quinta-feira, 14 de outubro de 2021

MotoGP – Evolução dos últimos 20 anos

 



A evolução da MotoGP sempre esteve sintonizada com o desenvolvimento dos hábitos sociais. 

O movimento ecológico nasceu durante a Guerra Fria, uma corrida armamentista entre o ocidente (Estados Unidos) e o leste europeu (União Soviética). A motivação inicial dos ecologistas foi o boicote aos testes nucleares conduzidos pelas superpotências, o movimento já endereçou experiências genéticas, alimentos transgênicos, mudanças de clima, aquecimento global e emissão de poluentes.  Este último item resultou na exclusão dos motores a dois tempos do mundial de motociclismo. 

Nos últimos anos da década 90 as provas de protótipos perdiam espaço para a Superbike. A produção de motos de estrada com motores 2T estava sendo substituída por unidades 4T com menor emissão de gases poluentes, reduzindo sensivelmente o interesse das fábricas em manter e desenvolver a tecnologia. A Dorna Sports, que tem um compromisso de longo prazo com a FIM para administrar o Mundial de Motociclismo, preocupada com a redução de investimentos na categoria, esboçou um draft (esboço) de contrato com a MSMA (Motorcycle Sports Manufacturers Association), a organização que representa os fabricantes.

Este draft é considerado a certidão de nascimento da atual MotoGP.

O ano de 2002 foi de transição e os motores 2T 500cc compartilharam as pistas com os 4T 990cc. A capacidade volumétrica de 990cc foi escolhida para não coincidir com 1000cc utilizados no Mundial de Superbike. Um registro histórico desta temporada para nós, tupiniquins, é relacionado com o piloto Alex Barros. Ele disputou as primeiras doze etapas da temporada utilizando uma NSR500 2T, sua melhor colocação foi um segundo lugar na Catalunha. Nas 4 provas restantes com uma RC211V 4T Barros venceu 2 vezes, Japão e Valência, e foi o 2º na Austrália e 3º em Sepang. 

 
Alex Barros com a RC211V


Para a temporada de 2003 os motores dois tempos foram banidos, a Dorna fechou com os fabricantes um acordo de manter as regras estáveis por cinco anos, para possibilitar o retorno dos investimentos necessários para o desenvolvimento da nova especificação dos protótipos.

Os motores 4T que disputaram o primeiro GP em 2002 provaram a sua superioridade, vencendo todas as etapas do ano. Valentino Rossi iniciou a sua carreira com 8 vitórias nas primeiras 9 provas. As novas regras atraíram para a categoria o interesse de novos fabricantes como a Aprilia, Kawasaki e Ducati. A competição foi estimulada pelo farto financiamento de publicidade da indústria de tabaco, que reagiu às táticas de intimidação de Bernie Ecclestone na Fórmula 1 e elegeu a MotoGP como veículo alternativo para a divulgação de seus produtos.

O aumento da capacidade cúbica e o desenvolvimento da tecnologia proporcionaram um enorme ganho de velocidade, em 2002 as motos chegaram a 320km/h na reta de Mugello, dois anos depois Loris Capirossi com uma Ducati alcançou 341km/h durante a prova. A velocidade dos protótipos evoluiu, porém não foi acompanhada por características de segurança dos circuitos, como por exemplo maiores áreas de escape. A Comissão de Grandes Prêmios, que reúne a Dorna, (gestão e direitos comerciais), IRTA (equipes), MSMA (fabricantes) e FIM (regulamentações) buscaram maneiras de reduzir a velocidade.

Em 2007 optaram por, simultaneamente, reduzir a capacidade de 990cc para 800cc e limitar o volume máximo de combustível, congelando as especificações por um período mínimo de cinco anos. Quando os protótipos com o novo regulamento foram as pistas a velocidade máxima foi efetivamente controlada, entretanto os tempos por volta não diminuíram. As motos 800cc exigiam uma nova técnica de pilotagem e possibilitavam maior velocidade durante as curvas. A limitação do combustível em 21 litros forçou as fábricas a investir no gerenciamento eletrônico, para obter controle sobre a liberação de potência. O arrojo e a coragem dos pilotos, que até então eram fundamentais para vitórias, foram substituídos pela estratégia, disciplina e precisão.

