quinta-feira, 14 de outubro de 2021

MotoGP – Evolução dos últimos 20 anos

 



A evolução da MotoGP sempre esteve sintonizada com o desenvolvimento dos hábitos sociais. 

O movimento ecológico nasceu durante a Guerra Fria, uma corrida armamentista entre o ocidente (Estados Unidos) e o leste europeu (União Soviética). A motivação inicial dos ecologistas foi o boicote aos testes nucleares conduzidos pelas superpotências, o movimento já endereçou experiências genéticas, alimentos transgênicos, mudanças de clima, aquecimento global e emissão de poluentes.  Este último item resultou na exclusão dos motores a dois tempos do mundial de motociclismo. 

Nos últimos anos da década 90 as provas de protótipos perdiam espaço para a Superbike. A produção de motos de estrada com motores 2T estava sendo substituída por unidades 4T com menor emissão de gases poluentes, reduzindo sensivelmente o interesse das fábricas em manter e desenvolver a tecnologia. A Dorna Sports, que tem um compromisso de longo prazo com a FIM para administrar o Mundial de Motociclismo, preocupada com a redução de investimentos na categoria, esboçou um draft (esboço) de contrato com a MSMA (Motorcycle Sports Manufacturers Association), a organização que representa os fabricantes.

Este draft é considerado a certidão de nascimento da atual MotoGP.

O ano de 2002 foi de transição e os motores 2T 500cc compartilharam as pistas com os 4T 990cc. A capacidade volumétrica de 990cc foi escolhida para não coincidir com 1000cc utilizados no Mundial de Superbike. Um registro histórico desta temporada para nós, tupiniquins, é relacionado com o piloto Alex Barros. Ele disputou as primeiras doze etapas da temporada utilizando uma NSR500 2T, sua melhor colocação foi um segundo lugar na Catalunha. Nas 4 provas restantes com uma RC211V 4T Barros venceu 2 vezes, Japão e Valência, e foi o 2º na Austrália e 3º em Sepang. 

 
Alex Barros com a RC211V


Para a temporada de 2003 os motores dois tempos foram banidos, a Dorna fechou com os fabricantes um acordo de manter as regras estáveis por cinco anos, para possibilitar o retorno dos investimentos necessários para o desenvolvimento da nova especificação dos protótipos.

Os motores 4T que disputaram o primeiro GP em 2002 provaram a sua superioridade, vencendo todas as etapas do ano. Valentino Rossi iniciou a sua carreira com 8 vitórias nas primeiras 9 provas. As novas regras atraíram para a categoria o interesse de novos fabricantes como a Aprilia, Kawasaki e Ducati. A competição foi estimulada pelo farto financiamento de publicidade da indústria de tabaco, que reagiu às táticas de intimidação de Bernie Ecclestone na Fórmula 1 e elegeu a MotoGP como veículo alternativo para a divulgação de seus produtos.

O aumento da capacidade cúbica e o desenvolvimento da tecnologia proporcionaram um enorme ganho de velocidade, em 2002 as motos chegaram a 320km/h na reta de Mugello, dois anos depois Loris Capirossi com uma Ducati alcançou 341km/h durante a prova. A velocidade dos protótipos evoluiu, porém não foi acompanhada por características de segurança dos circuitos, como por exemplo maiores áreas de escape. A Comissão de Grandes Prêmios, que reúne a Dorna, (gestão e direitos comerciais), IRTA (equipes), MSMA (fabricantes) e FIM (regulamentações) buscaram maneiras de reduzir a velocidade.

Em 2007 optaram por, simultaneamente, reduzir a capacidade de 990cc para 800cc e limitar o volume máximo de combustível, congelando as especificações por um período mínimo de cinco anos. Quando os protótipos com o novo regulamento foram as pistas a velocidade máxima foi efetivamente controlada, entretanto os tempos por volta não diminuíram. As motos 800cc exigiam uma nova técnica de pilotagem e possibilitavam maior velocidade durante as curvas. A limitação do combustível em 21 litros forçou as fábricas a investir no gerenciamento eletrônico, para obter controle sobre a liberação de potência. O arrojo e a coragem dos pilotos, que até então eram fundamentais para vitórias, foram substituídos pela estratégia, disciplina e precisão.

