Márquez, Pedrosa & Lorenzo |
Circulou no Brasil entre o final da década de 60 e início dos
anos 70 uma publicação mensal chamada Realidade. O periódico apresentava
características inovadoras para a época, matérias escritas na primeira pessoa,
fotos que deixavam perceber a existência do fotógrafo e design gráfico pouco
tradicional. Era uma forma de escrita chamada de “New Journalism” que combinava
clareza e objetividade em uma estrutura com foco narrativo. O mote publicitário
da revista era: “ Nos jornais, rádios e TV você encontra a notícia, em
Realidade você descobre porque o fato foi notícia.
A notícia atual é que Jorge Lorenzo voltou a vencer, agora com
uma Ducati. Não foi fato episódico, já foram duas etapas consecutivas na atual
temporada. A vitória do piloto nascido em Palma de Mallorca na pista de Barcelona
e a segunda colocação do atual líder do mundial Marc Márquez na mesma prova confirmaram
a superioridade dos ibéricos nas competições motorizadas sobrede duas rodas.
Pilotos espanhóis dominam a MotoGP, já fazem isso a algum tempo.
Desde 2010, com exceção de Casey Stoner, todos os mundiais da principal
categoria foram vencidos por espanhóis (na verdade só por dois deles, Marc Márquez
e Jorge Lorenzo). A dominação dos ibéricos, porém, é mais ampla e se estende às
classes Moto2 e Moto3. Nos últimos 15 anos mais da metade dos títulos das
categorias de acesso foram vencidas por pilotos espanhóis que competem
atualmente na MotoGP, incluindo o atual campeão Marc Márquez, Jorge Lorenzo,
Maverick Vinales e Dani Pedrosa.
Qual a gênese deste protagonismo?
A hegemonia espanhola na motovelocidade não é obra do acaso. A
atual supremacia tem raízes difusas que incluem conjuntura política,
protecionismo, desenvolvimento industrial, condições financeiras, localização
geográfica e o clima mediterrâneo. Nos anos pós-guerra o General Franco
governava uma Espanha isolada do resto da Europa. Enquanto o continente
combateu o fascismo com um custo altíssimo em perdas materiais e de vidas
humanas, Franco e a Espanha mantiveram uma omissa neutralidade. Por esta razão
o país foi isolado e a única reação possível foi apelar para o patriotismo,
autossuficiência econômica e o proteger seu mercado, impedindo a invasão de
artigos estrangeiros. A incipiente indústria de fabricação de motos foi
blindada da concorrência externa, principalmente dos produtos japoneses.
Surgiram empresas como Bultaco, Derbi e outras que prosperaram com a fabricação
de motos de baixo custo com motores de dois tempos, sem muito agregado
tecnológico. Inevitavelmente moradores começaram a usar esses veículos em
disputas de rua, que passaram a ser organizadas em vilas e cidades em todo o
país.
No final da década de 60 as fábricas, principalmente Bultaco e
Derbi, já haviam desenvolvido tecnologia suficiente para construir equipamentos
para competir em GPs. As diversas competições locais formaram pilotos que
estavam adquirindo alguma notoriedade. O nome mais relevante deste tempo foi
Angel Nieto, que iniciou sua carreira disputando provas em Madrid e migrou para
Barcelona, onde se concentravam as indústrias, em busca de melhores
oportunidades. Nieto conseguiu uma vaga para trabalhar e competir na Derbi.
A parceria de Nieto com a Derbi durou uma década, com grande
sucesso nas categorias 50cc e 125cc, e prosseguiu em alta depois da sua transferência
para a Bultaco. Angel Nieto venceu 90 GPs oficiais da FIM e é terceiro piloto
mais laureado de todos os tempos, perdendo apenas para Giacomo Agostini e
Valentino Rossi.
Angel Nieto foi primeiro herói nacional da história recente da
Espanha, venerado por todo o país. O poder político tentou apropriar-se da sua
popularidade e ele participou de diversas audiências com o ditador Franco, que
acreditava no motociclismo para promover a Espanha como uma nação tecnicamente
avançada. Nieto mais tarde tornou-se amigo íntimo do rei Juan Carlos, um
apaixonado por provas de motos.
