Pilotos da MotoGP não podem ser considerados pessoas
normais, utilizam critérios curiosos para enfrentar adversidades. O exemplo do
cinco vezes campeão do mundo Jorge Lorenzo é didático, para ele o mês de junho
da temporada de 2019 foi particularmente acidentado. No dia 19 no GP de
Barcelona protagonizou uma lambança na 2ª volta, frenagem da curva 10, não
conseguiu controlar a moto e caiu, levando junto Maverick Vinales, Andrea
Dovizioso e Valentino Rossi. No dia 28 durante no FP1 do GP de Assen ele sofreu
um low side na curva 7 e saiu deslizando pela pista em alta velocidade, foi
catapultado ao entrar na brita e caiu de mau jeito, sofreu uma fratura na
vertebra T6. Nesta ocasião o diagnóstico do médico foi pragmático, ele ficou a
milímetros de uma lesão que o deixaria paraplégico. Jorge ponderou que o risco
não compensava e decidiu encerrar a sua carreira. Com o passar do tempo
percebeu que não conseguia ser feliz fora da MotoGP e assinou um contrato como
piloto de testes da Yamaha, com a promessa que disputaria como wild card o GP
de Barcelona. A pandemia atrapalhou seus planos, mas confirma que Lorenzo,
mesmo ciente dos riscos, não suportou a ideia de ficar longe das pistas.
O processo de decisão dos pilotos não acessível às pessoas
comuns. Em 2012 o britânico Cal Crutchlow quebrou o tornozelo esquerdo no FP3
do GP da Inglaterra, os médicos prescreveram um repouso de oito a 10 semanas,
que implicaria em ficar ausente de 4 etapas da temporada. Era o GP na casa do
piloto, uma rara oportunidade de estar próximo de seus torcedores. Cal
racionalizou o conselho dos médicos, que sugeriram evitar esforços por algum
tempo e decidiu que o intervalo entre 8 e dez horas era suficiente, alinhou
para a largada e conquistou a 6ª posição. Para pilotos o curto prazo não vai além
do próximo treino, médio prazo é a corrida de domingo e longo prazo o final da
temporada. Qualquer coisa além disso não é relevante para o objetivo maior,
tentar ganhar corridas e títulos.
Os pilotos que participam do mundial de motovelocidade
constituem uma elite de atletas que não exige biótipo específico, jogadores de
basquete tem na altura um diferencial, em jóqueis o tamanho e peso reduzidos
são atributos que facilitam a prática da equitação. Um dos pilotos com maior
sucesso na história da MotoGP é Valentino Rossi, 1,81 m de altura e pesa 69 kg,
Dani Pedrosa tem apenas1,60 m e 51 kg, isto não o impediu de nos 13 anos em que
esteve na principal categoria acumular 31 vitórias. Idade também não é um fator
significativo, o mais velho (Valentino Rossi) tem 41 anos e o atual líder da
temporada, Fábio Quartararo, apenas 21. Todos os que alinham no grid de largada
tem em comum a extrema competitividade, assumem riscos extraordinários e
utilizam toda a sua habilidade e talento no comando dos protótipos.
Pilotos, via de regra, são incapazes de tomar decisões
sensatas sobre sua própria saúde, seja a curto, médio ou longo prazo. Este
comportamento diferenciado os habilita a participar da principal classe do
motociclismo esportivo mundial, a capacidade de excluir do processo de decisão
tudo o que não envolva corridas. Pela ótica das pessoas normais certas atitudes
parecem despropositadas, porém quando analisadas pela perspectiva de um piloto,
têm consistência e lógica.
É fácil condenar a imprudência de Marc Márquez ao tentar
disputar o 2º GP da Andaluzia 4 dias depois de uma cirurgia no braço direito.
Considerando que a tentativa causou a necessidade de um segundo procedimento o
que parecia insensatez materializou-se como um colossal erro de avaliação. A
única circunstância atenuante é que ficar com zero pontos em duas etapas podia
inviabilizar a manutenção do seu título mundial. Seus adversários na temporada
continuam pontuando. Fábio Quartararo acumulou mais 9 pontos no GP de Brno,
agora tem 59 e Marc Márquez nenhum.
Como o show deve continuar os pilotos sempre têm uma
escolha complicada, tentar correr mesmo sem as condições ideais e acumular uns
poucos pontos, ou ficar de fora da corrida e ter a certeza de zero pontos. O GP
acontece com ou sem a sua presença. As redes sociais foram pródigas em espalhar
versões contraditórias sobre a volta prematura do atual campeão, ora culpando a
irresponsabilidade do piloto, ora indicando que houve pressões por parte da
equipe e patrocinadores. O próprio Marc declarou que a decisão de correr foi
sua e contrariou as recomendações da equipe. Na avaliação do atual campeão a
possibilidade de um ganho de curto prazo sempre vence as consequências de longo
prazo.
