quarta-feira, 15 de abril de 2020

MotoGP – Controle da frente

Marc Márquez



Diz a lenta que o Santo Graal é um cálice que foi utilizado por Jesus Cristo na Última Ceia e, segundo a contam as Sagradas Escrituras, também teria sido utilizado por José de Arimatéia para colher o sangue de Jesus durante a crucificação. Existem evidências que o Graal é anterior ao cristianismo, suas origens podem ser encontradas na literatura que narra a busca do Rei Arthur e seus cavaleiros medievais por um recipiente mágico que poderia dar novo sabor aos alimentos, vida mais saudável e maior vigor às pessoas. Posteriormente sofreu um processo de cristianização e, neste contexto, traria prosperidade em um período de miséria. Na cultura cristã, o Santo Graal é uma panaceia para todos os males, uma maneira de chegar perto da perfeição.

O Santo Graal dos protótipos da MotoGP é um dispositivo que consiga manter a moto sob controle quando a roda dianteira perde a aderência durante uma curva. A única equipe que dispõe de algo neste sentido é a Repsol-Honda, ela chama de Marc Márquez.

A explicação é simples, uma única coisa que aparentemente só Márquez pode fazer é com consistência corrigir a moto, especificamente continuar com controle do equipamento quando o limite de tração do pneu dianteiro é excedido. Esta habilidade invulgar é a sua grande vantagem sobre os rivais. O fato é confirmado pelas declarações dos representantes técnicos de pneus e suspensões, que supervisionam os pilotos de todas as equipes e tem acesso às telemetrias dos equipamentos.

O engenheiro Piero Taramasso da Michelin (pneus) reconhece publicamente que: "Não há ninguém como Marc na técnica como controlar a frente". Sua opinião é compartilhada por Thomas Alatalo, supervisor de pista da Ohlins (suspensões):  “O modo de pilotar de Marc é completamente original, ninguém mais consegue manter o controle da dianteira deslizando por tanto tempo”. Marc Márquez tem um tipo de sentimento sobrenatural para a vencer a dificuldade de frenagem na aproximação e durante as curvas.  O trecho final da entrada de uma curva, os poucos metros que antecedem o contorno, é onde obtém a maior vantagem sobre seus adversários (menor tempo).

As observações dos técnicos recebem maior relevância porque não são de profissionais vinculados a uma equipe, eles supervisionam produtos que são fornecidos para todos os pilotos do grid (com exceção da KTM, que utiliza suspenção WP). Na prática trabalham para todos os pilotos, portanto ao fazer estas tais afirmações provavelmente devem conseguir mais inimigos que amigos no Pit Lane. Traduzindo, não é um elogio gratuito, é uma admiração legítima.

Engenheiros não são os únicos que reconhecem as habilidades diferenciadas de Marc Márquez. Pilotos não costumam elogiar seus rivais, mas todos no grid da MotoGP admiram seu talento. Um piloto de uma equipe concorrente insiste que o espanhol faria pódio com o equipamento de qualquer fabricante do grid, incluindo Aprilia e KTM.

Durante os períodos de teste pré-temporada quando os pilotos utilizam a técnica de andar atrás para estudar os adversários, um concorrente rival seguiu Márquez e assistiu apavorado como ele inclinou a sua Repsol Honda RC213V em uma curva e forçou a frente a escorregar no asfalto. O piloto sempre faz isto para aferir a aderência e entender o comportamento do protótipo, avaliar qual a reação do pneu quando muito próximo do limite do grip e como pode usar seus joelhos e cotovelos para evitar uma queda. O normal é os pilotos evitarem estas situações, Marc as provoca para saber até onde pode chegar. Ninguém mais faz isso.

Márquez já ganhou seis mundiais da principal categoria em sete anos, o último piloto a atingir resultado semelhante foi Giacomo Agostini no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Na época a sua MV Agusta 500cc era uma máquina muito superior às demais e a única moto com apoio da fábrica. Nos dias atuais as provas da MotoGP consistem inteiramente entre motos de fábrica, talvez com a exceção da Aprilia Racing Team Gressini.

Alguns meses atrás em uma entrevista Valentino Rossi foi perguntado se Marc Márquez já atingiu o auge de sua carreira. O multicampeão italiano disse que não sabia, ele ainda é jovem e provavelmente deve continuar evoluindo.

A maior capacidade de Márquez em controlar o veículo quando a roda da frente desliza nas curvas mais rápidas o diferencia de todos os concorrentes. A posição do corpo em relação à moto e cotovelos raspando na pista permitem que use mais velocidade de canto e ângulo mais inclinado para a sua RC213V fazer a curva mais rápido. Márquez pode inclinar em ângulos onde ninguém mais consegue sobreviver.

Esta habilidade de entrar nas curvas mais rápido implica em vantagens quando inicia a retomada de velocidade, o acelerador pode ser acionado de uma maneira mais controlada cuidando melhor do pneu e sair da curva mais veloz. Esta forma de pilotar exige muita força e o piloto trabalha bastante a sua condição física.

Testar os limites da moto e da pista tem um preço, Márquez caiu 122 vezes desde sua estreia na MotoGP em abril de 2013. Em 2019 foram 14 quedas, menos que as 25 em 2018, com uma moto mais potente e um chassi mais adequado ao seu estilo de pilotagem.

Sem dúvida, sua mentalidade também está em processo de evolução, por mais que ele odeie perder, sabe que às vezes não tem como vencer. A cirurgia em seu ombro de dezembro de 2018 o ensinou que para se manter competindo é necessário cuidar do físico. Em 2018 ele deslocou o ombro ao ser cumprimentado pela vitória da temporada por um colega enquanto fazia a volta de comemoração. Aconteceu de novo quando celebrava em sua casa às quatro da manhã.
Um fator importante para o sucesso de Márquez é o seu foco em vitórias, como ficou comprovado no GP da Tailândia. Nos testes iniciais o piloto sofreu um high-side que resultou em diversos hematomas na região lombar, perna esquerda e quadril direito. Era voz corrente no Pit Lane que ele não teria condições para alinhar para a largada, o campeonato estava praticamente ganho e os pontos da prova não fariam falta. Ele não só participou como venceu a prova depois de protagonizar um duelo sensacional com Fábio Quartararo.

“Marc é como Rainey, faz qualquer coisa para ganhar” é a avaliação de Mats Larsson, executivo da Ohlins, que frequenta o paddock desde o final dos anos 80. “Wayne Rainey ficava intragável quando não vencia uma prova, nos dias seguintes voltava a ser atencioso e gentil”. Marc Márquez é igual quando não vence uma prova, mal pode esperar pela próxima.
Os números mostram com clareza que Mar Márquez é o homem a ser batido. No atual line-up da MotoGP apenas Fábio Quartararo e Alex Rins estão próximos, não no mesmo nível, em controlar a moto quando a roda dianteira excede o grip.

Cal Crutchlow é talvez a voz mais autêntica dos competidores da MotoGP. Ele comanda um equipamento igual ao do atual campeão e tem uma opinião formada: “Marc é uma aberração. Ele consegue controlar a moto quando a frente desliza com 60 graus de inclinação 15 vezes por fim de semana. Quando consigo uma vez fico muito feliz”. Depois da prova de Valência em 2018, quando Marc perdeu a frente na curva 1 e evitou a queda, o piloto britânico criou uma frase definitiva: “Existem sete bilhões de pessoas neste planeta, só uma conseguiria manter o controle da moto naquelas condições”.



Nenhum comentário:

Postar um comentário