Uma canção gravada por Nelly Furtado em 2006 é apropriada para descrever a aposentadoria de um dos maiores ídolos da MotoGP, Valentino Rossi. Todas as coisas boas um dia acabam. Chamas viram poeira, grandes amores se transformam em amizade. Recordes esportivos que eram considerados inalcançáveis pela tendência de regulamentos endereçarem maior competitividade, são sistematicamente batidos. Quando Michael Schumacher se afastou da Fórmula 1 ninguém concebia a possibilidade de outro piloto igualar suas conquistas, realizações que foram alcançadas e ultrapassadas por Lewis Hamilton.
Em qualquer análise sobre a história do mundial de motovelocidade, que desde 2002 assumiu o nome de MotoGP, devem ser consideradas as alterações nas regulamentações em 73 temporadas.
Por exemplo, se forem consideradas todas as provas disputadas em todas as categorias o maior vencedor é o italiano Giacomo Agostini, que registra oficialmente 122 vitórias. Por este critério Valentino Rossi é o 2º com 115, Angel Nieto é o 3º com 90 e Marc Márquez segue em 4º com 84. Se o critério mudar para exclusivamente as provas da principal categoria a situação é ligeiramente diferente, a liderança é de Rossi com 89 primeiras colocações, Agostini contabiliza 68, Márquez 58 e Mick Doohan 47. Em número de títulos mundiais independente de categoria Agostini conquistou 15, Angel Nieto 13, Rossi 9 e Márquez 8.
Este prólogo justifica por que não existe uma métrica simples que identifique sem sombra de dúvidas quem merece o título de melhor piloto de motociclismo esportivo em todos os tempos. Giacomo Agostini viveu em uma época onde tinha acesso a um equipamento muito superior a todos os demais, venceu provas com mais de uma volta sobre o segundo colocado e era permitido disputar 2 categorias (500cc e 350cc) simultaneamente.Em diversas ocasiôes foi campeão nas duas. Angel Nieto competiu exclusivamente em classes menores (125cc, 80cc & 50cc). Valentino Rossi, dono de 9 títulos mundiais, evoluiu com a história do campeonato mundial e disputa provas desde 1996, o “Doctor” é o único piloto que obteve títulos nas categorias de 125cc, 250cc, 500cc & MotoGP.
A história de Valentino Rossi em esportes motorizados iniciou com uma tentativa mal sucedida de fraude, seu pai Graziano, um piloto que sofreu um acidente e foi forçado a abandonar as pistas, tentou forjar documentos para conseguir uma licença de piloto de kart para o filho um ano antes do permitido pela lei (Rossi tinha 9 anos na época). O italiano odotou o kart como caminho para migrar, talvez, para a Fórmula 1, porém o alto custo das corridas da modalidade orientou seu futuro para as motos. Em 1993 Rossi adquiriu uma Cagiva Mito e já em seu 2º ano venceu o título italiano.
Em 1994 foi contratado pela Aprilia e na temporada de1996 conquistou sua primeira vitória no mundial no GP da República Tcheca, em Brno. Na temporada seguinte venceu 11 das 15 provas disputadas conquistando o seu 1º título mundial. Promovido para a classe 250cc em 1998 o seu sucesso na 125cc gerou muita espectativa e, segundo o próprio Rossi, foi um ano onde enfrentou muita pressão por parte da Aprilia, mídia e, efetivamente, todos em seu redor. Em 1999 venceu o campeonato, alcançando 9 vitórias.
O início do mito Valentino Rossi pode ser creditado a sua parceria com Jeremy Burgess que em 2000, o convenceu a apostar em uma equipe independente com equipamento NSR 500 Honda, tendo Mick Doohan, ex campeão mundial, como seu consultor pessoal.
Honda NSR 500 utilizada por Rossi em 2001
Nesta época surgiu uma rivalidade histórica com Max Biaggi. Embora ambos nunca tivessem corrido um contra o outro, uma disputa intensa evoluiu entre os dois italianos, desenvolvida graças à determinação e carisma de Rossi e o orgulho de Biaggi. Rossi tratou de mostrar a força da NSR 500, utilizando sua capacidade de pilotar e abusando de jogos psicológicos, ainda assim precisou de nove corridas para conseguir vencer pela primeira vez com uma Honda. Tal como aconteceu nas categorias 125cc e 250cc, a 1ª temporada serviu de preparanção para o início de um longo reinado. Em 2000 terminou em 2º atrás de Kenny Roberts Jr, Max Biaggi classificou-se em 3º. Em 2001 ValentinoRossi foi o último campeão da história da classe 500cc.