O foco do desenvolvimento na eletrônica e na evolução do número de rotações para obter vantagens competitivas provocaram uma escalada de custos. As limitações para união europeia em relação à propaganda de cigarros reduziram os patrocínios e as equipes começaram a enfrentar problemas financeiros.

Vinte e uma motos alinharam no grid da primeira corrida das 800cc no Catar. Uma equipe que deveria ser uma das novidades da temporada, a Ilmor, desistiu depois da primeira prova quando percebeu o volume de investimentos financeiros necessários para operar com um protótipo competitivo. No final de 2007 haviam 19 motos disputando a competição, mais uma equipe abandonou o campeonato e a largada da primeira prova de 2008 foi com apenas 18 equipamentos na pista.

Foi um ano complicado em termos financeiros, diversas equipes ameaçaram abandonar o campeonato se não houvesse algum tipo de auxílio da Dorna. Havia também muita preocupação da FIM, a entidade havia assinado um contrato de longo prazo com a empresa espanhola para organizar a MotoGP, a classe definhava com poucos equipamentos no grid, apesar da qualidade e quantidade de pilotos procurando um assento.
 

A crise das hipotecas


Em 2008 a crise das hipotecas nos EUA abalou ainda mais o quadro financeiro mundial (uma marolinha como classificou o ex-presidente Lula). O conglomerado financeiro do banco de investimentos Lehman Brothers faliu. Com o mercado em Wall Street em pânico, todas as organizações congelaram projetos sem retorno financeiro imediato. Houve a falência de várias empresas, principalmente no setor de construção civil. A Espanha foi particularmente atingida, as empresas do país eram a principal fonte de financiamento para muitas equipes da MotoGP.

Sem dinheiro e sem patrocínio a Kawasaki anunciou que se retiraria da MotoGP em 2009, houve uma longa negociação para obrigar os japoneses a honrar o acordo de 5 anos que haviam assinado até 2011. A Honda também considerou seriamente abandonar a categoria, e só cedeu sob os argumentos do compromisso histórico e da paixão dos nipônicos pelo esporte.

No início de 2010 o quadro geral era desolador. Aproveitando uma brecha no compromisso assumido em 2007 a Suzuki reduziu a sua equipe para uma única moto, apenas dezessete pilotos foram inscritos no campeonato evidenciando que o Mundial de MotoGP não era sustentável na forma em que se encontrava.

A Dorna (organização & comercial) estava extremamente preocupada com o futuro e decidiu, em conjunto com a IRTA (equipes & patrocinadores) investir em uma correção de rumo, as provas tinham de ser mais competitivas e os custos menores.

A eletrônica e o número de rotações por minuto (RPMs) deviam ser limitados.

Estes dois itens, acreditavam, seriam suficientes para suprimir o gap entre concorrentes nas pistas.
Havia, porém, um problema, a MSMA (fabricantes) tinha o poder de veto para alterações nos regulamentos técnicos e não aceitou estas mudanças. Sem qualquer alteração, o baile seguiu até a nova rodada de negociações para o período de 2012 a 2017, onde as condições das fábricas de vetar regulamentos técnicos foram sensivelmente reduzidas. 

Não foi uma transição tranquila, a MSMA posicionou-se contra as limitações na eletrônica que, se implementadas, afastariam as fábricas do esporte. A Suzuki argumentou que sua participação não faria sentido se não tivesse condições de desenvolver eletrônica. A HRC seguiu na mesma linha e seu chefe na época, Shuhei Nakamoto afirmou textualmente “A Honda não tem nenhum interesse na MotoGP sem desenvolvimento eletrônico”. A razão era simples, os fabricantes utilizam a competição como laboratório para desenvolver tecnologias que possam ser portadas para as máquinas comerciais. “Eletrônica proprietária e limites de combustível fornecem dados valiosos para a engenharia de motos de estrada”, explicou Nakamoto, “especialmente na economia de combustível e na resposta ao acelerador, que é o ambiente natural das Scooters”.
 

ECU Padronizada


As negociações não foram fáceis. Na ausência de registros oficiais das reuniões, vazaram uns poucos relatos, não confirmados pelas partes. A HRC ameaçou retirar-se se a Dorna insistisse em impor uma especificação de ECU. Uma fonte presente nas discussões confirmou que a posição da Dorna foi inflexível, teria dito a Nakamoto que ele poderia, neste caso, acompanhar a próxima temporada pela TV.