O sucesso de Angel Nieto nas competições internacionais foi o
marco inicial da paixão dos espanhóis pelas motos, que resultou na atual
hegemonia dos ibéricos na MotoGP. Quando Nieto se aposentou no início da década
de 1980, a indústria e os promotores de competições buscaram um novo ídolo para
manter acesa a chama do esporte. A Bultaco e a RFME (Real Federação Espanhola
de Motociclismo) organizaram uma série de competições para descobrir a próxima
geração de campeões do mundo. O vencedor da primeira Copa Bultaco foi um jovem
catalão pelo nome de Alfonso Pons, abreviado para Sito Pons, o primeiro
espanhol a conquistar um título mundial da categoria 250cc em 1988. Angel Nieto
e Sito Pons iniciaram uma longa trilha de sucesso de pilotos espanhóis nas
classes 50cc, 125cc e 250cc, culminando nas 500cc, a então maior capacidade
cúbica do motociclismo esportivo.
Já em final de carreira, Angel Nieto tentou participar de uma
prova com uma 500cc. Na época as industrias nativas não produziam motos com
esta cilindrada e políticas protecionistas impediam a importação de máquinas
japonesas, então não tinha como uma equipe genuinamente espanhola disputar a
categoria. Nieto era amigo pessoal do rei Juan Carlos, que fez um contato com o
CEO Soichiro Honda e conseguiu uma NS500 para o piloto disputar o GP de Espanha
em Jarama. Não foi uma ideia feliz, o equipamento era muito mais potente e
veloz que as máquinas que Nieto estava habituado, houve um acidente que
resultou em várias costelas quebradas.
A Espanha buscava gradativamente o reconhecimento como
protagonista do mundial do motociclismo e para alcançar este objetivo era necessário
vencer nas classes com maior cilindrada. Os sucessos de Nieto foram muito
festejados em casa, porém no resto do mundo as classes menores não eram muito
consideradas. Uma história da época foi registrada pelo jornalista e corredor
americano Dennis Noyes, que se mudou para na Espanha em 1970. Ele propôs
reativar com um reporter britânico uma parceria dos tempos que cobria a AMA,
ele faria a cobertura das provas de Angel Nieto e Victor Paloma e, em
retribuição, receberia notícias sobre Barry Sheene e Phil Read. O britânico
concordou em parte, enviaria matérias sobre os pilotos citados, porém não tinha
o menor interesse sobre os espanhóis, não eram significativos para os seus
leitores. Nenhuma surpresa que este tipo de comportamento não agradava a elite
de motociclismo espanhol, numa época em que estavam tentando atrair GPs
alavancados por um patriotismo fervoroso e a crescente admiração por pilotos
vitoriosos.
Uma análise nos registros da MotoGP indica que pilotos
britânicos ganharam 43 mundiais entre 1949 e 1976, os espanhóis venceram 48,
todos eles a partir de 1969. A prevalência de impérios acontece nos esportes
assim como na economia do mundo real. Nos primeiros anos da Moto GP britânicos
e italianos dominaram, sua indústria desenvolvida apoiava o crescimento de
talentos locais.
Geralmente os pilotos tem êxito por serem apoiados por uma indústria, porém nem sempre foi assim. Entre o final dos anos 1970 até a década de 1990 a MotoGP foi palco de espetáculos para americanos e australianos, pilotos que não eram respaldados por nenhuma associação com fábricas. A razão destes resultados foi a técnica de pilotagem. Americanos como Kenny Roberts e australianos como Mick Doohan cresceram disputando provas em pistas de terra e desenvolveram invulgar habilidade de controle do pneu traseiro. Durante estas duas décadas as motos 500cc de dois tempos entregavam muita potência para a roda motriz e seu domínio exigia uma técnica diferenciada. Esta característica do comportamento dos equipamentos explica porque, com duas exceções, americanos e australianos venceram todos mundiais de 500cc entre 1978 e 1998.
O comportamento nervoso do ‘dois tempos’ 500cc também explica a
falta de conquistas espanholas na categoria até o final da década de 1990,
quando significativos avanços na tecnologia de motor, chassis e pneus domaram o
seu desempenho e permitiram o sucesso de técnicas de condução semelhantes às
utilizadas nas classes 250cc e 125cc.
