da relargada não
reprisou o seu desempenho brilhante do início e caiu em consequência de um
toque com Miguel Oliveira.
Nesta
temporada o protagonista tem sido do clima. Nas duas provas Jerez foi o calor,
em Spielberg, embora o radar meteorológico de grande confiabilidade tenha
previsto chuva, o dia da primeira corrida na Áustria esteve ensolarado. Foi um
drama em dois atos, um acidente entre Zarco e Morbidelli causou uma bandeira
vermelha, que serviu para quebrar o ritmo da KTM de Pol Espargaro, que estava
liderando a prova. A corrida foi atípica, com muitos acidentes.
Previsível
foi o resultado, vitória de Andrea Dovizioso, que manteve o histórico perfeito
de cinco vitórias da Ducati nas cinco GPs realizados no circuito. Dovizioso,
que no dia anterior havia confirmado que não estaria na equipe no próximo ano,
conquistou a 50ª vitória da fábrica, ratificou o seu histórico pessoal de, em
número de vitórias para a Ducati na classe principal, só perder para Casey
Stoner (23 de Casey e 15 de Dovi). As Ducati, que utilizam recursos que alteram
por comandos mecânicos/hidráulicos o ajuste da geometria (metamorfo), são
particularmente eficazes nas grandes retas de Red Bull Ring.
As
Yamaha que assombraram nas etapas de Jerez (5 pódios em 6 possíveis) não
repetiram o bom desempenho, Valentino Rossi obteve a 5ª colocação, a melhor
classificação entre os equipamentos da fábrica. As esperanças no desempenho de
Quartararo, Vinales e Morbidelli não corresponderam às expectativas, o francês,
atual líder do campeonato, ficou desconsolado. Como Alex Márquez venceu o
mundial de Moto2 na temporada passada por escassos 5 pontos, o seu objetivo era
abrir uma vantagem na liderança da pontuação que proporcione alguma
tranquilidade quando Marc Márquez voltar a competir, os poucos pontos obtidos
na Áustria foram decepcionantes.
A
fábrica que desafiou a superioridade das Ducati neste traçado (que parece ter
sido projetado para as características do equipamento) foi a Suzuki, garantiu o
primeiro pódio de Joan Mir com uma ultrapassagem fantástica por Jack Muller na
última volta, conseguindo a 2ª colocação. Alex Rins, ainda sem as melhores
condições, caiu enquanto tentava alcançar a liderança.
A
referência da 3.155º GP do Mundial de Motociclismo com certeza vai ser o
incidente entre Zarco e Morbidelli, não pelo que foi, mas pelo que poderia ter
sido. Como sempre acontece nestes casos houve uma divergência de narrativas,
muitos acusando a temeridade de Johann Zarco, uns poucos dividindo as
consequências com falhas do circuito.
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