Entretanto um acordo foi oficializado com concessões de ambas as partes.

A partir de 2012 os motores teriam 1000cc, mais próximos dos projetos desenvolvidos para equipamentos de estrada, seriam limitados a 4 cilindros com diâmetro máximo de 81mm, especificação dedicada a limitar as RPMs que foi bem-sucedida durante algum tempo. Ainda era necessário conter os custos das equipes e a Dorna criou a classe CRT (Claiming Rule Teams) para permitir a participação de equipes independentes com orçamentos mais baixos, utilizando motores de produção comercial em chassis de protótipos. A novidade atraiu diversas equipes, aumentando o número de equipamentos no grid. Os resultados apareceram, em 2011 apenas 17 motos alinharam para a largada na primeira prova no Catar, em 2012, havia 21 equipamentos na pista.

 
Aprilia CRT

As motos CRT com excesso de peso e potência limitada não tinham condição para competir com equipamentos de fábrica, foram consistentemente mais de 2 segundos mais lentos nas pistas, mas em parte cumpriram a sua missão, reduziram consideravelmente o custo de entrada na MotoGP.

Em nenhum momento houve a ilusão de que um equipamento CRT pudesse vencer uma corrida, o seu proposito foi pressionar os fabricantes, Honda, Yamaha e Ducati, mostrando que a categoria tinha condições de sobreviver sem eles. Lógico, não teria o mesmo apelo comercial, porém a ideia trabalhada foi que os espectadores eram atraídos para assistir a disputa entre os melhores pilotos do mundo, não estavam particularmente interessados com os detalhes das máquinas.

Este movimento, interpretado como um blefe nos fabricantes, provou ser incrivelmente eficaz. As fábricas prometeram disponibilizar motos a preços razoáveis, porém exigiram algumas concessões em troca. A CRT evoluiu para a Open Class e em 2014 as fábricas aceitaram especificações do hardware ECU (não o software), em troca exigiram um corte no subsídio de combustível e uma redução no número de motores permitidos por temporada, para criar um desafio para seus departamentos de engenharia. As motos da Open Class poderiam utilizar o pacote eletrônico padronizado produzido pela Magneti-Marelli (hardware e software) e, como compensação, teriam mais combustível em cada prova.

Foi uma evolução, mas assim como já havia acontecido com a classe CRT, a diferença de desempenho entre equipamentos das fábricas e da Open Class continuou a ser significativa. Com o produto MotoGP mais palatável para o mercado, a Dorna aumentou o seu poder de barganha e conseguiu convencer os principais fabricantes a ceder, a popularidade do esporte estava em alta. O dinheiro da TV contribuiu para manter o campeonato financeiramente saudável.

2015 foi um marco no motociclismo esportivo, as fábricas finalmente aceitaram utilizar o pacote eletrônico completo e a partir de 2016 todos usariam o hardware e software padronizados. Com a especificação eletrônica vieram novos fabricantes, a Suzuki voltou a participar e a Aprilia, que fornecia uma versão turbinada da RSV4 para o WorldSBK, montou uma associação com a Gressini e inscreveu uma equipe própria.

Davide Brivio, então o chefe da equipe Suzuki, foi específico ao indicar que as novas regras aumentavam as condições de competitividade, “não era mais necessário um orçamento ilimitado para sonhar com vitórias”. A KTM iniciou o seu projeto de retornar para a MotoGP, aproveitando as experiências na Moto2 e Moto3, investindo na construção de um protótipo competitivo. As RC16 fizeram sua estreia em 2016 na última prova em Valência, e disputaram 2017 com uma equipe com duas máquinas no grid.

O esforço realizado na elaboração dos regulamentos técnicos contribuiu para melhorar o espetáculo e recuperar o brilho da MotoGP. Simultaneamente a Dorna trabalhou para estabilizar economicamente as equipes privadas e houve uma remodelação radical nos contratos com as fábricas.

Várias coisas aconteceram, as equipes tiveram, além da maior liberdade de escolha, a tranquilidade de um fluxo financeiro previsível. A introdução da especificação eletrônica, juntamente com o congelamento do desenvolvimento do motor durante a temporada para as equipes que conseguiram pelo menos um pódio no ano anterior, com concessões para todos as demais, reduziu o gap entre equipamentos na pista. A troca de fornecedor exclusivo de pneus (Michelin) também introduziu uma variável a mais, porque todos partiram de uma base comum, sem históricos anteriores para balizar o ajuste da moto. A Ducati, por ter fornecido equipamentos para a Open Class, conseguiu explorar os segredos da eletrônica padronizada com mais facilidade.

