Valência 2017 |
A
MotoGP tem uma longa história, é injusto creditar exclusivamente a um ator,
ocorrência ou ao que aconteceu na última prova a conquista de um campeonato. Se
existia alguma desconfiança sobre o qual melhor piloto em atividade, e utilizo
o condicional porque paixão e razão dificilmente andam juntos, tem uma grande
chance de 2017 ter eliminado qualquer dúvida. Os 6 mundiais vencidos em 8
disputados ou os 4 títulos conquistados em 5 temporadas na classe principal
falam por si, entretanto nesta última edição Marc Márquez encontrou novas
formas de vencer, com um inventário variado de estratégias, técnicas e ousadia.
Sua capacidade de recuperar o controle de sua moto em episódios antes
considerados acidentes inevitáveis é demonstração de talento puro. Márquez é um
piloto que definitivamente anda mais que a máquina e a sua única desculpa para
contrariar as leis de Newton que regem o movimento dos corpos no universo é
nunca ter estudado física. Para definir Marc Márquez pode ser aplicada uma
frase de Maurício Gugelmin descrevendo sua admiração por Ayrton Senna: “Se for
convidado para disputar uma prova de moto-niveladoras, todos já têm uma noção
de quem é favorito”. O piloto da Honda é o mais jovem a conseguir 4 títulos na
classe principal e desde sua estreia em 2013, ano de seu primeiro triunfo, acumula
pelo menos 5 vitórias por temporada. Em 2017, com um equipamento complicado no
início do ano conseguiu apenas uma vitória nas 8 primeiras provas, nas últimas
10 venceu 5 vezes. Conquistou o campeonato pela consistência, marcou pontos
onde a vitória era impossível, seu pior resultado valido foi um 6º em Mugello.
Conseguiu ainda 2 quartos lugares, 3 não classificações (quedas na Argentina e
França, motor na Inglaterra) e esteve no pódio em todas outras provas.
A festa
da Repsol-Honda em Valência incluiu mais componentes que os títulos de Márquez,
fabricantes e equipes, poucos no circuito perceberam a importância da vitória
de Dani Pedrosa. O colega de equipe de Márquez é uma figura diferenciada nos
mundiais de motovelocidade. Com sua compleição física diminuta, 1,60 m de
altura e 51 Kg de peso, o espanhol de 32 anos estreou na então 125cc em 2001 e
desde 2006 pilota um dos equipamentos da equipe Honda. Em Valência conseguiu a
sua 31ª vitória na classe principal, o mesmo número de Eddie Lawson, e igualou o
total de 54 vitórias de Mick Doohan em todas as classes (detalhe: Doohan
conseguiu todas as suas vitórias na 500cc). O australiano Mick Doohan é o único
remanescente da época de ouro da motovelocidade que acompanha os números de Valentino
Rossi, Jorge Lorenzo, Marc Márquez e Dani Pedrosa, o chamado quarteto
fantástico. Ícones da história do motociclismo esportivo como Wayne Rainey,
Kevin Schwantz e Eddie Lawson já foram ultrapassados.
As conquistas
de Dani Pedrosa nunca foram suficientemente reconhecidas, ele é o único piloto
que venceu sucessivas disputas diretas na pista com gênios como Valentino
Rossi, Marc Márquez, Jorge Lorenzo e Casey Stoner. Alguns mais críticos sempre
indicam que ele só obteve títulos nas categorias menores (2003 na 125cc, 2004 e
2005 na 250cc), porém uma rápida consulta na relação de campeões desde 2006
indica apenas 5 nomes, Hayden, Stoner, Rossi, Lorenzo e Márquez, é um clube
muito restrito.
A
temporada terminou e provavelmente seus detalhes se percam nos registros do
tempo. Sobre 2017 a história deve mencionar brevemente os “Saves” miraculosos
de Márquez, as ordens de equipes e talvez a luta hercúlea de Andrea Dovizioso para
procrastinar a decisão para a última prova do ano em Valência. A vitória de Dani
Pedrosa vai ser só mais um dado estatístico.
O ano
de 2017 também ficou marcado por tentativas de solapar um dos princípios
básicos da MotoGP, a solidão dos pilotos desde que se apagam as luzes da
largada até a bandeirada final. O primeiro indício surgiu em Sepang, na penúltima
etapa do mundial. A prova era liderada pela Ducati #99 de Jorge Lorenzo,
seguida de perto pelo então ainda possível desafiante ao título Andrea
Dovizioso com a Ducati #04. Nas últimas voltas surgiu uma mensagem
aparentemente normal no painel de Lorenzo: “Suggested Mapping: Mapping 8”,
poderia ser apenas uma indicação da equipe para o piloto adequar o
comportamento da moto às condições de pneus e combustível para os últimos
quilômetros da corrida. A desatenção de Lorenzo em uma das voltas seguintes o
obrigou a abrir demais uma curva e ele foi ultrapassado. Dovizioso venceu a
prova e ganhou uma sobrevida, um tênue sopro de esperança de vencer o mundial.
Para os que acompanharam a corrida pareceu uma mensagem cifrada, para nós
tupiniquins reativou lembranças desagradáveis, Felipe Massa, Rubens Barrichello
e até Ayrton Senna (Suzuka 1991) já receberam ordens semelhantes, e obedeceram.