Alex Crivillé foi o primeiro espanhol a conseguir um título
mundial na 500cc em 1999. Sua carreira desenvolvida nas categorias de menor
cilindrada o capacitou como um herói nacional, em uma terra onde o esporte da
velocidade em duas rodas rivaliza com o futebol em termos de popularidade e
cobertura da mídia. Crivillé conseguiu seus primeiros pódios com uma Derbi em
1987 e venceu o Campeonato Mundial de 125cc em 1989 com uma moto Cobas equipada
com motor Rotax. Cobas foi uma das muitas pequenas equipes espanholas com
administração competente e apoiada por patrocinadores locais a obter algum
sucesso.
A associação de Crivillé com a 500cc em 1992 foi oportuna, neste
ano a Honda introduziu a versão do motor “big bang” (temporização assimétrica
de disparos dos cilindros), que facilitou muito o trabalho dos pilotos. O
ex-campeão 250cc Alfonso (Sito) Pons tinha sido promovido para as 500cc em 1990
e durante a temporada sofreu um sério acidente, que resultou em catorze
costelas quebradas e um hemopneumotórax grave no pulmão esquerdo. A recuperação
produziu um declínio em seu desempenho no ano seguinte (1991), então decidiu se
afastar e cedeu sua equipe e moto para Alex Crivillé, que conseguiu a primeira
vitória de um piloto espanhol na 500cc na sua temporada de estreia.
Além da qualidade e talento dos pilotos, as condições
econômicas, leia-se disponibilidade de recursos, foram importantes para os
ibéricos. Três anos depois da vitória isolada de Crivillé na 500cc a empresa de
petróleo Repsol assinou um contrato como principal patrocinadora da Honda.
Mesmo com o respaldo financeiro da petrolífera, Crivillé levou mais de cinco
anos para conquistar o título da principal categoria. A Repsol ainda está
associada a Honda, nos dias atuais cinco das doze equipes que alinham no grid
de largada da MotoGP têm patrocínios de empresas espanholas como, por exemplo,
o grupo Telefônica (Movistar) e a cervejaria Estrella Galicia.
Boas notícias costumam vir acompanhadas de boas notícias e foi o
que aconteceu com os espanhóis. A vitória de Crivillé veio poucos meses depois
que a Dorna, uma empresa de marketing esportivo vencer a empresa de Bernie
Ecclestone e conseguir a administração e direitos exclusivos de transmissões de
TV do mundial de motociclismo da FIM. A ocupação espanhola foi quase completa:
pilotos espanhóis, equipes espanholas, patrocinadores espanhóis e uma empresa
espanhola como titular dos direitos.
Dizem que quando se atinge o cume de uma montanha o passo
seguinte necessariamente é para baixo, como aconteceu com os britânicos quando
conseguiram o protagonismo no esporte. A Grã-Bretanha desperdiçou sua posição
dominante. O colapso da indústria de motocicletas do país não ajudou, mas a
Auto-Cycle Union (ACU), entidade dirigente do moto esporte na Grã-Bretanha, que
abrange as ilhas anglo-normandas e a ilha de Man, excluindo a Irlanda do Norte,
não conseguiu fortalecer um campeonato nacional para formar pilotos com
capacidade de enfrentar disputas internacionais.
Este é um ponto onde os espanhóis são particularmente eficazes.
Conseguem notoriedade a nível mundial porque desenvolvem fundamentos básicos em
casa criando campeonatos nacionais altamente competitivos e promovendo seus
melhores pilotos para competições internacionais e GPs.
O FIM World Championship Grand Prix é promovido pela FIM
(Federation Internationale de Motocyclisme), administrado pela Dorna Sports e
com a colaboração da IRTA (International Racing Teams Associatrion) e da MSMA
(Motorcycle Sports Manufacturers Association). A Dorna conseguiu obter o
controle sobre o motociclismo esportivo e como resultado a Espanha tornou-se o
centro global de competições sobre duas rodas. Existem no país diversos
campeonatos, desde minimotos até as categorias de maior cilindrada, fornecendo
uma curva de aprendizado crescente.