A aproximação do desempenho dos equipamentos potencializou a importância de dois fatores que contribuem para o sucesso de uma equipe, o talento do piloto e a quantidade de dados coletados para ajustar o equipamento na forma ideal. A importância do piloto é inquestionável, a gestão adequada do consumo de combustível e do desgaste dos pneus durante a prova fazem diferença. Ter dois pilotos competentes coletando dados na mesma moto passou a ser insuficiente. A busca de um ajuste perfeito para uma corrida só pode ser obtida através de testes na pista, detalhes coletados e impressões dos pilotos.

Todos estes fatores juntos tiveram um efeito profundo não só nas corridas, mas na maneira como a prova é planejada, na estratégia do piloto e no equilíbrio de responsabilidades dentro do paddock. Hoje em dia não é apenas mérito de um piloto que vence uma prova, é fundamental o trabalho de equipe.

As equipes satélites foram durante muito tempo apenas uma fonte de renda para as fábricas. No final da última prova em Valência, as fábricas repassavam as motos utilizadas na temporada para as satélite e iniciavam o trabalho com os seus novos modelos.

Historicamente, o apoio oferecido pela Honda para a LCR e pela Ducati para Pramac foram exemplos de como melhorar o relacionamento entre satélites e fábricas. A Honda tem Alex Márquez e Takaaki Nakagami com máquinas idênticas às utilizadas por seus pilotos oficiais, e em temporadas anteriores bancou os salários de Cal Crutchlow. Engenheiros da Honda, Ducati e Yamaha fornecem apoio total às equipes satélites.

As fábricas perceberam que mais pilotos e mais informações coletadas podem ser um diferencial. A Suzuki está garimpando uma equipe satélite, a ideia é ter pelo menos um terceiro equipamento igual ao utilizado pelos pilotos oficiais. A KTM conta com a colaboração da Tech3 como equipe subsidiária. 


Takaaki Nakagami da independente Honda Idemitsu


Muitas coisas mudaram na MotoGP nos últimos tempos. O relacionamento entre fábricas e satélites mudou de fornecedor & cliente para parceria. Não existe mais uma relação hegemônica. As fábricas precisam das equipes privadas na mesma proporção que as independentes precisam delas. Os fabricantes ainda estão no comando, mas é necessário maior esforço para manter um bom relacionamento com as suas equipes satélite.

Ao contrário do que pode parecer, os fabricantes não encontram vantagem significativa em um campeonato competitivo. Trabalhando com orçamentos milionários, os chefes de equipes têm que mostrar serviço, e vitórias muito diluídas não contribuem para o humor dos responsáveis pela alocação de recursos. Apenas um piloto pode ser campeão do mundo, e apenas uma fábrica pode obter o título de vencedora da temporada. Escolhas erradas e pequenas falhas podem caracterizar uma fábrica como não competitiva e, comercialmente, esta qualificação é um desastre. 

Existe um consenso que a MotoGP vive os seus melhores dias, o plano de longo prazo estabelecido na década passada está apresentando resultados. O problema de atingir o ápice é que a única maneira seguir em frente é para baixo. Manter-se na preferência de espectadores e patrocinadores  é o desafio atual da MotoGP.

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

MotoGP - Circuit of the Americas (CotA) 2021




Depois da ausência de um ano por causa da pandemia, o Circuito das Américas situado em Austin voltou a hospedar uma etapa do Mundial de MotoGP. Por ser uma pista multiuso o traçado continuou a ser utilizado em 2020 e estava com o piso em más condições, houve diversas reclamações dos pilotos, alguns inclusive advogando o cancelamento do evento. O piloto da Aprilia, Aleix Espargaro, que contabilizou 5 quedas nos 3 dias da programação do GP, reclamou muito da superfície do asfalto, classificando-a de ridiculamente esburacada. Surpreendentemente  o candidato ao título Pecco Bagnaia, da Ducati, anunciou seu apoio ao cancelamento da etapa, não importando o fato de que isso efetivamente acabaria com suas chances de lutar pelo campeonato de 2021.


