terça-feira, 11 de agosto de 2020

MotoGP – Muito estranho

 

Johann Zarco - Brno 2020

 

Pilotos da MotoGP não podem ser considerados pessoas normais, utilizam critérios curiosos para enfrentar adversidades. O exemplo do cinco vezes campeão do mundo Jorge Lorenzo é didático, para ele o mês de junho da temporada de 2019 foi particularmente acidentado. No dia 19 no GP de Barcelona protagonizou uma lambança na 2ª volta, frenagem da curva 10, não conseguiu controlar a moto e caiu, levando junto Maverick Vinales, Andrea Dovizioso e Valentino Rossi. No dia 28 durante no FP1 do GP de Assen ele sofreu um low side na curva 7 e saiu deslizando pela pista em alta velocidade, foi catapultado ao entrar na brita e caiu de mau jeito, sofreu uma fratura na vertebra T6. Nesta ocasião o diagnóstico do médico foi pragmático, ele ficou a milímetros de uma lesão que o deixaria paraplégico. Jorge ponderou que o risco não compensava e decidiu encerrar a sua carreira. Com o passar do tempo percebeu que não conseguia ser feliz fora da MotoGP e assinou um contrato como piloto de testes da Yamaha, com a promessa que disputaria como wild card o GP de Barcelona. A pandemia atrapalhou seus planos, mas confirma que Lorenzo, mesmo ciente dos riscos, não suportou a ideia de ficar longe das pistas.

O processo de decisão dos pilotos não acessível às pessoas comuns. Em 2012 o britânico Cal Crutchlow quebrou o tornozelo esquerdo no FP3 do GP da Inglaterra, os médicos prescreveram um repouso de oito a 10 semanas, que implicaria em ficar ausente de 4 etapas da temporada. Era o GP na casa do piloto, uma rara oportunidade de estar próximo de seus torcedores. Cal racionalizou o conselho dos médicos, que sugeriram evitar esforços por algum tempo e decidiu que o intervalo entre 8 e dez horas era suficiente, alinhou para a largada e conquistou a 6ª posição. Para pilotos o curto prazo não vai além do próximo treino, médio prazo é a corrida de domingo e longo prazo o final da temporada. Qualquer coisa além disso não é relevante para o objetivo maior, tentar ganhar corridas e títulos.

Os pilotos que participam do mundial de motovelocidade constituem uma elite de atletas que não exige biótipo específico, jogadores de basquete tem na altura um diferencial, em jóqueis o tamanho e peso reduzidos são atributos que facilitam a prática da equitação. Um dos pilotos com maior sucesso na história da MotoGP é Valentino Rossi, 1,81 m de altura e pesa 69 kg, Dani Pedrosa tem apenas1,60 m e 51 kg, isto não o impediu de nos 13 anos em que esteve na principal categoria acumular 31 vitórias. Idade também não é um fator significativo, o mais velho (Valentino Rossi) tem 41 anos e o atual líder da temporada, Fábio Quartararo, apenas 21. Todos os que alinham no grid de largada tem em comum a extrema competitividade, assumem riscos extraordinários e utilizam toda a sua habilidade e talento no comando dos protótipos.


Queda de Jorge Lorenzo em Barcelona 2019

 Todas as pessoas com um mínimo de 2 neurônios sabiam que a decisão de Marc Márquez, em participar da segunda etapa em Jerez 4 dias depois de uma cirurgia para redução da fratura no úmero, era uma má ideia. O procedimento utilizou uma placa de platina fixada com 12 parafusos em seu braço direito. A necessidade de uma segunda cirurgia confirma que a vontade nem sempre é o bastante, tem coisas que simplesmente não podem ser apressadas como, por exemplo, recompor um osso fraturado.

Pilotos, via de regra, são incapazes de tomar decisões sensatas sobre sua própria saúde, seja a curto, médio ou longo prazo. Este comportamento diferenciado os habilita a participar da principal classe do motociclismo esportivo mundial, a capacidade de excluir do processo de decisão tudo o que não envolva corridas. Pela ótica das pessoas normais certas atitudes parecem despropositadas, porém quando analisadas pela perspectiva de um piloto, têm consistência e lógica.

É fácil condenar a imprudência de Marc Márquez ao tentar disputar o 2º GP da Andaluzia 4 dias depois de uma cirurgia no braço direito. Considerando que a tentativa causou a necessidade de um segundo procedimento o que parecia insensatez materializou-se como um colossal erro de avaliação. A única circunstância atenuante é que ficar com zero pontos em duas etapas podia inviabilizar a manutenção do seu título mundial. Seus adversários na temporada continuam pontuando. Fábio Quartararo acumulou mais 9 pontos no GP de Brno, agora tem 59 e Marc Márquez nenhum. 

