O Santo Graal das motos
de competição é criar um dispositivo que administre o equipamento quando a
frente desgarra, a RC213V #93 da Repsol Honda tem um, se chama Marc Márquez. A
história atual da MotoGP está sendo escrita centrada nesta e em outras habilidades
do atual campeão do mundo, não implica em que ele seja imbatível, até porque
existem nas pistas equipamentos mais rápidos que o dele. Seu talento único,
entretanto, faz a diferença.
A maioria das pessoas
identifica a capacidade de Márquez quando ele permite que a frente deslize e recupera
o controle em condições que normalmente resultariam em uma queda. Poucos
entendem que sua incrível competência em controlar a roda dianteira é um
diferencial que utiliza para obter mais velocidade no contorno das curvas e reduzir
os tempos por volta, para ser mais rápido que os outros competidores.
A recente prova de Le
Mans foi mais um evento onde a destreza extraordinária do piloto em administrar
sua roda dianteira deslizando, e recuperar situações de risco, fez a diferença.
Durante os três dias do evento aconteceram 109 acidentes, um valor absurdo para
condições de clima seco e um acréscimo notável se comparado com as etapas
anteriores, 31 no Catar, 20 em Rio Hondo, 30 no GP da Américas e 56 em Jerez.
Um destes acidentes foi protagonizado pelo atual campeão do mundo. Na manhã de
sábado ele estava tentando encontrar os limites da moto e da pista quando na
curva 3, com a moto em uma inclinação de 56 graus, a roda dianteira perdeu
totalmente a aderência. O slow motion
da queda é um espetáculo altamente didático, o pneu dianteiro girou alguns
graus para a esquerda, o guidão girou na mesma direção e a moto ficou descontrolada
durante uma eternidade, Márquez lutou para permanecer no controle, apoiando o cotovelo
e o joelho no asfalto, ajustando a posição do corpo e acelerando para criar carga
do pneu dianteiro. Durante esses poucos milissegundos o pneu ficou girando sem
aderência, o piloto tentou reequilibrar os esforços sobre a moto, reduzir a
derrapagem e dar à borracha do pneu dianteiro alguma chance de recuperar a
tração. A batalha foi perdida, ele caiu e danificou a carenagem, quebrando parte
do aero e um dos apoios para os pés. Márquez levantou, recuperou a moto, fez o
motor pegar no tranco e continuou como se nada tivesse acontecido, aumentando
seu ritmo nas próximas voltas para ser o segundo mais rápido da sessão, mesmo
que o equipamento tenha sido comprometido e apresentasse uma tendência a sair
do prumo sempre que o sistema de freios fosse acionado.
Existe uma explicação
lógica para a curva 3 do circuito Bugatti ter sido palco de tantos acidentes. O
lado esquerdo do pneu não tem contato com o asfalto desde a curva 12 e perde
calor, ao chegar na curva 3 pode ter atingido uma temperatura criticamente
baixa. É complicado para os pilotos administrarem qualquer mudança de
comportamento quando realizam o contorno perto dos 150 km/h. Durante o warm-up no dia da prova Tito Rabat se
acidentou na mesma curva que Márquez no dia anterior, o slow motion mostra a diferença de comportamento entre os dois
pilotos. O pneu dianteiro de Rabat girou e o guidão girou para a esquerda igual
a Márquez, e foi só. A única preocupação de Rabat foi evitar algum dano físico.
Lógico, o campeão mundial de Moto2 de 2015 ainda não tem a mesma formação de um
piloto de ponta da MotoGP, mas a sua incapacidade de administrar o pneu
dianteiro sem aderência foi um exemplo perfeito da diferença entre Márquez e seus
concorrentes.
Durante a corrida
aconteceu de novo. A frente da Honda #93 deslizou na curva 3 logo depois do
piloto realizar uma ultrapassagem sobre Johann Zarco e assumir a liderança. A
frente ficou solta por alguns milissegundos antes de Márquez apoiar o cotovelo
na pista e recuperar o controle, sem dúvida utilizando as lições aprendidas na
manhã anterior. Conclusão: a terceira vitória consecutiva definitivamente não
foi tão simples como um passeio no parque.
A Michelin
disponibilizou dois tipos de compostos de pneu dianteiro em Le Mans, médio e macio,
e três para o traseiro. Os pilotos com maior chance de vitória, Márquez,
Dovizioso e Zarco optaram pelo composto médio. Dovizioso durou cinco voltas
antes de perder a frente na curva 6 e cair, Zarco durou mais duas voltas, se
perdeu na curva 8 e abandonou.
O francês creditou seu
acidente à velocidade um pouco mais alta em uma curva em descida, com o
equipamento ainda pesado com o tanque de combustível cheio. A explicação do
italiano foi um pouco mais complexa: “Foi
a primeira vez que tentei usar o pneu dianteiro até o limite. Acionei o freio
uma fração de segundo mais tarde e perdi a tomada da curva, tentei deslizar a
parte traseira para ajudar a moto a virar e aliviar a carga no pneu dianteiro,
quando ela reagiu perdi a frente”.
O quarto colocado Jack
Miller correu com pneu da frente macio depois que o médio lhe causou alguns
sustos no warm-up. “Acho que o soft foi a opção certa, olhando
para o que aconteceu com Dovizioso com os médios. O dia de corrida foi quente,
mas com toda a borracha que a Moto2 e Moto3 deixaram na pista a aderência maior
do composto macio era necessária”. Miller passou a maior parte da corrida
atrás do segundo colocado, Danilo Petrucci que optou pelo composto macio, e do terceiro
classificado, Valentino Rossi com os médios. “Sempre soube que o pneu macio era um risco”, acrescentou o
australiano, “Sofri muito com deformações
e cometi alguns pequenos erros na curva 8. Algumas vezes errei o ponto de
frenagem e perdi a retomada de velocidade. Valentino estava na minha frente e cometeu
os mesmos erros”.
Vale mencionar que
Márquez foi o único piloto do grid a escolher o composto traseiro hard, uma opção arriscada em uma pista
com pouca aderência. Um dos heróis da prova, Cal Crutchlow compete com o mesmo
equipamento do líder do campeonato, passou a noite no hospital e esteve
presente no grid de largada. O britânico criou a melhor definição para o atual
campeão do mundo: “Marc é uma aberração! Ele
salva quedas com a moto inclinada mais de 60 graus umas 15 vezes por semana. Ninguém
faz nada parecido”.
O espanhol de 25 anos
não é o primeiro piloto capaz de administrar a perda de aderência do pneu
dianteiro com a moto inclinada, muito mais difícil que controlar o traseiro
derrapando. O primeiro competidor com esta habilidade foi "Fast" Freddie Spencer, o vencedor
dos mundiais de 1983 e 1985 da classe 500cc. O próprio Spencer reconhece que
houve um intervalo de 30 anos antes que alguém aparecesse e fizesse a mesma
coisa, ainda que de forma muito mais plástica, devido às imagens de slow motion da TV e graças ao melhor desempenho
dos pneus. Spencer também utilizava a gestão da roda dianteira, assim como faz
Márquez agora, para conseguir vencer. Muitas
pessoas definem isso como talento natural, mas esta habilidade é adquirida em
toda uma vida sobre motocicletas. Marc ganhou a sua primeira minimoto com três
anos de idade. Milhares de quilometros rodados desenvolvem reações instintivas,
algumas com resultados que desafiam a lógica.
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