Quando
em Valência o painel de Lorenzo, que ocupava a 4ª colocação próximo aos líderes
e era seguido de perto por Dovizioso recebeu a mesma mensagem, foi quase uma confirmação
de que se tratava de uma ordem codificada da equipe. A sinalização, que tem
duração limitada, foi enviada diversas vezes a partir da metade da corrida e removeu
qualquer dúvida, a Ducati exigia que o espanhol cedesse a posição para o
italiano. Lorenzo simplesmente ignorou. A equipe então decidiu abandonar
qualquer escrúpulo e sinalizar ostensivamente com uma placa no muro dos boxes,
negando a Lorenzo qualquer possibilidade de alegar não ter recebido a
orientação.
A
recusa de Lorenzo não foi propriamente uma surpresa. Óbvio que ele estava
disposto a auxiliar o colega, mas as condições na pista nunca ofereceram a
mínima chance para Dovizioso e nestas circunstâncias ele preferiu perseguir sua
primeira vitória. Ele sempre soube durante a prova que a Ducati não tinha
equipamento para acompanhar as Honda e a Yamaha de Zarco. Assistiu de uma
posição privilegiada quando Márquez perdeu a frente e ainda assim permaneceu na
pista. Também sempre soube que para manter uma distância mínima do grupo da
frente estava assumindo riscos incompatíveis com as condições mínimas de
segurança. Ele apostou alto, e pagou sua audácia com uma queda. Lorenzo não
ficou surpreso por Dovizioso ter bancado a mesma aposta e saído na mesma volta.
A
Ducati foi obrigada a se render aos argumentos do piloto espanhol, seu procedimento
na pista sempre foi alinhado com o que era o mais útil para a equipe. Gigi
Dall'Igna, a principal autoridade da Ducati nos bastidores da prova perguntou a
Lorenzo se tinha recebido as repetidas mensagens, ouviu do espanhol a
confirmação de que estava ciente e decidiu ignorar pelas circunstâncias da prova.
A análise mais racional no ambiente da Ducati foi realizada pelo diretor Paolo
Ciabatti: “Não há como julgar a situação com base em imagens de TV, o piloto é
o único que sabe qual o ritmo possível. A empresa paga bons salários para seus
profissionais e deve confiar em seu discernimento. A Ducati teria todo o
direito de ficar indignada se Márquez não completasse a prova, Lorenzo ficasse
em 1º e Dovizioso em 2º. Não foi o caso”.
De
certa forma a conduta de Jorge Lorenzo resgatou o ideal esportivo da MotoGP,
corridas são decididas pelo desempenho de pilotos e máquinas na pista. A maioria
dos locutores e comentaristas que trabalharam no evento, incluindo os que
transmitiram para o Brasil, condenaram o comportamento do espanhol. Minha
opinião pessoal é que a instituição MotoGP foi preservada. Rossi, Lorenzo,
Márquez, Pedrosa, Vinales, Dovizioso e tantos outros vitoriosos se destacam por
serem excelentes pilotos, não por terem patrocínios pessoais fartos e/ou bons
advogados. Até os dias atuais persiste a dúvida para os adeptos da velocidade
se todas as realizações extraordinárias de Michael Schumacher eram devidas
exclusivamente ao seu talento nas pistas ou previstas em contratos com seus
empregadores. A MotoGP não pode adotar este caminho, abrindo mão da sua
essência.
No
pós-prova Márquez foi festejado, Dovizioso tratado com gentileza e Lorenzo
execrado pela mídia. O italiano foi recebido com uma salva de palmas quando compareceu
a um encontro com a imprensa, Jorge Lorenzo por muito pouco não foi agredido.
Um repórter mais afoito proferiu uma série de acusações e impropérios, recebeu
como retorno uma afirmação cortês: “Como você não fez uma pergunta, não tenho uma
resposta adequada”.
O que
teria acontecido se Lorenzo tinha deixado Dovizioso passar? O italiano
provavelmente cairia mais cedo se tentasse buscar os líderes, a moto #04 foi
mais lenta que a #99 em suas últimas voltas na pista. Assim como Lorenzo, não teria
como tentar uma maior aproximação com quem estava na ponta. Se o espanhol agiu
certo ou errado é irrelevante para os resultados do campeonato, as explicações
que apresentou são plausíveis. Talvez, e entrar no ramo de suposições é
complicado, o sentimento da Ducati pudesse ser suavizado se uma de suas motos
vencesse a prova, mesmo com Márquez terminando antes da 11ª colocação.
Se a
insistência obstinada da Ducati em obrigar Lorenzo a ceder posição foi um
legítimo gol contra, e a tentativa de justificar alegando ter sido só uma
sugestão ofende a inteligência dos adeptos da MotoGP. A fábrica italiana devia ter
percebido que seu desempenho ao longo da temporada foi mais que elogiável.
Levar um piloto até a última etapa com condições de vencer o mundial,
atropelando fabricantes japoneses e austríacos, já é uma grande proeza. Andrea
Dovizioso e a Ducati definitivamente não podem mais serem rotulados como coadjuvantes,
são protagonistas.
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