quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

MotoGP 2019 - São outros 500

Ducati Desmosedici GP-19



No século XIII os fidalgos de linhagem na Península Ibérica podiam requerer indenização de qualquer injúria, sendo o agressor condenado a pagar 500 soldos ou ser preso. O agressor poderia incorrer na mesma pena caso voltasse a insultar a vítima. A legislação entendia que qualquer outra vilta, vitupério sem razão, posterior à multa cobrada, não seria incluída na primeira. Era matéria para novo julgamento, outra culpa, outro dever. Seriam, evidentemente, outros quinhentos.



A expressão "outros quinhentos significa algo diferente, outra história, outro elemento e é usada para enfatizar que, apesar de eventuais similaridades, os objetos da comparação são independentes.



A MotoGP conviveu na última década trocando o protagonismo de pilotos e fabricantes. Em 2010 A Yamaha com Jorge Lorenzo reinou absoluta, abrindo 138 pontos de vantagem sobre a Honda de Dani Pedrosa, o segundo classificado. Em 2011 a Honda deu o troco com Casey Stoner e venceu o campeonato com larga margem, 90 pontos. As temporadas de 2012 e 2013 foram equilibradas entre Yamaha e Honda, com o campeonato sendo decidido na última prova. A RC213V da Honda deu um salto de qualidade em 2014 e Márquez venceu com folga, 67 pontos. O ano de 2015 presenciou uma disputa interna entre os pilotos Lorenzo e Rossi da Yamaha, caso raro entre pilotos com o mesmo equipamento.



A temporada de 2016 foi diferente, em tese os regulamentos extinguiram o gap de tecnologia existente entre os fabricantes e equalizaram as condições entre as fábricas, nivelando por baixo com a eletrônica padronizada e a mudança do fornecedor de pneus. Foi o primeiro ano em que a francesa Michelin substituiu a nipônica Bridgestone. A engenharia da Honda foi mais eficiente na adaptação e Márquez venceu o mundial com antecedência abrindo 49 pontos sobre a Yamaha de Rossi. Em 2017 a Ducati recuperou os bons tempos de 2007 de Casey Stoner, e Andrea Dovizioso se apresentou na última prova da temporada ainda com chances (muito remotas) ao título.



Os prognósticos de 2018 eram de uma temporada com disputas acirradas, terceiro ano da eletrônica padrão, restrições relacionadas a aerodinâmica e sem nenhum fabricante apresentando grande vantagem sobre os demais. A Michelin implementou alterações no comportamento dos compostos que algumas equipes custaram a encontrar um ajuste aceitável. O talento de Marc Márquez frustrou as esperanças dos organizadores vencendo 9, a metade das provas, a equipe da Ducati ficou com 7 etapas, porém com a pontuação pulverizada entre seus pilotos (4 vitórias de Dovizioso e 3 de Lorenzo). A Yamaha de Vinales e a Honda da independente LCR ficaram com as duas restantes. Para a alegria dos promotores, os três primeiros colocados no campeonato foram pilotos de fábricas diferentes, Honda, Ducati e Yamaha.



Todo este prólogo foi necessário para tentar antever a temporada de 2019. Já está evidente que Honda e Ducati optaram por estratégias distintas, a Repsol-Honda aposta em dois campeões do mundo e assume o compromisso de adequar os equipamentos ao gosto de seus pilotos, ou seja, ajustes distintos. A Ducati, com um novo patrocínio, já deixou claro que aposta todas as suas fichas em Andrea Dovizioso. Seu companheiro, Danilo Petrucci, sabe que é apenas um auxiliar, mudou-se para perto da residência do colega e trocou seu pessoal de apoio, médico e psicólogo, para os indicados pelo piloto principal da equipe.  Na Yamaha ainda persiste uma atenção maior para Valentino Rossi, que ainda batalha para ser o maior vencedor na história da MotoGP. Maverick Vinales está gradativamente tendo uma voz mais ativa na equipe e tem a seu favor a única vitória da fábrica na temporada passada.



A Suzuki, que passou sabática na temporada passada, acredita nos jovens pilotos Alex Rins e Joan Mir, entusiasmada com o desempenho dos equipamentos no final de 2018. A austríaca KTM acredita que pode lutar pelo pódio em algumas provas, investiu pesado na contratação de Johann Zarco para fazer companhia a Pol Espargaró. A KTM decidiu equipar uma equipe independente, mais motos disputando nas pistas significa mais feedbacks para a engenharia, a divisão de competições da fábrica tem pressa. Andrea Iannone e Aleix Espargaró vão comandar as duas Aprilia sem muitas aspirações além de ficar entre os top ten.



