sábado, 11 de janeiro de 2020

MotoGP - Todos são importantes


 Valentino Rossi não atende ao chamado da equipe



Conta a lenda que uma onça parda fugiu de seu habitat natural no Parque Estadual de Itapuã, situado na região metropolitana de Porto Alegre, que foi invadido por entusiastas do turismo ecológico. A fera encontrou refúgio nos porões de uma empresa de tecnologia instalada nas proximidades. Quando sentiu fome, seu instinto caçador inibiu o risco de ser descoberta e ela atacou um engravatado que circulava pelas proximidades. Rendeu alimento suficiente para alguns dias. O fato se repetiu três ou quatro vezes, ela atacava a primeira pessoa que aparecia, carregava a vítima para um vão entre os alicerces da construção e tinha alimento por algum tempo. Um dia o animal abateu uma senhora já com alguma idade e em seguida identificou uma movimentação intensa, logo seu esconderijo foi descoberto e foi capturado. Para sua infelicidade havia atacado a “tia do cafezinho”, cuja ausência foi imediatamente notada por todos.

Pode parecer brincadeira, mas esta pequena fábula serve para justificar a importância de todas as pessoas que fazem parte de uma organização, inclui as equipes que disputam Fórmula 1 e MotoGP. Grandes campeões compreendem a importância de todas as pessoas, incluindo as que respondem pelas funções mais básicas, no resultado final de uma prova. O primeiro atrito entre Ayrton Senna e Alain Prost, quando ambos dividiram os boxes da McLaren em 1988, surgiu pelo hábito do brasileiro em dividir os prêmios por vitória com os mecânicos que cuidavam do seu carro. Esta atitude foi interpretada pelo francês como uma tentativa de promover cizânia entre os membros da equipe.

Talvez a maior comprovação que o entrosamento entre piloto e equipe seja essencial para obter resultados tenha acontecido no GP da Alemanha em 2016. Na ocasião a indecisão do clima forçou a direção de prova declarar a corrida como “Flag to flag”, ou seja, caso necessário seria autorizada a troca de equipamentos. Marc Márquez teve um início de prova desastroso após perder várias posições e realizar um passeio pela brita nas primeiras voltas. Estava fora da disputa pelas primeiras posições, que incluía, entre outros, Andrea Dovizioso, Valentino Rossi e Cal Crutchlow. Perto do primeiro terço de prova, como as condições da pista melhoravam gradativamente, Marc foi chamado pela equipe para mudar sua moto por uma equipada seu com pneus slick. Com a pista secando, o piloto da Honda começou a fazer voltas com entre 5 e 10 segundos mais rápidas que os líderes. Todas as equipes notaram a melhora significativa nos tempos e orientaram seus pilotos para realizarem a troca, algumas esperaram várias voltas até serem atendidas. Na MotoGP não existia (e ainda não existe) a comunicação bilateral e as comunicações dos boxes é são restritas, depois da largada o piloto é solitário e decide se aceita ou não as orientações. Uma foto que caracteriza o GP foi uma atitude de desalento de um membro da Yamaha com os braços levantados quando Rossi, ainda na disputa da liderança, não entrou nos boxes para realizar a troca. Márquez obteve uma vitória muito improvável, com a diferença absurda de quase 10 segundos sobre Crutchlow, o segundo colocado. Valentino Rossi, que estava na corrida pelo título mundial, foi apenas o 8º.

Muitos repórteres que cobrem a MotoGP alegam que Jorge Lorenzo fracassou em sua primeira temporada na Ducati por ter que trabalhar com uma equipe completamente nova, onde até o jargão utilizado era diferente. Lorenzo foi autorizado a levar um único membro do seu grupo de apoio na Yamaha, o mecânico Juan Llansa e foi obrigado a abrir mão do chefe de equipe Ramon Forcada, com quem ele trabalhou desde a sua estreia na principal categoria em 2008.

A M1 #46 de Valentino Rossi foi apenas a 3ª Yamaha classificada no último mundial, 7ª no geral, uma colocação inaceitável para o maior nome em atividade na motovelocidade. Talvez em função destes resultados Rossi fez uma mudança significativa na sua equipe pessoal, promoveu Davide Munoz, que era chefe da equipe VR46 na Moto2, para o lugar de Silvano Galbusera que trabalhou com ele desde 2014.

