Agnosia visual – um déficit neurológico que não permite
ao cérebro reconhecer objetos pela visão
A foto abaixo com certeza absoluta não é de um dispositivo aerodinâmico anexado a RS-GP da Aprilia em um teste privado da fábrica italiana, realizada da segunda-feira seguinte ao GP das Américas em abril deste ano. Pode ser um mecanismo para resfriar o pneu traseiro, um reforço para aumentar a rigidez do braço oscilante, um defletor de detritos ou, se for conveniente, um véu de noiva.
Aprilia
RS-GP no Circuito das Américas 20189
A MotoGP está trilhando um território estranho onde malandragens e argumentos jurídicos significam mais que a realidade. Tudo acontece como se os responsáveis pela homologação de componentes estejam sofrendo de um surto de agnosia visual, uma condição neurológica que deixa as pessoas incapazes de reconhecer objetos de uso comum. O Dr. Oliver Sacks, neurologista, escritor e químico amador anglo-americano, é professor de neurologia e psiquiatria na Universidade de Columbia, autor de um livro sobre pacientes que sofrem agnosia visual com o título “O homem que confundiu sua esposa com um chapéu”. As pessoas que decidem se um componente está alinhado ou não com os regulamentos da MotoGP, incluindo os juízes do tribunal de recurso na Suíça, não conseguem identificar para que servem as traquitanas submetidas para análise.
O início desta história pode ser identificado no GP de Valência em 2018. As chuvas oportunizaram que a Yamaha utilizasse uma solução criativa, colocar um defletor fixado no braço oscilante para retirar o excesso de água do pneu traseiro da M1. A prova foi interrompida por uma bandeira vermelha por excesso de chuva e reiniciada mais tarde. A Yamaha não se pronunciou sobre a eficiência da invenção, porém indicou para os projetistas da Ducati uma nova linha de desenvolvimento.
A
inspiração- Yamaha em Valência - 2018
No início da temporada a Ducati GP19 foi equipada com um componente fixado no braço oscilante, Aprilia, KTM, Honda e Suzuki alegaram que era uma violação das restrições que limitam a aerodinâmica e protocolaram um protesto formal. A Yamaha, talvez por ter utilizado algo semelhante no final da temporada passada decidiu não acompanhar os outros fabricantes. Um fato interessante é que durante a prova a temperatura ambiente e da pista oscilou em torno de 20 graus, todos os pilotos tiveram dificuldades em manter o aquecimento do pneu traseiro, não havia oportunidade mais desfavorável para forçar para baixo a temperatura.
Durante a reunião do tribunal de apelação para decidir a validade do uso do widget no braço oscilante da Ducati usado no GP do Qatar, abertura da temporada, os juízes concordaram com as alegações da fábrica italiana que se tratava de um artifício com a função de resfriar o pneu traseiro, sem a menor funcionalidade aerodinâmica como, por exemplo, aumentar o downforce e melhorar a aderência traseira.
Ducati
GP19 em Losail, Catar 2019
Uma vez que a função de um componente depende do modo como é chamada e a excrecência foi declarada legal, todos os outros fabricantes se sentiram autorizados a desenvolver seus próprios dispositivos de aerodinâmica (perdão, resfriadores) montados no braço oscilante.
A primeira equipe a propor uma solução criativa foi a Honda, que submeteu para aprovação um reforço para o braço oscilante com um formato estranho, para interligar dos dois lados havia uma área plana que poderia, óbvio que sem a menor intenção, funcionar como uma pequena asa. A criação foi testada na RC213V de Marc Márquez durante a sessão de FP2 de sexta-feira em Austin. A explicação do campeão do mundo foi hilária: “Tentamos algo novo sobre o braço oscilante, algo relacionado com rigidez” ele riu. “ Em verdade senti alguma coisa interessante – uma das diferenças está no ponto de frenagem, você pode sentir o downforce na parte de trás. Não acho que faz uma grande diferença para a temperatura do pneu! Temos que verificar os dados, analisar e compreender”. O clima hostil de sábado forçou o cancelamento de FP3 e impediu Marquez testar mais o dispositivo. Talvez se tivesse usado na corrida pudesse ter evitado a queda.