Como o show deve continuar os pilotos sempre têm uma escolha complicada, tentar correr mesmo sem as condições ideais e acumular uns poucos pontos, ou ficar de fora da corrida e ter a certeza de zero pontos. O GP acontece com ou sem a sua presença. As redes sociais foram pródigas em espalhar versões contraditórias sobre a volta prematura do atual campeão, ora culpando a irresponsabilidade do piloto, ora indicando que houve pressões por parte da equipe e patrocinadores. O próprio Marc declarou que a decisão de correr foi sua e contrariou as recomendações da equipe. Na avaliação do atual campeão a possibilidade de um ganho de curto prazo sempre vence as consequências de longo prazo.

A MotoGP de 2020 está muito estranha. As entidades organizadoras realizaram intensas negociações para viabilizar um calendário com um número mínimo de competições para a temporada. Soluções criativas como limitação geográfica para evitar grandes deslocamentos e duas provas em fins de semana consecutivos no mesmo circuito possibilitaram a programação de 14 provas, todas no Europa. As tratativas envolveram governos, administrações de autódromos e autoridades sanitárias. A ausência de público nos eventos obrigou uma reengenharia financeira invertendo o fluxo dos recursos. Antes desta temporada a administradora cobrava dos circuitos uma taxa para hospedar um GP, que era compensada pelo aumento de turismo na região, locação de espaços internos e venda de ingressos. Sem público e com o turismo limitado pela pandemia, a administradora aluga o circuito e tem nas transmissões de TV e patrocínios as suas fontes de receita.

Os GPs foram programados para as datas possíveis, significa que alguns foram realizados em pleno verão europeu. O calor foi protagonista nas duas provassem Jerez, a primeira realizada com 32°de temperatura ambiente e 53° na pista, a segunda com respectivamente 36°e 59°, condições longe das ideais para a prática do motociclismo (em 2019 as temperaturas eram 21° e 42°). Em ambas as provas houve a supremacia das Yamaha, com um piloto da equipa satélite vencendo os oficiais de fábrica. As duas provas foram mais lentas que em 2019. Jerez também mostrou que motos com cilindros em linha, que realizam curvas em U mantendo a velocidade foram favorecidas com o novo pneu traseiro da Michelin. Motos potentes que utilizam o conceito de curvas em V (troca rápida de direção) tem dificuldades com o maior grip, que não facilita o deslizamento da traseira da moto nos contornos.

A prova em Brno foi a realização dos sonhos de competitividade entre fabricantes da administradora da MotoGP, não apenas o pódio que contrariou todas as previsões dos que acompanham o campeonato. Três fábricas diferentes, KTM (Binder), Yamaha (Morbidelli) e Ducati (Zarco), com uma Suzuki (Rins) chegando a meio segundo do 3º, foi a consagração da política de igualdade de condições para todos os pilotos que alinham no grid. Nas primeiras colocações houve a ausência de uma marca que é sinônimo de vitórias, a Honda, a máquina de Nakagami, a melhor colocada da fábrica, foi apenas o 8º.

A primeira vitória de uma KTM na MotoGP, do novato Brad Binder, o primeiro rookie a vencer desde Marc Márquez em 2013, é uma recompensa merecida pelos esforços da fábrica austríaca. Johann Zarco colocou uma Ducati da Avintia no pódio, longe da satélite de Jack Miller (9º), ambos à frente dos protótipos oficiais de Andrea Dovizioso e Danilo Petrucci. Outra máquina não de equipe oficial foi a do 2º colocado, Franco Morbidelli, que não tomou conhecimento da moto da equipe de fábrica de Valentino Rossi (5º).


Franco Morbidelli

 

Os resultados da corrida de Brno provocaram calafrios nos dirigentes das duas equipes oficiais que desde 2016 tem monopolizado os resultados nas pistas. As características do circuito da República Checa são favoráveis aos motores potentes, Honda e Ducati, e o resultado obtido por ambas foi, como diria um locutor esportivo, profundamente lamentável. Dovizioso e Petrucci (Ducati) ficaram em 11º e 12º, Alex Márquez em 15º e a outra Honda oficial (Stefan Bradl) fora da zona de pontuação. Não há uma explicação razoável mesmo porque, embora já exista a confirmação oficial que Marc Márquez não irá participar da primeira das duas provas na Áustria, poucos se animam a garantir que ele está fora da disputa pelo título.

A próxima etapa é no circuito Red Bull Ring, que já foi descrito como um traçado de 3 quilômetros de arrancada e um trecho em curva. Nos quatro anos em que participa do calendário da MotoGP só pilotos Ducati ocuparam o lugar mais alto do pódio, Iannone (2016), Dovizioso (2017 & 2019) e Lorenzo (2018). A topologia e o layout do circuito apresentam características favoráveis aos motores com cilindros em V, uma oportunidade ímpar da Ducati voltar a assumir o protagonismo na temporada. A Honda depende do pulso fraturado de Crutchlow e das possíveis mágicas de Nakagami (um dos três únicos pilotos do grid que utilizam equipamentos da temporada passada). Sobre Alex Márquez e Stefan Bradl se aplica a máxima do Barão de Itararé: “ de onde menos se espera, não sai absolutamente nada”.



Stefan Bradl & Alex Márquez

Nenhum comentário:

Postar um comentário