quarta-feira, 20 de junho de 2018

MotoGP - O protagonismo espanhol



Márquez, Pedrosa & Lorenzo



 Circulou no Brasil entre o final da década de 60 e início dos anos 70 uma publicação mensal chamada Realidade. O periódico apresentava características inovadoras para a época, matérias escritas na primeira pessoa, fotos que deixavam perceber a existência do fotógrafo e design gráfico pouco tradicional. Era uma forma de escrita chamada de “New Journalism” que combinava clareza e objetividade em uma estrutura com foco narrativo. O mote publicitário da revista era: “ Nos jornais, rádios e TV você encontra a notícia, em Realidade você descobre porque o fato foi notícia.

A notícia atual é que Jorge Lorenzo voltou a vencer, agora com uma Ducati. Não foi fato episódico, já foram duas etapas consecutivas na atual temporada. A vitória do piloto nascido em Palma de Mallorca na pista de Barcelona e a segunda colocação do atual líder do mundial Marc Márquez na mesma prova confirmaram a superioridade dos ibéricos nas competições motorizadas sobrede duas rodas. 


Pilotos espanhóis dominam a MotoGP, já fazem isso a algum tempo. Desde 2010, com exceção de Casey Stoner, todos os mundiais da principal categoria foram vencidos por espanhóis (na verdade só por dois deles, Marc Márquez e Jorge Lorenzo). A dominação dos ibéricos, porém, é mais ampla e se estende às classes Moto2 e Moto3. Nos últimos 15 anos mais da metade dos títulos das categorias de acesso foram vencidas por pilotos espanhóis que competem atualmente na MotoGP, incluindo o atual campeão Marc Márquez, Jorge Lorenzo, Maverick Vinales e Dani Pedrosa.


Qual a gênese deste protagonismo?


A hegemonia espanhola na motovelocidade não é obra do acaso. A atual supremacia tem raízes difusas que incluem conjuntura política, protecionismo, desenvolvimento industrial, condições financeiras, localização geográfica e o clima mediterrâneo. Nos anos pós-guerra o General Franco governava uma Espanha isolada do resto da Europa. Enquanto o continente combateu o fascismo com um custo altíssimo em perdas materiais e de vidas humanas, Franco e a Espanha mantiveram uma omissa neutralidade. Por esta razão o país foi isolado e a única reação possível foi apelar para o patriotismo, autossuficiência econômica e o proteger seu mercado, impedindo a invasão de artigos estrangeiros. A incipiente indústria de fabricação de motos foi blindada da concorrência externa, principalmente dos produtos japoneses. Surgiram empresas como Bultaco, Derbi e outras que prosperaram com a fabricação de motos de baixo custo com motores de dois tempos, sem muito agregado tecnológico. Inevitavelmente moradores começaram a usar esses veículos em disputas de rua, que passaram a ser organizadas em vilas e cidades em todo o país.


No final da década de 60 as fábricas, principalmente Bultaco e Derbi, já haviam desenvolvido tecnologia suficiente para construir equipamentos para competir em GPs. As diversas competições locais formaram pilotos que estavam adquirindo alguma notoriedade. O nome mais relevante deste tempo foi Angel Nieto, que iniciou sua carreira disputando provas em Madrid e migrou para Barcelona, onde se concentravam as indústrias, em busca de melhores oportunidades. Nieto conseguiu uma vaga para trabalhar e competir na Derbi.


A parceria de Nieto com a Derbi durou uma década, com grande sucesso nas categorias 50cc e 125cc, e prosseguiu em alta depois da sua transferência para a Bultaco. Angel Nieto venceu 90 GPs oficiais da FIM e é terceiro piloto mais laureado de todos os tempos, perdendo apenas para Giacomo Agostini e Valentino Rossi.


Angel Nieto foi primeiro herói nacional da história recente da Espanha, venerado por todo o país. O poder político tentou apropriar-se da sua popularidade e ele participou de diversas audiências com o ditador Franco, que acreditava no motociclismo para promover a Espanha como uma nação tecnicamente avançada. Nieto mais tarde tornou-se amigo íntimo do rei Juan Carlos, um apaixonado por provas de motos.