Aprilia e Honda testando seus próprios dispositivos é uma indicação clara que os engenheiros estão analisando com uma lupa os resultados e, provavelmente, mais “refrigeradores de pneus” apareçam nas próximas provas.
Os comentários do Márquez confirmaram a opinião da maioria especialistas de aerodinâmica que examinaram o dispositivo da GP19. Não há nada de errado nas tentativas do pessoal da Ducati em buscar novas soluções procurando brechas nos regulamentos. A organização da MotoGP precisa emitir orientações claras sobre a aerodinâmica antes que haja mais confusão, mais protestos e, por que não, mais casos de agnosia visual.
A MotoGP deve reunir os integrantes da Motorcycle Sports Manufacturers Association (MSMA), leia-se todos os fabricantes, para decidir o que deve ser feito. O problema é que há uma grande diferença de opiniões, a KTM não vê qualquer utilidade em contratar especialistas e investir no desenvolvimento de tecnologias que não possam ser portadas para motos comerciais, ou seja, deseja proibir qualquer tipo de recurso aerodinâmico. A ideia é radicalmente diferente da Ducati, o fabricante italiano entende que pode ser benéfico explorar esta nova área para tentar quebrar a hegemonia atual da Honda de Marc Márquez. Aparentemente Aprilia, Suzuki, Yamaha e a própria Honda não tem opinião formada ou preferem um meio termo.
A entidade que administra a MotoGP e tem a responsabilidade de decidir esta questão alega estar impedida de formular uma diretiva pelos contratos atualmente vigentes.
“Se houver unanimidade entre os fabricantes os anexos podem ser proibidos, entretanto todas as empresas têm o poder de veto”. O que já foi julgado pelo tribunal de alçada não pode ser simplesmente proibido, o que pode ser feito é esclarecer melhor as coisas e limpar as áreas cinzentas.
O problema óbvio da tentativa de fazer grandes alterações é que a MSMA deve ter concordância unânime para que uma regra seja alterada ou incluída no regulamento Geral da Competição, alternativa muito próxima do impossível quando as posições da KTM e Ducati são diametralmente opostas.
Esta situação já aconteceu com a MotoGP alguns anos atrás, quando a Dorna tentou convencer as fábricas a abandonar o seu software proprietário e adotar a ECU unificada, com controle de tração e dispositivos de auxílio ao piloto idênticos para todas as equipes. O objetivo era criar condições de competitividade para as equipes com menos recursos.
Reforço
de rigidez para o braço oscilante da RC213V em Austin 2019
Honda e Yamaha, que monopolizavam as vitórias, detestaram a iniciativa, tinham um pesado investimento em software proprietário e consideram a eletrônica uma importante área de desenvolvimento tecnológico. As duas empresas nipônicas consideraram seriamente a possibilidade de migrar da MotoGP, administrada pela Dorna, para a SuperBike, então controlada pela italiana Infront Sports. Nesta ocasião a Dorna contou com a sorte, em 2011 os investidores da empresa espanhola assumiram o controle da Infront, incluindo os ativos de TV de futebol e do SBK. As fábricas ficaram sem opção e, para não ficar fora das competições, foram obrigadas a utilizar o software unificado.
Quando a Ducati (sempre ela) começou a usar apêndices salientes na carenagem (winglets), o downforce gerado efetivamente representou uma vantagem competitiva e a ideia foi imediatamente copiada por todos os participantes. Os protótipos ficaram com uma aparência semelhante aos bandidos de antigos westerns mexicanos, com enormes bigodões. Ciente que uma escalada nos custos de desenvolvimento de soluções aerodinâmicas poderia comprometer a competitividade entre as equipes e privilegiar os orçamentos mais robustos, o uso das extensões foi regulamentado pela Dorna sob a alegação de potencial risco à integridade dos pilotos.
Agora a situação se repete, embora não esteja claro o que pode ser feito para conciliar os adeptos de motos limpas como a KTM, os que admitem algum efeito aerodinâmico como Honda, Yamaha, Suzuki e Aprilia e os que entendem que toda a brecha do regulamento deve ser explorada ao máximo, mesmo que para isso tenham que contar com a competência de seus advogados e a agnosia de juízes dos tribunais de alçada.
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