O foco do desenvolvimento na eletrônica e na evolução do número de rotações para obter vantagens competitivas provocaram uma escalada de custos. As limitações para união europeia em relação à propaganda de cigarros reduziram os patrocínios e as equipes começaram a enfrentar problemas financeiros.

Vinte e uma motos alinharam no grid da primeira corrida das 800cc no Catar. Uma equipe que deveria ser uma das novidades da temporada, a Ilmor, desistiu depois da primeira prova quando percebeu o volume de investimentos financeiros necessários para operar com um protótipo competitivo. No final de 2007 haviam 19 motos disputando a competição, mais uma equipe abandonou o campeonato e a largada da primeira prova de 2008 foi com apenas 18 equipamentos na pista.

Foi um ano complicado em termos financeiros, diversas equipes ameaçaram abandonar o campeonato se não houvesse algum tipo de auxílio da Dorna. Havia também muita preocupação da FIM, a entidade havia assinado um contrato de longo prazo com a empresa espanhola para organizar a MotoGP, a classe definhava com poucos equipamentos no grid, apesar da qualidade e quantidade de pilotos procurando um assento.
 

A crise das hipotecas


Em 2008 a crise das hipotecas nos EUA abalou ainda mais o quadro financeiro mundial (uma marolinha como classificou o ex-presidente Lula). O conglomerado financeiro do banco de investimentos Lehman Brothers faliu. Com o mercado em Wall Street em pânico, todas as organizações congelaram projetos sem retorno financeiro imediato. Houve a falência de várias empresas, principalmente no setor de construção civil. A Espanha foi particularmente atingida, as empresas do país eram a principal fonte de financiamento para muitas equipes da MotoGP.

Sem dinheiro e sem patrocínio a Kawasaki anunciou que se retiraria da MotoGP em 2009, houve uma longa negociação para obrigar os japoneses a honrar o acordo de 5 anos que haviam assinado até 2011. A Honda também considerou seriamente abandonar a categoria, e só cedeu sob os argumentos do compromisso histórico e da paixão dos nipônicos pelo esporte.

No início de 2010 o quadro geral era desolador. Aproveitando uma brecha no compromisso assumido em 2007 a Suzuki reduziu a sua equipe para uma única moto, apenas dezessete pilotos foram inscritos no campeonato evidenciando que o Mundial de MotoGP não era sustentável na forma em que se encontrava.

A Dorna (organização & comercial) estava extremamente preocupada com o futuro e decidiu, em conjunto com a IRTA (equipes & patrocinadores) investir em uma correção de rumo, as provas tinham de ser mais competitivas e os custos menores.

A eletrônica e o número de rotações por minuto (RPMs) deviam ser limitados.

Estes dois itens, acreditavam, seriam suficientes para suprimir o gap entre concorrentes nas pistas.
Havia, porém, um problema, a MSMA (fabricantes) tinha o poder de veto para alterações nos regulamentos técnicos e não aceitou estas mudanças. Sem qualquer alteração, o baile seguiu até a nova rodada de negociações para o período de 2012 a 2017, onde as condições das fábricas de vetar regulamentos técnicos foram sensivelmente reduzidas. 

Não foi uma transição tranquila, a MSMA posicionou-se contra as limitações na eletrônica que, se implementadas, afastariam as fábricas do esporte. A Suzuki argumentou que sua participação não faria sentido se não tivesse condições de desenvolver eletrônica. A HRC seguiu na mesma linha e seu chefe na época, Shuhei Nakamoto afirmou textualmente “A Honda não tem nenhum interesse na MotoGP sem desenvolvimento eletrônico”. A razão era simples, os fabricantes utilizam a competição como laboratório para desenvolver tecnologias que possam ser portadas para as máquinas comerciais. “Eletrônica proprietária e limites de combustível fornecem dados valiosos para a engenharia de motos de estrada”, explicou Nakamoto, “especialmente na economia de combustível e na resposta ao acelerador, que é o ambiente natural das Scooters”.
 