A MotoGP de 2020 está muito estranha. As entidades organizadoras
realizaram intensas negociações para viabilizar um calendário com um número
mínimo de competições para a temporada. Soluções criativas como limitação
geográfica para evitar grandes deslocamentos e duas provas em fins de semana
consecutivos no mesmo circuito possibilitaram a programação de 14 provas, todas
no Europa. As tratativas envolveram governos, administrações de autódromos e
autoridades sanitárias. A ausência de público nos eventos obrigou uma
reengenharia financeira invertendo o fluxo dos recursos. Antes desta temporada
a administradora cobrava dos circuitos uma taxa para hospedar um GP, que era
compensada pelo aumento de turismo na região, locação de espaços internos e
venda de ingressos. Sem público e com o turismo limitado pela pandemia, a administradora
aluga o circuito e tem nas transmissões de TV e patrocínios as suas fontes de
receita.
Os GPs foram programados para as datas possíveis, significa
que alguns foram realizados em pleno verão europeu. O calor foi protagonista
nas duas provassem Jerez, a primeira realizada com 32°de temperatura ambiente e
53° na pista, a segunda com respectivamente 36°e 59°, condições longe das
ideais para a prática do motociclismo (em 2019 as temperaturas eram 21° e 42°).
Em ambas as provas houve a supremacia das Yamaha, com um piloto da equipa
satélite vencendo os oficiais de fábrica. As duas provas foram mais lentas que
em 2019. Jerez também mostrou que motos com cilindros em linha, que realizam
curvas em U mantendo a velocidade foram favorecidas com o novo pneu traseiro da
Michelin. Motos potentes que utilizam o conceito de curvas em V (troca rápida
de direção) tem dificuldades com o maior grip, que não facilita o deslizamento
da traseira da moto nos contornos.
A prova em Brno foi a realização dos sonhos de competitividade
entre fabricantes da administradora da MotoGP, não apenas o pódio que
contrariou todas as previsões dos que acompanham o campeonato. Três fábricas
diferentes, KTM (Binder), Yamaha (Morbidelli) e Ducati (Zarco), com uma Suzuki
(Rins) chegando a meio segundo do 3º, foi a consagração da política de
igualdade de condições para todos os pilotos que alinham no grid. Nas primeiras
colocações houve a ausência de uma marca que é sinônimo de vitórias, a Honda, a
máquina de Nakagami, a melhor colocada da fábrica, foi apenas o 8º.
A primeira vitória de uma KTM na MotoGP, do novato Brad
Binder, o primeiro rookie a vencer desde Marc Márquez em 2013, é uma recompensa
merecida pelos esforços da fábrica austríaca. Johann Zarco colocou uma Ducati
da Avintia no pódio, longe da satélite de Jack Miller (9º), ambos à frente dos
protótipos oficiais de Andrea Dovizioso e Danilo Petrucci. Outra máquina não de
equipe oficial foi a do 2º colocado, Franco Morbidelli, que não tomou
conhecimento da moto da equipe de fábrica de Valentino Rossi (5º).
Os resultados da corrida de Brno provocaram calafrios nos
dirigentes das duas equipes oficiais que desde 2016 tem monopolizado os
resultados nas pistas. As características do circuito da República Checa são
favoráveis aos motores potentes, Honda e Ducati, e o resultado obtido por ambas
foi, como diria um locutor esportivo, profundamente lamentável. Dovizioso e
Petrucci (Ducati) ficaram em 11º e 12º, Alex Márquez em 15º e a outra Honda
oficial (Stefan Bradl) fora da zona de pontuação. Não há uma explicação
razoável mesmo porque, embora já exista a confirmação oficial que Marc Márquez
não irá participar da primeira das duas provas na Áustria, poucos se animam a
garantir que ele está fora da disputa pelo título.
A próxima etapa é no circuito Red Bull Ring, que já foi
descrito como um traçado de 3 quilômetros de arrancada e um trecho em curva.
Nos quatro anos em que participa do calendário da MotoGP só pilotos Ducati
ocuparam o lugar mais alto do pódio, Iannone (2016), Dovizioso (2017 &
2019) e Lorenzo (2018). A topologia e o layout do circuito apresentam
características favoráveis aos motores com cilindros em V, uma oportunidade
ímpar da Ducati voltar a assumir o protagonismo na temporada. A Honda depende
do pulso fraturado de Crutchlow e das possíveis mágicas de Nakagami (um dos
três únicos pilotos do grid que utilizam equipamentos da temporada passada).
Sobre Alex Márquez e Stefan Bradl se aplica a máxima do Barão de Itararé: “ de
onde menos se espera, não sai absolutamente nada”.
Stefan Bradl & Alex Márquez
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