O sucesso de Angel Nieto nas competições internacionais foi o marco inicial da paixão dos espanhóis pelas motos, que resultou na atual hegemonia dos ibéricos na MotoGP. Quando Nieto se aposentou no início da década de 1980, a indústria e os promotores de competições buscaram um novo ídolo para manter acesa a chama do esporte. A Bultaco e a RFME (Real Federação Espanhola de Motociclismo) organizaram uma série de competições para descobrir a próxima geração de campeões do mundo. O vencedor da primeira Copa Bultaco foi um jovem catalão pelo nome de Alfonso Pons, abreviado para Sito Pons, o primeiro espanhol a conquistar um título mundial da categoria 250cc em 1988. Angel Nieto e Sito Pons iniciaram uma longa trilha de sucesso de pilotos espanhóis nas classes 50cc, 125cc e 250cc, culminando nas 500cc, a então maior capacidade cúbica do motociclismo esportivo.


Já em final de carreira, Angel Nieto tentou participar de uma prova com uma 500cc. Na época as industrias nativas não produziam motos com esta cilindrada e políticas protecionistas impediam a importação de máquinas japonesas, então não tinha como uma equipe genuinamente espanhola disputar a categoria. Nieto era amigo pessoal do rei Juan Carlos, que fez um contato com o CEO Soichiro Honda e conseguiu uma NS500 para o piloto disputar o GP de Espanha em Jarama. Não foi uma ideia feliz, o equipamento era muito mais potente e veloz que as máquinas que Nieto estava habituado, houve um acidente que resultou em várias costelas quebradas.


A Espanha buscava gradativamente o reconhecimento como protagonista do mundial do motociclismo e para alcançar este objetivo era necessário vencer nas classes com maior cilindrada. Os sucessos de Nieto foram muito festejados em casa, porém no resto do mundo as classes menores não eram muito consideradas. Uma história da época foi registrada pelo jornalista e corredor americano Dennis Noyes, que se mudou para na Espanha em 1970. Ele propôs reativar com um reporter britânico uma parceria dos tempos que cobria a AMA, ele faria a cobertura das provas de Angel Nieto e Victor Paloma e, em retribuição, receberia notícias sobre Barry Sheene e Phil Read. O britânico concordou em parte, enviaria matérias sobre os pilotos citados, porém não tinha o menor interesse sobre os espanhóis, não eram significativos para os seus leitores. Nenhuma surpresa que este tipo de comportamento não agradava a elite de motociclismo espanhol, numa época em que estavam tentando atrair GPs alavancados por um patriotismo fervoroso e a crescente admiração por pilotos vitoriosos. 





Uma análise nos registros da MotoGP indica que pilotos britânicos ganharam 43 mundiais entre 1949 e 1976, os espanhóis venceram 48, todos eles a partir de 1969. A prevalência de impérios acontece nos esportes assim como na economia do mundo real. Nos primeiros anos da Moto GP britânicos e italianos dominaram, sua indústria desenvolvida apoiava o crescimento de talentos locais.


Geralmente os pilotos tem êxito por serem apoiados por uma indústria, porém nem sempre foi assim. Entre o final dos anos 1970 até a década de 1990 a MotoGP foi palco de espetáculos para americanos e australianos, pilotos que não eram respaldados por nenhuma associação com fábricas. A razão destes resultados foi a técnica de pilotagem. Americanos como Kenny Roberts e australianos como Mick Doohan cresceram disputando provas em pistas de terra e desenvolveram invulgar habilidade de controle do pneu traseiro. Durante estas duas décadas as motos 500cc de dois tempos entregavam muita potência para a roda motriz e seu domínio exigia uma técnica diferenciada. Esta característica do comportamento dos equipamentos explica porque, com duas exceções, americanos e australianos venceram todos mundiais de 500cc entre 1978 e 1998.