Existem algumas novidades entre as independentes, a Monster Yamaha Tech 3 muda para Red Bull KTM Tech 3 e surge a Petronas Yamaha SRT, o nome da equipe satélite da Yamaha. LCR continua com a Honda, Pramac e Avintia continuam a competir com equipamentos Ducati.



Tudo acontece como se as disputas da nova temporada serão equilibradas, com as Ducati, Yamaha, Honda e Suzuki em iguais condições de disputar vitórias, KTM e Aprilia podem eventualmente aparecer nos pódios. No início da temporada todos os holofotes estarão centrados nos boxes da Repsol-Honda para acompanhar o trabalho conjunto de dois pilotos multi-campeões, com características distintas, Márquez com sua impetuosidade peculiar e uma capacidade imensa de improvisação, Lorenzo com uma técnica suave e refinada, que parece estar pilotando sobre trilhos.



Na apresentação da Ducati, as novidades ficaram por conta de um novo patrocinador e um grafismo com muito mais vermelho que a temporada passada. Gigi Dall’Igna, gestor da equipe oficial disse que a Desmosedici GP19 é uma evolução do modelo anterior, não uma revolução. A equipe de engenharia tenta aprimorar o comportamento do protótipo nas curvas, mantendo o desempenho em frenagens e acelerações. A GP19 também trabalha na aerodinâmica e apresentou nos testes uma haste de torque visando conseguir mais aderência na roda traseira.   



A Yamaha também trocou o principal patrocinador. A Movistar foi substituída pela Monster Energy e é esperado um novo visual da carenagem, com o tradicional azul cedendo espaço para o verde fluorescente habitual da gigante dos energéticos. Por enquanto a nova identidade visual é só especulação, que deve permanecer oculta até a apresentação oficial em 4 de fevereiro.



Poucos se animam a fazer previsões para a próxima temporada, além de esperar mais disputas. Tudo indica que, no jargão popular, a temporada da MotoGP em 2019 tenha um resultado mais imprevisível, afinal são “outros 500”.






sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

MotoGP - Duelo de Talentos





Nos primeiros anos do século anterior, quando a velocidade máxima permitida em estradas inglesas era apenas 35 Km/h e disputas estritamente proibidas, um grupo de entusiastas com o objetivo de testar os limites de velocidade e resistência sobre motos convergiu para a Ilha de Man. A ilha é uma dependência direta da Coroa Britânica situada no mar da Irlanda e com autonomia administrativa, suas rodovias não tem limite de velocidade. A primeira corrida organizada com um regulamento rudimentar foi realizada no dia 28 de maio de 1904, uma volta em um percurso de pouco mais de 15 milhas utilizando rodovias públicas interditadas para o público, com participação exclusiva para motos de estrada normais com todos os seus acessórios: silenciador, assento, pedais e apara lama. Foi a origem do Isle of Man TT (Tourist Trophy). 


A Federação Internacional de Motociclismo é uma entidade que promove e administra competições motorizadas sobre duas rodas, representa mais de uma centena de federações nacionais distribuídas em seis regiões continentais. A FIM também está envolvida em muitas atividades relacionadas com o esporte, sua segurança e políticas públicas relevantes. A origem da FIM pode ser rastreada até 1904, ano em que o clube de motociclismo da França organizou um evento internacional e convidou participantes da Áustria, Dinamarca, França, Alemanha e Grã-Bretanha. A França foi declarada vencedora da competição por impor regras que privilegiaram seus participantes e, para equalizar as condições em futuros eventos os cinco países criaram um órgão centralizador, a Fédération Internationale des Clubs Motocyclistes (FICM). A entidade teve vida curta e foi desativada em 1906 por absoluta falta de consenso. A Auto-Cycle Union, entidade britânica que administra o esporte de duas rodas na abrangência do Reino Unido promoveu o renascimento do FICM em 1912, com o objetivo declarado de criar e controlar os aspectos esportivos e de turismo do motociclismo. Os dez países que atenderam à convocação são considerados membros fundadores do FICM: Bélgica, Dinamarca, França, Grã-Bretanha, Itália, Holanda, Estados Unidos, Alemanha, Áustria e Suíça. O ano seguinte acolheu o primeiro evento internacional realizado sob o patrocínio da FICM e constou de diversas provas de resistência e velocidade, o International Six Days Reliability Trial. Nos anos que antecederam a segunda grande guerra o número de associações nacionais participantes cresceu para três dezenas e em 1936 a entidade promoveu o seu primeiro certame internacional atribuindo ao vencedor o título de campeão mundial.


A segunda grande guerra entre 1939 e 1945 provocou a suspenção das atividades esportivas no continente europeu, que foram retomadas em 1946, ano em que a FICM foi rebatizada como FIM e passou, a partir de 1949, a promover o mundial de motovelocidade.