ECU Padronizada


As negociações não foram fáceis. Na ausência de registros oficiais das reuniões, vazaram uns poucos relatos, não confirmados pelas partes. A HRC ameaçou retirar-se se a Dorna insistisse em impor uma especificação de ECU. Uma fonte presente nas discussões confirmou que a posição da Dorna foi inflexível, teria dito a Nakamoto que ele poderia, neste caso, acompanhar a próxima temporada pela TV.

Entretanto um acordo foi oficializado com concessões de ambas as partes.

A partir de 2012 os motores teriam 1000cc, mais próximos dos projetos desenvolvidos para equipamentos de estrada, seriam limitados a 4 cilindros com diâmetro máximo de 81mm, especificação dedicada a limitar as RPMs que foi bem-sucedida durante algum tempo. Ainda era necessário conter os custos das equipes e a Dorna criou a classe CRT (Claiming Rule Teams) para permitir a participação de equipes independentes com orçamentos mais baixos, utilizando motores de produção comercial em chassis de protótipos. A novidade atraiu diversas equipes, aumentando o número de equipamentos no grid. Os resultados apareceram, em 2011 apenas 17 motos alinharam para a largada na primeira prova no Catar, em 2012, havia 21 equipamentos na pista.

 
Aprilia CRT

As motos CRT com excesso de peso e potência limitada não tinham condição para competir com equipamentos de fábrica, foram consistentemente mais de 2 segundos mais lentos nas pistas, mas em parte cumpriram a sua missão, reduziram consideravelmente o custo de entrada na MotoGP.

Em nenhum momento houve a ilusão de que um equipamento CRT pudesse vencer uma corrida, o seu proposito foi pressionar os fabricantes, Honda, Yamaha e Ducati, mostrando que a categoria tinha condições de sobreviver sem eles. Lógico, não teria o mesmo apelo comercial, porém a ideia trabalhada foi que os espectadores eram atraídos para assistir a disputa entre os melhores pilotos do mundo, não estavam particularmente interessados com os detalhes das máquinas.

Este movimento, interpretado como um blefe nos fabricantes, provou ser incrivelmente eficaz. As fábricas prometeram disponibilizar motos a preços razoáveis, porém exigiram algumas concessões em troca. A CRT evoluiu para a Open Class e em 2014 as fábricas aceitaram especificações do hardware ECU (não o software), em troca exigiram um corte no subsídio de combustível e uma redução no número de motores permitidos por temporada, para criar um desafio para seus departamentos de engenharia. As motos da Open Class poderiam utilizar o pacote eletrônico padronizado produzido pela Magneti-Marelli (hardware e software) e, como compensação, teriam mais combustível em cada prova.

Foi uma evolução, mas assim como já havia acontecido com a classe CRT, a diferença de desempenho entre equipamentos das fábricas e da Open Class continuou a ser significativa. Com o produto MotoGP mais palatável para o mercado, a Dorna aumentou o seu poder de barganha e conseguiu convencer os principais fabricantes a ceder, a popularidade do esporte estava em alta. O dinheiro da TV contribuiu para manter o campeonato financeiramente saudável.

2015 foi um marco no motociclismo esportivo, as fábricas finalmente aceitaram utilizar o pacote eletrônico completo e a partir de 2016 todos usariam o hardware e software padronizados. Com a especificação eletrônica vieram novos fabricantes, a Suzuki voltou a participar e a Aprilia, que fornecia uma versão turbinada da RSV4 para o WorldSBK, montou uma associação com a Gressini e inscreveu uma equipe própria.

Davide Brivio, então o chefe da equipe Suzuki, foi específico ao indicar que as novas regras aumentavam as condições de competitividade, “não era mais necessário um orçamento ilimitado para sonhar com vitórias”. A KTM iniciou o seu projeto de retornar para a MotoGP, aproveitando as experiências na Moto2 e Moto3, investindo na construção de um protótipo competitivo. As RC16 fizeram sua estreia em 2016 na última prova em Valência, e disputaram 2017 com uma equipe com duas máquinas no grid.