O comportamento nervoso do ‘dois tempos’ 500cc também explica a falta de conquistas espanholas na categoria até o final da década de 1990, quando significativos avanços na tecnologia de motor, chassis e pneus domaram o seu desempenho e permitiram o sucesso de técnicas de condução semelhantes às utilizadas nas classes 250cc e 125cc.


Alex Crivillé foi o primeiro espanhol a conseguir um título mundial na 500cc em 1999. Sua carreira desenvolvida nas categorias de menor cilindrada o capacitou como um herói nacional, em uma terra onde o esporte da velocidade em duas rodas rivaliza com o futebol em termos de popularidade e cobertura da mídia. Crivillé conseguiu seus primeiros pódios com uma Derbi em 1987 e venceu o Campeonato Mundial de 125cc em 1989 com uma moto Cobas equipada com motor Rotax. Cobas foi uma das muitas pequenas equipes espanholas com administração competente e apoiada por patrocinadores locais a obter algum sucesso.


A associação de Crivillé com a 500cc em 1992 foi oportuna, neste ano a Honda introduziu a versão do motor “big bang” (temporização assimétrica de disparos dos cilindros), que facilitou muito o trabalho dos pilotos. O ex-campeão 250cc Alfonso (Sito) Pons tinha sido promovido para as 500cc em 1990 e durante a temporada sofreu um sério acidente, que resultou em catorze costelas quebradas e um hemopneumotórax grave no pulmão esquerdo. A recuperação produziu um declínio em seu desempenho no ano seguinte (1991), então decidiu se afastar e cedeu sua equipe e moto para Alex Crivillé, que conseguiu a primeira vitória de um piloto espanhol na 500cc na sua temporada de estreia.


Além da qualidade e talento dos pilotos, as condições econômicas, leia-se disponibilidade de recursos, foram importantes para os ibéricos. Três anos depois da vitória isolada de Crivillé na 500cc a empresa de petróleo Repsol assinou um contrato como principal patrocinadora da Honda. Mesmo com o respaldo financeiro da petrolífera, Crivillé levou mais de cinco anos para conquistar o título da principal categoria. A Repsol ainda está associada a Honda, nos dias atuais cinco das doze equipes que alinham no grid de largada da MotoGP têm patrocínios de empresas espanholas como, por exemplo, o grupo Telefônica (Movistar) e a cervejaria Estrella Galicia.


Boas notícias costumam vir acompanhadas de boas notícias e foi o que aconteceu com os espanhóis. A vitória de Crivillé veio poucos meses depois que a Dorna, uma empresa de marketing esportivo vencer a empresa de Bernie Ecclestone e conseguir a administração e direitos exclusivos de transmissões de TV do mundial de motociclismo da FIM. A ocupação espanhola foi quase completa: pilotos espanhóis, equipes espanholas, patrocinadores espanhóis e uma empresa espanhola como titular dos direitos.


Dizem que quando se atinge o cume de uma montanha o passo seguinte necessariamente é para baixo, como aconteceu com os britânicos quando conseguiram o protagonismo no esporte. A Grã-Bretanha desperdiçou sua posição dominante. O colapso da indústria de motocicletas do país não ajudou, mas a Auto-Cycle Union (ACU), entidade dirigente do moto esporte na Grã-Bretanha, que abrange as ilhas anglo-normandas e a ilha de Man, excluindo a Irlanda do Norte, não conseguiu fortalecer um campeonato nacional para formar pilotos com capacidade de enfrentar disputas internacionais. 


Este é um ponto onde os espanhóis são particularmente eficazes. Conseguem notoriedade a nível mundial porque desenvolvem fundamentos básicos em casa criando campeonatos nacionais altamente competitivos e promovendo seus melhores pilotos para competições internacionais e GPs.


O FIM World Championship Grand Prix é promovido pela FIM (Federation Internationale de Motocyclisme), administrado pela Dorna Sports e com a colaboração da IRTA (International Racing Teams Associatrion) e da MSMA (Motorcycle Sports Manufacturers Association). A Dorna conseguiu obter o controle sobre o motociclismo esportivo e como resultado a Espanha tornou-se o centro global de competições sobre duas rodas. Existem no país diversos campeonatos, desde minimotos até as categorias de maior cilindrada, fornecendo uma curva de aprendizado crescente. 


