Em uma época onde ministros
do STF são notícia quase todos os dias, a leitura de sites especializados em
esportes motorizados na Europa é preocupante. O tradicional “The Times
(Londres)” publicou recentemente manchetes que advertiram sobre um desastre
iminente: “A regra dos seguros da União Europeia vai destruir os esportes motorizados no Reino
Unido”. É necessária a contextualização, na quarta-feira (21/12) a MCIA (Motor
Cycle Industry Association), a ACU e a AMCA (representando provas de motovelocidade
em estradas e circuitos) emitiram um
comunicado conjunto alertando que os esportes motorizados poderiam ser
inviabilizados em território britânico devido a uma sentença do Tribunal
Europeu, em Luxemburgo.
A decisão
decorre de um acórdão no processo Vnuk/Triglav, número C-162/13, no Tribunal de
Justiça da Comunidades Europeia, conhecido simplesmente como diretiva Vnuk. É
referente a um caso de 2014 e envolveu um trabalhador agrícola esloveno,
Damijan Vnuk, que solicitou a cobertura de uma apólice de seguro de um trator,
em relação a um acidente enquanto trabalhava em uma fazenda. Os tribunais
inferiores da Eslovênia rejeitaram as suas alegações, mas o Supremo Tribunal do
país decidiu submeter o caso para a Corte Europeia de Justiça (ECJ).
O
caso de um trabalhador agrícola esloveno evoluiu até ameaçar o esporte
motorizado na Europa porque o acidente de Vnuk foi em uma propriedade privada.
A legislação da União Europeia exige, para permitir a livre circulação de
veículos entre os países associados, que automóveis ou motocicletas devem
dispor de seguro de responsabilidade civil, mas não é explicita em relação à sua
validade para sinistros ocorridos em vias públicas ou privadas. Esta omissão é
a raiz do problema, foi a justificativa para a Suprema Corte da Eslovênia remeter
o caso ao tribunal europeu.
No caso
Vnuk, a ECJ interpretou a legislação vigente no sentido de que qualquer veículo
motorizado, seja para uso em ambiente público ou privado, deve ser coberto por
um seguro para indenizar possíveis vítimas de sinistros. Na letra fria da lei,
também é aplicável aos veículos de corrida, sejam eles carros ou motos, para
disputas em traçados de rua, estradas ou circuitos particulares. Esta
interpretação significa, por exemplo, que em cada rodada europeia da MotoGP,
todos os pilotos, do campeão Marc Márquez até Rei Sato, o último classificado
na Moto3 em 2016, teriam de ser segurados contra qualquer dano que causassem a
outros pilotos em um acidente na pista.
Não
há dúvidas que pilotos como Valentino Rossi e equipes de fábrica como a Yamaha
podem facilmente arcar com este seguro, mas é mais uma despesa para equipes amadoras
ou com pouco patrocínio. Apólices para iniciantes podem ser proibitivamente caras
e provavelmente o número de corridas e pilotos no grid reduza sensivelmente.
Sem eventos constantes a operação de uma pista dedicada não é economicamente
viável, nas condições atuais a entidade que administra Silverstone já é
deficitária, se fosse forçada a confiar unicamente na renda de MotoGP e F1,
estaria falida em pouco tempo.
A
decisão das entidades britânicas em emitir um comunicado conjunto foi alavancada
por uma ação do governo, que abriu formalmente em 21 de dezembro uma consulta
popular para incorporar o resultado do julgamento Vnuk na legislação do Reino Unido.
Ao emitir o comunicado, o MCIA garantiu a exposição máxima para o problema, monopolizou
manchetes e convocou as pessoas para participarem do processo, criando um ambiente
alarmista. A realidade é que, embora
exista uma causa genuína para preocupações, as chances de afetar
significativamente o motociclismo profissional na Europa estão muito próximas a
zero, até porque os desportos motorizados são uma parte importante da economia e
as implicações da diretiva Vnuk são tão amplas que exigem um processo de
reformulação.
No
Reino Unido a extensão do dano da diretiva Vnuk é potencializada porque as indenizações
de lesões tendem a ser muito mais elevadas que em outros países na Europa e o
custo das apólices, portanto, é muito maior, quase proibitivo. Sem legislação específica
e detalhada, a securitização também seria extremamente sensível à fraude: dois
pilotos podem simular um acidente, um pode fingir uma lesão, apresentar uma demanda
de indenização e, em seguida, compartilhar o pagamento do seguro com o outro.
Embora o Reino Unido possa ser o mais afetado pelo diretiva Vnuk por causa de
peculiaridades da lei britânica, o caso também tem implicações em toda a
Europa. Os outros 27 Estados-Membros da União Europeia terão que implementar
legislações apropriadas para fazer face a obrigação do seguro, isto pode ter um
efeito devastador não só no Reino Unido, mas especialmente em países tradicionais
no esporte da velocidade como Espanha, Itália e Alemanha.
A UE reconhece
os possíveis desdobramentos da interpretação da lei e está tomando medidas para
conter seus efeitos indesejados. A intenção da diretiva nunca foi impor um
seguro a todos os tipos de veículos a motor, onde quer que sejam utilizados, objetivo
foi garantir que qualquer pessoa que fosse vítima de um acidente de trânsito seria
capaz de obter uma indenização. Parece óbvio que a decisão do tribunal é
orientada para cobrir o tráfego normal em vias públicas, mas a sua redação
abrangente permite interpretar que inclui qualquer veículo automotor em
qualquer local, em vias públicas ou privadas. Isso significa, além de motos e
carros de competição, Segways em aeroportos, scooters de mobilidade em centros
comerciais, empilhadeiras em armazéns, tratores em pátios e carrinhos elétricos
em campos de golfe. Forçar todos esses veículos para cobrir seguro de terceiros
é absurdamente caro.
O Reino Unido criou fundos de compensação, financiados por contribuições do
seguro de automóvel, para cobrir danos causados por motoristas não
segurados. Sem modificar a diretiva, os motoristas normais poderiam estar
indenizando indiretamente jogadores derrubados acidentalmente por carrinhos de
golfe, o pessoal da Fedex atropelado por empilhadeiras ou até Jorge Lorenzo
atingido por Andrea Iannone na disputa de um GP.
Até que
a UE modifique o texto da obrigatoriedade de seguro para veículos automotores, todos
os estados membros se encontram num buraco negro legislativo. Originalmente o Parlamento
Europeu deveria emitir uma diretiva até o terceiro trimestre de 2016, já
estamos no final do quarto trimestre e nenhuma publicação foi emitida. O
trabalho está em curso, mas precisa ser apressado, se nada for feito, não vai
acabar com as competições na União Europeia, mas com certeza deve criar
problemas.
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