 
Uma das quedas de Aleix Espargaro - CotA 2021


A história dos campeonatos mundiais de motovelocidade contempla diversos GPs onde os pilotos se recusaram a correr. Havia uma Associação Internacional de Motociclistas com o objetivo de preservar as condições mínimas de segurança dos condutores. O circuito de Interlagos foi vetado em uma vistoria prévia realizada por Kevin Schwantz em 1991, voltou ao calendario no ano seguinte depois de alterações de layout (inclusão de uma chicane). O arranjo foi considerado insuficiente pelos pilotos e a pista foi definitivamente retirada do calendário 

O último boicote bem sucedido aconteceu no GP da Itália de 1989 realizado em Misano, onde os pilotos encontraram um piso perigosamente escorregadio na chuva. Comunicaram aos organizadores que não haveria corrida se o clima não colaborasse no domingo. Houve uma largada e com poucas voltas a chuva chegou, o então líder da prova Kevin Schwantz ergueu o braço e todos recolheram seus equipamentos. Depois de algum tempo, por pressão dos organizadores, houve nova largada com 12 protótipos, apenas um piloto oficial foi para a pista.   

Os tempos são outros. Além de circuitos mais seguros, os interesses comerciais tem maior peso quando se trata de cancelar um evento. Antigamente todo o poder de decisão era concentrado em promotores e proprietários de circuitos, o cancelamento de um evento tinha um efeito limitado a talvez 100.000 espectadores presentes no autódromo. Nos dias atuais consideram outros valores como os i interesses comerciais de patrocinadores e cobertura pela mídia, a possível não realização de uma prova também avalia o resultado da frustração de 300 milhões de telespectadores ou usuários de serviços de streaming na internet em todo o mundo.

Existe uma história folclórica sobre pilotos promoverem boicote a GPs. Dez anos atrás, vários dos principais pilotos da MotoGP tentaram, na esteira do desastre nuclear de Fukushima, cancelar o GP do Japão por possíveis riscos de contaminação causada pela radiação que espalhou por partes do país. Uma das vozes mais atuantes neste sentido foi a do campeão  Jorge Lorenzo, que disse a jornalistas que tinha tido o acesso a um documentário sobre o desastre nuclear de Chernobyl e estava receoso de visitar Motegi. Seu argumento foi contraditado por um colega com a colocação: “Jorge, isso significa que se você assistir a um filme sobre vampiros vai ficar receoso de correr no escuro no Catar no próximo ano?”.


 CotA – Território de Marc Márquez


A MotoGP tem um costume bizarro. Sempre que visita um circuito na América do Norte, 23 dos melhores pilotos do mundo cumprem um ritual estranho de disputar quem vai compartilhar o pódio com Marc Márquez. Tem sido assim desde 2011, a primeira corrida do 6 vezes campeão do mundo nas terras do Tio Sam disputando a Moto2. Desde então o espanhol só não venceu o GP de 2019 quando não completou por um motivo controverso, o piloto diz que errou, porém, vários observadores garantem que foi falha do equipamento. Marc venceu 13 das 14 provas que disputou nos EUA, 2 vezes na Moto2 (Indianápolis) e 11 na MotoGP (uma em Laguna Seca, 3 em Indianápolis e 7 em Austin).

O fato mais marcante da programação do GP dos EUA aconteceu na prova da Moto3, com o ambiente ainda sombrio impactado pela morte de 3 pilotos nos últimos 4 meses. 


Alcoba (#52) prestes a ser ultrapassado por Oncu (visíveis apenas suas rodas)


A prova foi interrompida por bandeira vermelha depois de 7 voltas devido ao acidente de Filip Salac na curva 11. Três voltas depois da relargada um grupo estava descendo a longa reta quando tiveram início as disputas habituais pelo vácuo. Utilizar o vácuo é essencial na Moto3, é um acréscimo sem custo de velocidade em uma classe onde todos os equipamentos tem um desempenho muito semelhante. 

O piloto turco Deniz Oncu passou por Jeremy Alcoba com velocidade estimada de 225 km/h, e depois para fazer a tomada de curva atravessou na frente de seu concorrente. Sua roda traseira esbarrou na dianteira de Alcoba provocando a queda (highside) do piloto espanhol. Andrea Migno e Pedro Acosta que seguiam no bloco não tiveram tempo para desviar e atingiram a máquina caída do espanhol. A sobrevivência dos 3 pilotos, sem um único osso quebrado, foi uma grande prova da segurança dos equipamentos com a colaboração da largura da pista. 