RC211V em 2002
Houve uma mudança radical em 2002, ano inaugural para as motos 4 tempos da MotoGP os pilotos tiveram problemas de adaptação para se acostumar aos novos equipamentos. Rossi pilotando uma RC211V Honda venceu a primeira corrida do ano em Suzuka, com piso molhado. Com 11 vitorias, 4 2ºs lugares e um abandono dominou toda a temporada, abrindo 140 pontos de vantagem sobre o 2º colocado, a Yamaha de Max Biaggi.
A temporada de 2003 foi mais do mesmo, Rossi conquistou 9 vitórias para obter seu terceiro Campeonato Mundial consecutivo, conquistando o título no GP da Malásia. Neste ano, Sete Gibernau foi seu adversário mais tenaz, batendo Rossi em diversas oportunidades. Um fato digno de registro aconteceu na República Checa onde Rossi venceu Gibernau por apenas 0,042 segundos.
O Grande Prêmio da Austrália, em Phillip Island, é considerado por muitos como um dos maiores momentos da carreira de Rossi devido as suas circunstâncias únicas. Depois de ter sido penalizado com 10 segundos por ultrapassagens durante a bandeira amarela, Rossi na liderança começou a se distanciar do resto dos competidores, terminando com mais de 15 segundos de vantagem, o suficiente para vencer a prova. Terminou em 1º na última prova da temporada em Valência, a sua última vitória pilotando uma Honda.
Havia na época uma dúvida latente se o bicampeonato na era dos 4 tempos era mérito do condutor ou do equipamento. Vasaram rumores que a Ducati estaria tentando a contratação do piloto para montar uma equipe puro sangue, condutor e equipamento italianos. Rossi optou por mudar para a Yamaha, bancado por um contrato de dois anos que se especula ter sido da ordem de US$ 12 milhões; um preço que nenhum outro fabricante, nem mesmo Honda, estava disposto a pagar.
Valentino (Yamaha) vence Biaggio (Honda) na abertura da temporada de 2004
A temporada de 2004 iniciou na África do Sul, e a vitória de Valentino caracterizou a única ocorrencia de um piloto vencer corridas consecutivas com diferentes fabricantes na história do Campeonato Mundial de Motos . Durante o ano venceu 8 GPs e seu quarto lugar em Jerez interrompeu uma sequência de 23 pódios consecutivos. O campeonato foi matemáticamente definido na penúltima etapa em Philip Island, quando Rossi venceu Gibernau por apenas 0,097 segundos.
Nicky Hayden comemora em Valência o título de 2006
Valentino manteve o título em 2005 e perdeu a temporada de 2006 para o norte-americano Nicky Hayden ao cair na púltima prova em Valência. Em 2007 houve uma alteração radical nas características dos equipamentos e os motores 990cc foram substituídos por 800cc.
Casey Stoner – Campeão de 2007 com a Ducati
Valentino Rossi fratura a tíbia nos treinos para o GP da Itália em Mugello
A Yamaha perdeu a primazia para a Ducati, que desenvolveu um protótipo muito eficiente e arrebatou o título com Casey Stoner. Valentino Rossi venceu os campeonatos de 2008 & 2009. Estava encaminhando o de 2010 quando sofreu um acidente durante os treinos para o GP da Itália em Mugello. A sua ausência por 4 etapas oportunizou o crescimento de seu colega de equipe Jorge Lorenzo que venceu o mundial. No final da temporada Rossi fez uma aposta arriscada, havia sido consistentemente batido pelo colega de box quando ambos compartilhavam a pista, condicionou a sua permanência na Yamaha ao afastamento de Lorenzo. Pagmática, a equipe escolheu o espanhol e Casey Stoner com uma Honda venceu a temporada de 2011. Rossi migrou para a Ducati e passou dois anos, foi o início de seu declínio.