Para ressaltar como as coisas mudaram desde a década de 1970,
Kenny Roberts levou seu filho Kenny Junior para disputar a série de Ducados
Open da Espanha. Ele venceu o título mundial de 500cc em 2000. Dois dos três
britânicos que disputam o mundial deste ano fizeram estágio na Espanha antes de
migrar para a MotoGP. Scott Redding, que pilota para a Aprilia italiana ganhou
o título de MiniGP 80cc espanhola em 2005 e tornou-se um piloto da principal
categoria três anos mais tarde. Bradley Smith, que conduz uma KTM austríaca,
foi convidado em 2005 pela Dorna para competir no campeonato espanhol de como
parte da Academia de MotoGP da empresa. A direção da Dorna sempre soube que
para o campeonato ser verdadeiramente mundial precisava de criar novas estrelas
de outros países, não só na Espanha, até porque vendem os direitos de TV para
todo o globo.
Três pilotos espanhóis fizeram história em 2010 ao vencer todas
as três categorias de MotoGP: Márquez venceu o título da 125cc, Toni Elias
Moto2 e Lorenzo MotoGP. Foi o primeiro registro de campeões das três categorias
serem de um único país. A Espanha repetiu a tríplice coroa em 2013 e 2014,
conseguindo três vezes em cinco anos, feito inédito que nenhum outro país já
alcançou.
De alguma forma a Espanha mantém tipo uma linha de produção,
formando mais jovens pilotos do que em qualquer outro lugar. A Itália está
neste páreo, embora quase exclusivamente pelos esforços de Valentino Rossi e
sua academia VR46. Franco Morbidelli foi, em 2017 na Moto2, o primeiro campeão
mundial formado na VR46.
Embora compartilhando a pista com o italiano Valentino Rossi, o
segundo maior vencedor da história do motociclismo esportivo e ainda em
atividade, o espanhol Marc Márquez é atualmente o homem a ser batido nas
pistas. Ele ganhou o seu primeiro mundial da MotoGP em 2013, o primeiro campeão
estreante desde Kenny Roberts em 1978. Foi o campeão mais jovem, título que
pertencia a outro americano, Freddie Spencer. Também desbancou Mike Hailwood
como piloto mais jovem a vencer quatro títulos de MotoGP.
Marc Márquez |
Márquez conquistou seu mais recente título na última etapa do
ano passado, em Valência. Garantiu o título utilizando o que ele próprio chamou
de "estilo Márquez", lutar pela vitória mesmo que não há necessidade
e arriscar tudo na tentativa. Em algum momento o piloto de apenas 24 anos
perdeu o tempo da freada e a frente da moto na curva 1 do circuito, a mais de
100mph (160,92km/h), evitando a queda com seu cotovelo esquerdo e joelho arrastando
no asfalto. “Quando perdi a frente”, - explicou – “Decidi ficar com minha moto
até o fim. Não sei se vamos terminar no cascalho, na parede, ou.... Não sei,
mas vou ficar com ela”. Os espectadores prenderam a respiração e acompanharam o
seu esforço, afinal recompensado, para permanecer na prova. Márquez é como um
Deus na Espanha, ele é mais do que apenas um espanhol muito especial, como
explica seu colega e também piloto da Honda Cal Crutchlow: “Há 7 bilhões de
pessoas neste planeta, apenas uma delas poderia ter salvo aquela queda”.
Desde a primeira prova em 1949 até os dias atuais [junho de
2018] já foram disputados 3063 GPs oficiais em todas as classes. A Itália
continua a ser nação mais vencedora da principal categoria com 788 vitórias,
contra 589 da Espanha. A Itália registra vitórias desde o primeiro mundial, a
primeira foi no GP de Berna, na Suíça, em julho de 1949, 19 anos antes do
primeiro espanhol a subir o degrau mais alto do pódio de um GP no parque
Montjuic, em Barcelona.
Talvez haja uma outra razão para Itália e Espanha dominarem os
registros oficiais do mundial de motociclismo. Os verdadeiros motivos podem
estar ligados a paixão que estes dois povos dedicam ao esporte.
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