A sabedoria popular ensina que “não se mexe em time que está ganhando”, esta máxima pode ser integralmente aplicada na equipe que trabalha junto com Marc Márquez. Com muito poucas exceções, todos estão com ele desde os tempos da Moto2 em 2012. Santi Hernández, o chefe da equipe trabalha com o piloto desde 2011 quando o espanhol subiu para a Moto2. Desde então venceram juntos 7 títulos, 1 na Moto2 e 6 na MotoGP. Hernández lidera a equipe de traduzindo o feedback do piloto em decisões sobre configurações do equipamento, que transmite para o resto da equipe. O campeão do mundo também tem uma assessoria pessoal desde o início de sua carreira, Emilio Alzamora, o piloto que em 1999 foi coroado campeão mundial de 125cc sem ganhar um único GP. Um dos homens mais influentes da MotoGP e conhecido nos boxes como o 3º Márquez, Emilio mostrou para o MM93 que ser rápido é apenas a ponta do iceberg, atitudes profissionais são tão vitais nas pistas como trabalhando com patrocinadores, mídia e os fãs.

Mesmo as funções mais humildes, no degrau mais baixo da hierarquia, são importantes para todo o processo. Um único parafuso mal apertado pode comprometer o desempenho da moto em uma prova. As pessoas são os principais ativos de uma equipe, quando tudo funciona bem cada qual sabe o papel que lhe cabe e que qualquer falha em suas obrigações prejudica todos.


MotoGP - Honda é só Marc Márquez?





A última grande mudança na MotoGP aconteceu em 2002, quando o regulamento da principal categoria permitiu os motores 4 tempos. Desde então ocorreram 18 temporadas, deste total a Honda conquistou dez títulos mundiais, com quatro pilotos diferentes (Rossi, Hayden, Stoner e Márquez), a Yamaha somou sete títulos com dois pilotos (Rossi & Lorenzo) e a Ducati ficou com o restante (Stoner).



As últimas performances do piloto de Catalunha, que venceu 9 dos 10 GPs obtidos pelas máquinas Honda em 2018 e todas as 12 vitórias de 2019 resultaram em um consenso na mídia que a fábrica é dependente do piloto. O recente fracasso de Jorge Lorenzo parece corroborar essa versão. Lorenzo foi o único a obter um mundial por outra equipe nesta década.



Segundo o folclore dos bastidores, o espanhol (Márquez) é um piloto diferenciado e muitos consideram que a única maneira de uma Aprilia, mesmo com problemas de orçamento, conquistar um pódio nos próximos anos é contratar Marc Márquez.



O que poucos consideram é e estrutura da Honda, comportamento público do piloto e a eficiência da equipe de apoio. A indústria nipônica trabalha no estado da arte da tecnologia, Márquez é talvez o único piloto que nunca fez uma crítica pública ao comportamento do equipamento e a sua equipe de apoio o acompanha desde seu primeiro mundial na 125cc. Na única prova que não concluiu em 2019 houve um forte boato que sua queda foi devida a um erro de configuração para o torque negativo
(leia-se freio motor), o piloto assumiu como erro dele.



O retorno aparece, Márquez ganhou doze GPs na última temporada e estabeleceu um novo recorde de pontos, quase sozinho obteve a tríplice coroa, títulos de pilotos, equipes e construtores para a HRC.

MotoGP - O Sonho da Aprilia


RS-GP de Espargaró, - Sepang, fevereiro 2019


O Grupo Piaggio com sede corporativa localizada em Pontedera, uma comuna italiana da região da Toscana, província de Pisa, administra um complexo industrial que atua na produção de veículos automotores de duas rodas e equipamentos comerciais compactos. As industrias vinculadas ao grupo produzem viaturas comercializadas por sete marcas, Piaggio, Vespa, Gilera, Moto Guzzzi, Scarabeo, Derbi e Aprilia.