O esforço realizado na elaboração dos regulamentos técnicos contribuiu para melhorar o espetáculo e recuperar o brilho da MotoGP. Simultaneamente a Dorna trabalhou para estabilizar economicamente as equipes privadas e houve uma remodelação radical nos contratos com as fábricas.

Várias coisas aconteceram, as equipes tiveram, além da maior liberdade de escolha, a tranquilidade de um fluxo financeiro previsível. A introdução da especificação eletrônica, juntamente com o congelamento do desenvolvimento do motor durante a temporada para as equipes que conseguiram pelo menos um pódio no ano anterior, com concessões para todos as demais, reduziu o gap entre equipamentos na pista. A troca de fornecedor exclusivo de pneus (Michelin) também introduziu uma variável a mais, porque todos partiram de uma base comum, sem históricos anteriores para balizar o ajuste da moto. A Ducati, por ter fornecido equipamentos para a Open Class, conseguiu explorar os segredos da eletrônica padronizada com mais facilidade.

A aproximação do desempenho dos equipamentos potencializou a importância de dois fatores que contribuem para o sucesso de uma equipe, o talento do piloto e a quantidade de dados coletados para ajustar o equipamento na forma ideal. A importância do piloto é inquestionável, a gestão adequada do consumo de combustível e do desgaste dos pneus durante a prova fazem diferença. Ter dois pilotos competentes coletando dados na mesma moto passou a ser insuficiente. A busca de um ajuste perfeito para uma corrida só pode ser obtida através de testes na pista, detalhes coletados e impressões dos pilotos.

Todos estes fatores juntos tiveram um efeito profundo não só nas corridas, mas na maneira como a prova é planejada, na estratégia do piloto e no equilíbrio de responsabilidades dentro do paddock. Hoje em dia não é apenas mérito de um piloto que vence uma prova, é fundamental o trabalho de equipe.

As equipes satélites foram durante muito tempo apenas uma fonte de renda para as fábricas. No final da última prova em Valência, as fábricas repassavam as motos utilizadas na temporada para as satélite e iniciavam o trabalho com os seus novos modelos.

Historicamente, o apoio oferecido pela Honda para a LCR e pela Ducati para Pramac foram exemplos de como melhorar o relacionamento entre satélites e fábricas. A Honda tem Alex Márquez e Takaaki Nakagami com máquinas idênticas às utilizadas por seus pilotos oficiais, e em temporadas anteriores bancou os salários de Cal Crutchlow. Engenheiros da Honda, Ducati e Yamaha fornecem apoio total às equipes satélites.

As fábricas perceberam que mais pilotos e mais informações coletadas podem ser um diferencial. A Suzuki está garimpando uma equipe satélite, a ideia é ter pelo menos um terceiro equipamento igual ao utilizado pelos pilotos oficiais. A KTM conta com a colaboração da Tech3 como equipe subsidiária. 


Takaaki Nakagami da independente Honda Idemitsu


Muitas coisas mudaram na MotoGP nos últimos tempos. O relacionamento entre fábricas e satélites mudou de fornecedor & cliente para parceria. Não existe mais uma relação hegemônica. As fábricas precisam das equipes privadas na mesma proporção que as independentes precisam delas. Os fabricantes ainda estão no comando, mas é necessário maior esforço para manter um bom relacionamento com as suas equipes satélite.

Ao contrário do que pode parecer, os fabricantes não encontram vantagem significativa em um campeonato competitivo. Trabalhando com orçamentos milionários, os chefes de equipes têm que mostrar serviço, e vitórias muito diluídas não contribuem para o humor dos responsáveis pela alocação de recursos. Apenas um piloto pode ser campeão do mundo, e apenas uma fábrica pode obter o título de vencedora da temporada. Escolhas erradas e pequenas falhas podem caracterizar uma fábrica como não competitiva e, comercialmente, esta qualificação é um desastre. 

Existe um consenso que a MotoGP vive os seus melhores dias, o plano de longo prazo estabelecido na década passada está apresentando resultados. O problema de atingir o ápice é que a única maneira seguir em frente é para baixo. Manter-se na preferência de espectadores e patrocinadores  é o desafio atual da MotoGP.

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