O primeiro campeonato promovido pela Federação Internacional de Motociclismo constou de 6 Grandes Prêmios (Ilha de Man, Suíça, Alemanha, Bélgica, Irlanda e França). O primeiro GP realizado em um campeonato oficial foi o Isle of Man TT (Tourist Trophy), vencido pelo britânico Harold Daniell. 


Nos dias atuais, depois de 70 anos e 3096 GPs disputados em campeonatos mundiais, o motociclismo esportivo atingiu o ápice em termos de espetáculo e disputa. Conquistou o público com multidões comparecendo aos circuitos e cobertura mundial pela TV. Nunca na história houve tantos pilotos e equipamentos em condições de vencer uma prova. Esta afirmação ao fim de um campeonato onde o título foi decidido faltando ainda três provas para o final pode parecer descabida, entretanto a análise dos últimos resultados e o comportamento dos promotores, pilotos e chefes de equipe indica o contrário. 


O histórico das sete décadas de GPs identifica diversos ciclos com hegemonia de fabricantes ou pilotos, em todas as provas havia um equipamento ou piloto largava como favorito nas provas. Houve quase duas temporadas completas em que o vencedor foi o mesmo, Giacomo Agostini, que disputava em duas categorias, 500cc e 350cc. Assim como houve a era Agostini, aconteceram os anos com supremacia de pilotos norte-americanos (Kenny Roberts, Wayne Rainey e Freddie Spencer)), os anos comandados por um australiano Michael “Mick” Doohan (Aussie), a era de ouro de Valentino Rossi e a atual supremacia espanhola (Márquez & Lorenzo). Entre 2007 e 20015 todas as vitórias, com três exceções em um total de 160 GPs, ficaram com os pilotos de fábrica das equipes com os maiores orçamentos, Honda e Yamaha.
O ponto de ruptura com este estado de coisas foi o uso coercitivo do pacote eletrônico. A engenharia da Honda produzia motores com um desempenho absurdo e contava um software proprietário para controlar os excessos, administrando a potência e melhorando a dirigibilidade A Yamaha manifestou seu desagrado afirmando que em seu projeto houve um retrocesso de pelo menos uma década. As outras fábricas não foram muito afetadas e tiveram um aumento de suas chances de vitórias.

Esta migração para a equalização de desempenho está transformando a MotoGP. As equipes independentes até pouco tempo atrás herdavam equipamentos desatualizados apenas para aumentar o número de motos no grid. Na última temporada houve o fortalecimento do conceito de parceria, explorado com sucesso Ducati (Pramac) e Honda (LCR). Para o próximo mundial a Yamaha (Petronas) e KTM (Tech3) investem em equipes satélites. Os pilotos de equipes associadas utilizam equipamentos no mesmo nível de atualização dos oficiais de fábrica, participam dos testes privados e contribuem aumentando o número percepções fornecidas para os engenheiros de desenvolvimento.

Há, porém, um item que não tem como equalizar via regulamentação, o talento e capacidade dos pilotos. Durante toda a temporada passada até as pedras das áreas de escape dos circuitos sabiam que a RC213V não era tão eficiente como as Desmosedici GP18, entretanto no final da temporada a fábrica nipônica contabilizou 10 vitórias e a marca italiana apenas 7. Enquanto as vitórias da Ducati foram divididas entre seus dois pilotos, 4 com Dovizioso e 3 com Lorenzo, as da Honda foram concentradas em Marc Márquez, 9 de 10, comprovando que a capacidade do piloto consegue suprir o gap tecnológico entre equipamentos.  


Marc Márquez tem um talento único, utiliza as seções de testes nos fins de semana dos GPs para explorar ao máximo os limites do equipamento. Apesar de ter vencido as três últimas temporadas, neste período acumulou 57 quedas e deslocou o ombro várias vezes. Sua arrojada técnica de pilotagem exige muito esforço concentrado na parte frontal da moto, razão pela qual ele quase sempre opta pelos pneus mais resistentes (hard), que reconhecidamente tem limites de tolerância a erros mais reduzidos que os componentes macios (soft).


Todos os pilotos com assento na MotoGP são eficientes, alguns diferenciados e um número bem reduzido excepcionais. Uma regulamentação mais detalhista pode tornar o desempenho dos equipamentos muito semelhante e os esforços da engenharia endereçam pequenos detalhes para obter aumento de performance. A grande diferença está no talento dos condutores, deste modo fica fácil compreender os esforços da HRC em reunir no mesmo box Márquez e Lorenzo, os vencedores de oito dos nove últimos mundiais.