Na MotoGP a Aprilia sempre foi considerada o “primo pobre”, a menor fábrica a participar da competição e com o menor contingente de técnicos e engenheiros nos boxes durante os GPs. Na temporada de 2019 a equipe foi a 6ª e última colocada no campeonato dos construtores marcando apenas 88 pontos (59 de Aleix Espargaro e 29 de Andrea Iannone). A Aprilia, assim como a Suzuki, não tem equipe satélite, que implica em menor número de pilotos coletando dados para alimentar a retaguarda técnica.

A fábrica anuncia o único equipamento original na temporada de 2020, com motor e chassi radicalmente novos, resultantes de aumento expressivo de investimento financeiro do Grupo Piaggio. A Aprilia ainda não anunciou a especificação do novo equipamento, é provável que ele seja impulsionado por um motor V4 90°, substituindo os V4 75° que aparentemente atingiram seu limite na geração de potência. Em 2012 a Honda substituiu o RC212V de 75° de 800cc pelo seu RC213V 90° 1000cc, inspirada no sucesso do lay-out utilizado pela Ducati, a Aprilia pode seguir este mesmo caminho. Um V4 90° não é tão esguio quanto um V4 75°, porém os engenheiros da Honda encontraram maneiras de produzir um protótipo compacto, a fábrica italiana tem este mesmo objetivo. O V4 90° entrega melhores resultados na aceleração, freio motor (torque negativo) e habilita configurações mais efetivas na temporização de disparos (big bang). Diferentes ordens de disparos permitem maior eficiência na gestão da travagem do motor. Estima-se que o novo motor da Aprilia entregue 280 cavalos de potência, um acréscimo de 10% sobre o atual, o que sugere que o novo equipamento Aprilia deve ter um desempenho competitivo em linha reta.

Na MotoGP o torque negativo é quase tão importante como a retomada de velocidade nas curvas porque o comportamento dos pneus dianteiros da Michelin não é tão eficiente como eram os Bridgestone, que obriga os pilotos a usar o pneu traseiro para parar a moto. Em seu primeiro ano na Ducati Jorge Lorenzo disse que as GP17 o obrigaram a reaprender a pilotar, preocupar-se em utilizar mais a traseira, “como num barco” em suas próprias palavras. Em 2019 Aleix Espargaro e Andrea Iannone tiveram sérios problemas para frear a RS-GP porque o freio motor era ineficaz, a esperança é que um novo propulsor corrija este problema. 

Coincidindo com o início das novas regras que elevaram a capacidade cúbica do motor para 1000cc (2012) a FIM permitiu, para aumentar o número de participantes no grid, as motos classe CRT (Claiming Rules Team) que utilizavam motores comerciais e tinham uma série de concessões para obter um desempenho semelhante aos dos protótipos, além da classe Open, sem apoio da eletrônica.

A construtora italiana obteve um expressivo ganho de qualidade com a contratação de Andrea Iannone. Até então, por ter desenvolvido sua carreira em equipes CRT o piloto Aleix Espargaro começou na MotoGP competindo com motores comerciais sem grandes recursos, com a experiência de Iannone houve expressivo avanço na eletrônica e consequente melhor desempenho. A Aprilia, com o apoio incondicional do Grupo Piaggio, está investindo muitos recursos (pessoas, tempo e $) para superar o gap que a separa das outras equipes, recontratou um eng. eletrônico da equipe Ferrari de Fórmula 1 que já havia trabalhado para fábrica e resgatou outro eng. eletrônico que a Suzuki roubou há alguns anos. Também buscaram um especialista em aerodinâmica da Ferrari, reforçando todos os departamentos.

Todos esperam muito de 2020. A reorganização comandada pelo CEO da Aprilia Racing, Massimo Rivola, ajudou a libertar o engenheiro-chefe Romano Albesiano para projetar uma nova RS-GP a partir do zero. A esperança é que a moto seja muito mais competitiva do que a V4 75° atual. Com a notícia do doping de Andrea Iannone agora a equipe fica sem um recurso importante do programa de MotoGP, um piloto experiente e comprovadamente veloz. O advogado de Iannone declarou que a amostra B do teste de drogas confirmou a anterior (nem poderia ser diferente, o material foi colhido na mesma ocasião). De acordo com os regulamentos da FIM o italiano está automaticamente banido por quatro anos por uso do esteroide anabolizante drostanalone.