Para ressaltar como as coisas mudaram desde a década de 1970, Kenny Roberts levou seu filho Kenny Junior para disputar a série de Ducados Open da Espanha. Ele venceu o título mundial de 500cc em 2000. Dois dos três britânicos que disputam o mundial deste ano fizeram estágio na Espanha antes de migrar para a MotoGP. Scott Redding, que pilota para a Aprilia italiana ganhou o título de MiniGP 80cc espanhola em 2005 e tornou-se um piloto da principal categoria três anos mais tarde. Bradley Smith, que conduz uma KTM austríaca, foi convidado em 2005 pela Dorna para competir no campeonato espanhol de como parte da Academia de MotoGP da empresa. A direção da Dorna sempre soube que para o campeonato ser verdadeiramente mundial precisava de criar novas estrelas de outros países, não só na Espanha, até porque vendem os direitos de TV para todo o globo.

Três pilotos espanhóis fizeram história em 2010 ao vencer todas as três categorias de MotoGP: Márquez venceu o título da 125cc, Toni Elias Moto2 e Lorenzo MotoGP. Foi o primeiro registro de campeões das três categorias serem de um único país. A Espanha repetiu a tríplice coroa em 2013 e 2014, conseguindo três vezes em cinco anos, feito inédito que nenhum outro país já alcançou.


De alguma forma a Espanha mantém tipo uma linha de produção, formando mais jovens pilotos do que em qualquer outro lugar. A Itália está neste páreo, embora quase exclusivamente pelos esforços de Valentino Rossi e sua academia VR46. Franco Morbidelli foi, em 2017 na Moto2, o primeiro campeão mundial formado na VR46.


Embora compartilhando a pista com o italiano Valentino Rossi, o segundo maior vencedor da história do motociclismo esportivo e ainda em atividade, o espanhol Marc Márquez é atualmente o homem a ser batido nas pistas. Ele ganhou o seu primeiro mundial da MotoGP em 2013, o primeiro campeão estreante desde Kenny Roberts em 1978. Foi o campeão mais jovem, título que pertencia a outro americano, Freddie Spencer. Também desbancou Mike Hailwood como piloto mais jovem a vencer quatro títulos de MotoGP.


Marc Márquez
   

Márquez conquistou seu mais recente título na última etapa do ano passado, em Valência. Garantiu o título utilizando o que ele próprio chamou de "estilo Márquez", lutar pela vitória mesmo que não há necessidade e arriscar tudo na tentativa. Em algum momento o piloto de apenas 24 anos perdeu o tempo da freada e a frente da moto na curva 1 do circuito, a mais de 100mph (160,92km/h), evitando a queda com seu cotovelo esquerdo e joelho arrastando no asfalto. “Quando perdi a frente”, - explicou – “Decidi ficar com minha moto até o fim. Não sei se vamos terminar no cascalho, na parede, ou.... Não sei, mas vou ficar com ela”. Os espectadores prenderam a respiração e acompanharam o seu esforço, afinal recompensado, para permanecer na prova. Márquez é como um Deus na Espanha, ele é mais do que apenas um espanhol muito especial, como explica seu colega e também piloto da Honda Cal Crutchlow: “Há 7 bilhões de pessoas neste planeta, apenas uma delas poderia ter salvo aquela queda”.


Desde a primeira prova em 1949 até os dias atuais [junho de 2018] já foram disputados 3063 GPs oficiais em todas as classes. A Itália continua a ser nação mais vencedora da principal categoria com 788 vitórias, contra 589 da Espanha. A Itália registra vitórias desde o primeiro mundial, a primeira foi no GP de Berna, na Suíça, em julho de 1949, 19 anos antes do primeiro espanhol a subir o degrau mais alto do pódio de um GP no parque Montjuic, em Barcelona.


Talvez haja uma outra razão para Itália e Espanha dominarem os registros oficiais do mundial de motociclismo. Os verdadeiros motivos podem estar ligados a paixão que estes dois povos dedicam ao esporte.




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