Ducati de Rossi em 2011
Em 2013 uma nova geração de pilotos chegou ao grid da MotoGP, entre eles Marc Márquez. Rossi, voltando para a Yamaha, classificou-se em 4º com 93 pontos menos que o colega Lorenzo em uma temporada vencida por Marc Márquez. Foi vice em 2014, e disputou a temporada de 2015, que perdeu para Lorenzo devido ao chamado Incidente em Sepang. Foi a última chance do italiano chegar ao 10º título. Rossi nunca mais teve a oportunidade de ser campeão. Foi vice em 2016, longe da Honda de Marc Márquez, em uma temporada onde o ambiente nos boxes da Yamaha deteriorou, no final da temporada conseguiu inviabilizar a permanência de Jorge Lorenzo na equipe. A temporada de 2017 registrou a última vitória do ídolo italiano em um GP, em Assen na holanda, Neste ano ele ficou atrás de seu companheiro de equipe Maverick Vinales na classificação do Mundial. Embora sem triunfos, conseguiu ser vice em 2018, porém em 2019 ficou atrás de Vinales e de uma Yamaha independente pilotada por um novato, Fábio Quartararo.
É impossível contar a história dos mundiais de motovelocidade sem citar a importância de Valentino Rossi. Ele foi o personagem que melhor compreendeu e capitalizou a mudança de rumo causada pela evolução das comunicações na MotoGP, alterando o perfil de disputa pura para espetáculo na mídia. O seu carisma pessoal personificou a imagem de um competidor feroz nas pistas e um bom moço na vida comum, que muito contribuiu para popularizar o esporte em todo o planeta. As bandeiras amarelas com o número 46 podem ser encontradas em qualquer circuito onde sejam realizadas corridas de motos. Em Tavullia, sua cidade natal, os sinos da igreja tocaram desde 1996 sempre que ele conseguia alguma vitória. O exemplo da devoção e respeito de seus seguidores é que na cidade a velocidade urbana máxima é de 46 km/h, em homenagem ao número de sua moto.
Tavullia – cidade natal de Valentino Rossi
O ídolo italiano em sua cidade
Sinalização de trânsito em Tavullia
Não há como desenvolver uma carreira tão longa e vitoriosa sem colecionar desafetos. Disputas acirradas, nem sempre pautadas pela ética, extrapolam facilmente os limites das pistas e criam inimizades. Algumas comemorações hilárias que foram a assinatura do piloto enquanto brilhava nas pistas, ofenderam outros competidores.
A inimizade com Max Biaggi, iniciada quando ainda corria na classe 125cc e o compatriota, então campeão da classe 250cc, cresceu ao zombar publicamente da relação sentimental do desafeto com a “top model” Naomi Campbell, comemorando uma vitória com uma boneca inflável. Os dois se desentenderam várias vezes, chegando inclusive a trocar agressões públicas em um pódio em Montmeló.
Rossi também costuma valorizar seus feitos e terceirizar insucessos. Justificou os títulos de Lorenzo afirmando que haviam sido conquistados pela moto que ele desenvolveu e até hoje culpa Marc Márquez por não ter conseguido seu almejado décimo mundial em 2015. Sobre o incidente entre ambos sugeriu uma teoria estapafúrdia: Pilotos na pista não devem desafiar os candidatos ao título da temporada.
Sete Gibernau, outro astro da motovelocidade desencantou-se com as corridas e com o ambiente do MotoGP por causa de Valentino. Segundo ele o italiano joga sujo, utiliza de extrema falsidade para obter seus objetivos. O relacionamento entre eles se deteriorou a partir de 2004 no Qatar e desandou de vez na corrida seguinte em Sepang quando houve um incidente na pista entre ambos. Na primeira corrida da temporada de 2005, que resultou no quinto título consecutivo, Rossi forçou Gibernau para a brita na última curva de Jerez, não houve nenhuma penalidade
O talento de Rossi também não é reconhecido por Casey Stoner. Em Jerez, com uma Ducati muito inferior a Honda de Stoner, ele abalroou o australiano por trás e o tirou da pista. Foi a única prova da temporada que Stoner não pontuou. Após a corrida, Valentino foi desculpar-se no box da Honda e ouviu do piloto australiano uma frase antológica que está registrada na história do MotoGP: “Sua ambição é maior do que o seu talento”,
No GP da Alemanha de 2016 optou por não seguir a orientação da equipe de apoio e permitiu uma vitória improvável de Marc Márquez, tentou se justificar reclamando da limitação das comunicações entre pilotos e equipes, sugerindo a necessidade do uso de rádio.
Quem melhor interpretou aa características de Valentino Rossi nas pistas foi o piloto italiano Marco Melandri: “Rossi é o melhor companheiro de equipe que um piloto pode ter, desde que não ameace a sua hegemonia.”
O balanço entre os prós e contras é muito favorável ao piloto italiano e, no futuro, é bem provável que a história dos mundiais da FIM seja dividida em AV e DV, antes e depois de Valentino.