Oncu foi acusado de pilotagem irresponsável e banido por dois GPs por comissários da FIM, por "desviar para a linha de outro piloto". O traçado utilizado pelo piloto turco não é incomum, não desviou agressivamente, mas talvez tenha atravessado na frente de Alcoba mais rapidamente do que precisava.


Migno bate na moto caída de Alcoba e é catapultado da moto
 
Alcoba e Migno já estão no chão, Acosta cambaleia pelo ar após bater na moto caída de Alcoba
 
Migno, Acosta e Alcoba se afastam ilesos do acidente

 A manobra protagonizada por Oncu não foi super agressiva, mas houve o consenso dos pilotos que os comissários da FIM estavam corretos em dar ao turco de 18 anos uma penalidade de duas corridas, uma sanção dura, mas necessária porque os comissários e a Dorna perderam o controle da Moto3 (Como consertar o pesadelo da Moto3 - StiloHouse 14/08/021) e estão traumatizados pela perda recente de 3 pilotos. Precisam reafirmar sua autoridade de forma rápida e decisiva.

Penalidades tem por objetivo encorajar os pilotos da Moto3 a pensar com mais cuidado sobre o que estão fazendo. Penalizações de posições no grid e voltas longas não são suficientes orque ainda permitem a recuperação do piloto durante o transcorrer das provas. 


 Moto sinistrada de Zarco passa entre as motos de Vinales e Rossi em Red Bull Ring 2020


De certa forma, o acidente da Moto3 pode ser comparado com o que aconteceu em Red Bull Ring no ano passado entre Johann Zarco e Franco Morbidelli. Na ocasião o piloto francês não deu opção para o ítalo-brasileiro, o choque foi inevitável, por sorte não havia tráfego próximo. Foi considerado culpado por direção irresponsável e penalizado por largar do pitlane na prova seguinte do calendário..



 Choque entre Marc Márquez e Valentino Rossi em Sepang 2015


O chamado “incidente em Sepang” que aconteceu em 2015 também remete a uma disputa acirrada entre 2 pilotos que resultou em uma queda do então campeão do mundo em um contexto semelhante. Relembrando, na ocasião Valentino Rossi estava em busca de seu 10º título mundial e encontrou Marc Márquez na pista. Houve uma feroz disputa por posições e em um determinado momento aconteceu a queda do piloto Honda. Valentino Rossi foi considerado culpado pelos comissários e a sua penalização foi largar no fim do grid na última etapa do ano, que sepultou em definitivo suas esperanças no campeonato (vencido por Jorge Lorenzo).

Embora tenha tido ampla cobertura da mídia e múltiplas imagens, as causas do acidente ainda são controversas, uns alegam que Márquez caiu sozinho, outros que teria havido um toque intencional de Rossi. As narrativas contraditórias duram até os dias atuais e as são semelhantes à situação descrita por Morais Moreira na letra de seu sucesso “O Rei do gatilho: “Ele atirou, eu atirei, e nós trocamos tantos tiros que até hoje ninguém sabe quem morreu. Eu garanto que foi ele, ele garante que fui eu”.

Após o desastre na corrida de Moto3, a Moto2 voltou ao básico, Ao final de 18 voltas difíceis, o espanhol Raul Fernandes conquistou a sua terceira vitória consecutiva, igualando o recorde de Marc Márquez como o novato com maior número de vitórias na Moto2. Fabio Di Giannantonio tentou desafiar o líder e conquistou seu segundo pódio na temporada.

Os mais atentos notaram que o terno utilizado por Marc Márquez na prova tinha uma ligeira diferença, era mais largo no braço direito. Este detalhe permitiu mais conforto e liberdade para voltar a colocar o cotovelo no chão. O espanhol ainda não está com sua condição física ideal, porém todos já entenderam que ele já é um dos candidatos ao título em 2022.


A recuperação de Marc Márquez está próxima do ponto ideal

MotoGP - Motociclismo é um esporte perigoso, o que pode ser feito?

Sugestões de pilotos da MotoGP para melhorar a segurança nas classes de acesso, Moto3/SSP300, após as trágicas mortes de Hugo Millan(14), Jason Dupasquier (19) e Dean Berta Vinales(15) este ano.