As quantidades encontradas na amostra foram mínimas, o advogado de Iannone informa que a contraprova indicou mostrou a presença de metabólitos igual a 1,15 nanogramas por mililitro. Considerando que a amostra estava extremamente concentrada por ter sido colhida com o piloto desidratado logo após a corrida quente e húmida na Malásia, indicaria uma presença ainda menor em condições normais, apoiando a teoria da contaminação acidental através de alimentos. Em favor de Iannone, foi a primeira vez que foi testado em 2019, no ano passado foi um dos cinco pilotos escolhidos para seguir o programa ADAM (Arrestee Drug Abuse Monitoring), sistema onde os atletas têm de informar continuamente onde estão e o que estão fazendo para habilitar a colheita de amostras a qualquer tempo. Suas opções de defesa agora são limitadas, a FIM, como a maioria das federações esportivas internacionais, adotou o código WADA (Agência Mundial Antidopagem), que afirma explicitamente que os atletas são responsáveis por todas as substâncias encontradas em seus corpos. Pode haver circunstâncias atenuantes, mas a drostanolona, um esteroide androgênico anabolizante, conhecido no jargão da medicina esportiva como "substância não especificada", é visto como extremamente improvável de ser encontrado como resultado de processos naturais ou contaminação acidental.

As chances de evitar ou reduzir uma condenação são escassas. Se a defesa é contaminação acidental, Iannone tem o ônus da prova. O vetor comum para a contaminação com esteroides anabolizantes é o consumo de carne. Clenbuterol é amplamente utilizado no México, América do Sul e partes da Ásia para o gado ganhar peso, então a contaminação por este esteroide é comprovadamente uma possibilidade real, assim como a contaminação com uma série de outros produtos semelhantes. No entanto, a drostanolona, por reduzir a gordura corporal, expelir a água e ser um produto cuja produção demanda um custo bem maior que a maioria dos outros esteroides comuns, não é atraente para os produtores de proteína animal, assim a chance de ser ingerido através de carne contaminada é extremamente improvável. Normalmente esta substância é encontrada em fisiculturistas, pugilistas e lutadores MMA que buscam o enquadramento em determinadas categorias do esporte. Pode ser usado em ciclos relativamente curtos - duas a quatro semanas – e seus componentes são expelidos normalmente do corpo de forma relativamente rápida, desaparecendo totalmente após cerca de três semanas. Para um piloto da MotoGP o resultado da ingestão do produto seria perder peso e obter mais massa muscular. A quantidade encontrada é consistente com o fim de um ciclo anabolizante, ou seja, pouco mais de duas semanas depois do esteroide ser ingerido.

Iannone admite que estava seguindo um programa de perda de peso até 2019, mas disse o foco era alimentação controlada e exercícios aeróbicos. A Aprilia estava ciente e o objetivo era reduzir a diferença corporal entre ele e seu companheiro de equipe Aleix Espargaro, cujo vício em ciclismo o moldou em um atleta extremamente leve.

O teste positivo de drogas de Iannone coloca a Aprilia em uma situação complicada. A fábrica italiana decidiu apoiar (e pagar salários) ao seu piloto até o fim do processo legal (argh, o tal Trânsito em Julgado). O italiano está proibido de participar de qualquer atividade oficial e a equipe precisa urgentemente de um substituto. A nova moto que deve ser apresentada no teste de Sepang, uma máquina que se espera muito mais competitiva do que a antiga RS-GP. O candidato mais óbvio é o piloto de testes Bradley Smith, o inglês é veloz e competente, fornece um bom feedback para os engenheiros e a sua relação com toda a Aprilia é boa. Não é a única opção, mas certamente faz dele o favorito. Karel Abraham também está disponível e outras opções existem fora do restrito ambiente da MotoGP

Mesmo uma sanção reduzida, um ano talvez, pode ser fatal para a carreira do piloto. Com exceção de Tito Rabat, todos os contratos da MotoGP vencem no final de 2020, as equipes acompanham atentas os jovens pilotos da Moto2 visando repetir o fenômeno Quartararo, que com certeza vai tornar muito mais difícil uma vaga para Iannone.