“Ardil 22” é uma expressão criada por Joseph Heller em seu romance “Catch 22” publicado em 1961, que descreve uma situação paradoxal onde a solução de um problema acaba recriando a situação original. Conjunturas de “ardil-22” podem ser encontradas na definição de “deadlock” utilizada em computação quando dois processos encontram um impasse, paradoxalmente esperando um pelo outro para terminar.


 
Homenagem ao piloto Jason Dupasquier - acidentado no GP da Italia, Moto3, em Mugello


A crescente popularização do motociclismo esportivo, principalmente o mundial de pilotos, está criando um Ardil 22. Maior público implica em mais visibilidade pela mídia, mais retorno para os patrocinadores, maior valorização (leia-se salários) para os pilotos e, por consequência, número crescente de candidatos a participar dos eventos. O supersalário negociado por Jorge Lorenzo quando em 2017 se transferiu para a Ducati e os rendimentos atuais associados aos contratos de Valentino Rossi e Marc Márquez funcionam como um poderoso argumento para atrair pilotos cada vez mais jovens. 

Motociclismo é sabidamente um esporte perigoso, porém após três mortes de adolescentes em quatro meses, profissionais da MotoGP concordam que medidas devem ser tomadas para lidar com a série de lesões fatais para os pilotos da Moto3/SSP300 que caem na frente de outros competidores.

“É mais do que terrível, é atroz o que acontece este ano com tantas vidas jovens sendo perdidas”, disse Jack Miller, piloto oficial da Ducati. Comentando sobre o Dean Berta Vinales avaliou que “o pobre garoto não teve vida plena, e isso é terrível”. Acrescentou que “um dos jovens australianos que reside em Andorra e foi envolvido no acidente, Harry Khouri, está arrasado. Com toda a certeza a ocorrência destas tragédias afeta essas crianças”.  O piloto da Ducati entende que “que não se deve impedir jovens de participar de competições porque é isso que eles amam, sabem dos riscos envolvidos e não há muito que possa ser feito, exceto tentar tornar a corrida mais segura”. Miller acrescentou: “Tem que haver uma grande evolução no tocante a segurança. Este ano tem sido especialmente ruim, é inaceitável perder 3 pilotos no espaço de poucos meses. Acho que falo em nome de todos quando digo que estou ficando doente e cansado de participar de minutos de silêncio para crianças tão jovens. É tão ruim que não pode continuar, com certeza. Não pode, de jeito nenhum. Algo precisa ser feito.”


Jack Miller

Aleix Espargaro, companheiro de equipe do piloto da Aprilia Maverick Vinales, que retirou do GP de Austin após a morte de seu primo, disse: “Precisamos mudar alguma coisa, porque o maior problema não são as três mortes que tivemos nos últimos seis meses, que por si só já é uma tragédia. O maior problema é a tendência que está sinalizando, preocupa porque existem muitas competições programadas para as classes menores nas próximas semanas em toda a Europa. Com certeza acredito que além de aumentar a idade mínima, existem mais coisas que podem ser feitas. Espero que a Dorna e todos os outros pilotos da MotoGP possam fazer um brainstorming e sugerir soluções. Durante os últimos dias, escrevi muitas das ideias que me vieram à mente e quero discutir com Dorna porque tenho certeza que eles também estão trabalhando duro nisso. Compilei uma grande lista que espero possa ajudá-los”.


Aleix Espargaro - Piloto da Aprilia


Além de elevar a idade mínima, estas são algumas medidas sugeridas por Aleix Espargaro, Jack Miller e outros pilotos de MotoGP reunidos em Austin (CotA) para a etapa do GP dos EUA :

Talvez a preocupação mais comum é que colocar jovens pilotos em circuitos do tamanho de grandes prêmios com máquinas com potência reduzida e fáceis de pilotar resulta em grande número de pilotos disputando o turbilhão gerado pelo vácuo. “Os equipamentos não tem muita potência nas classes menores e a estabilidade é muito alta. Então não é complicado ser rápido com esse tipo de moto e é muito difícil fazer a diferença”, disse Aleix Espargaro. “Podemos ver, por exemplo, na Moto3. Pedro Acosta é muito mais talentoso que os outros pilotos, mas ele nunca pode se destacar nas corridas. Este é um exemplo claro”.


Adeus a Hugo Millan, de apenas 14 anos, falecido em uma etapa da Talent Cup em Aragon


“O talento desses jovens é incrível e eles atingem o alto nível dessas motos pequenas e motores com pouca potência muito rapidamente”, disse o seu irmão mais novo Pol Espargaro. “Então o problema é que todas essas crianças chegam ao nível mais alto das motos muito rápido e a diferença de performance é pequena, então as vantagens de andar no vácuo são significativas, por isso andam agrupados. Com certeza os problemas estão centrados em potência da moto, pouca idade e baixa experiência dos pilotos. Então, se queremos melhorar a situação, uma coisa é talvez aumentar a idade e elevar o nível de cada bicicleta. As motos são muito lentas e muito “ruins”.  Quando existia a 125cc (substituída pela Moto3 em 2012) as motos eram bastante agressivas e fortes e um piloto sem ritmo não conseguia seguir um com meio segundo mais rápido porque a chance de queda era grande. Talvez aumentar a potência seja uma solução, mas precisa ser melhor analisado.“

“Os três trágicos acidentes deste ano aconteceram quando as motos andavam juntas, talvez a solução seja equipamentos com mais potência” concorda Alex Rins, da Suzuki.

Aleix Espargaro acredita que outra solução seria atrasar a mudança para circuitos onde são realizadas provas da MotoGP. “Minimotos em pistas de kart são uma excelente escola. Talvez obrigar crianças a ficar mais tempo em pistas de kart onde a velocidade é menor e pilotos podem ter um acidente sem grandes consequências”, disse ele. “Poderiam adiar de 1 a 2 anos a chegada a uma pista oficial, por exemplo. No passado a popularidade das minimotos era muito alta, atualmente todo mundo quer correr nas classes de acesso da MotoGP ou Supersport 300 em pistas homologadas.  “Talvez essa seja uma solução também, correr mais em pistas pequenas como o kart, porque acho que lá as crianças podem aprender o mesmo ou até mais.

“O problema é que uma criança pode participar de uma competição organizada em uma pista oficial como Barcelona com uma Moto4 (quadricículo), que é quase uma Moto3, a partir de 12 anos.”

No caso do Supersport 300, Miller sente que a falta de desempenho em relação ao tamanho da pista é agravada pelo peso das motos.

“Na Supersport, essas motos não são muito rápidas e há muita variedade, essas motos não podem ser consideradas leves por qualquer ponto de vista”, disse o australiano. “Com certeza é muito peso.”

A redução do tamanho do grid foi levantada por vários pilotos da MotoGP.  “Há muitos pilotos no grid de largada e quando algo infelizmente dá errado, a chance de um acidente acontecer é duplicada ou triplicada, são muitos pilotos buscando se destacar”, disse Miller.

No entanto, Pol Espargaro ressaltou que os piores acidentes não são exclusividade do excesso de pilotos: “Existem ocorrências trágicas que não podem ser atribuídas ao excesso de pilotos, Dupasquier estava na qualificação com apenas três pilotos atrás”.

Aleix Espargaro acredita que o motociclismo precisa incorporar parte da tecnologia avançada que está sendo testada para veículos rodoviários, como detecção automática de acidentes e até mesmo cortar automaticamente a potência das motos perto do local de um acidente. “Uma variedade de coisas diferentes pode ser feita para minimizar o evitar o contato entre equipamentos com uso da tecnologia,

Existe recursos disponíveis que sequer estão sendo utilizados. “Por exemplo, airbags não são obrigatórios, no Campeonato Mundial Júnior”, encarece muito o custo das equipes. 


Marc Márquez & Pol Espargaro - pilotos da equipe oficial da Honda


Marc Marquez e Pol Espargaro, companheiros de equipe da Repsol Honda, destacaram que o número crescente de classes juniores significa que estatisticamente mais jovens estão sujeitos a sofrer acidentes graves. “Estão (acidentes) acontecendo como mais frequência nos últimos anos porque há mais crianças correndo”, disse Espargaro. “Eu me lembro quando comecei a correr era apenas o campeonato espanhol e o campeonato mundial de MotoGP. “Não havia muitas categorias de jovens correndo. Agora, cada vez mais, há muitas competições diferentes, que também aumenta a probabilidade de que as coisas ruins possam acontecer.”