domingo, 8 de dezembro de 2019

Endurance - Ford vs Ferrari









Ford GT40 MK II





Ferrari 330-P3



A história dos cegos e o elefante tem origem em textos budistas publicados na Índia e endereça divergências de opinião, as pessoas podem ter ideias próprias geradas a partir do conhecimento parcial dos fatos. Cada qual interpreta os acontecimentos de acordo com as suas convicções. Ford vs Ferrari em exibição nos cinemas é baseado em fatos reais e sugere um ambiente com heróis e vilões que provavelmente não tenha ocorrido na prática.



O filme é um retrato fiel da dificuldade de vencer a inércia de uma corporação gigantesca como a Ford comparada com a agilidade e centralização de decisões da Ferrari. Há também o componente de comprometimento com o produto final, em Maranello um único mecânico montava todo o motor e respondia por sua qualidade, na empresa americana produtos de linha eram adaptados. Aliás, a capacidade de produzir todos os componentes principais de seus carros era a razão do desprezo do Comendador Enzo Ferrari por seus concorrentes da Fórmula 1 antes que Bernie Ecclestone atraísse as fábricas para a competição. Ele classificava as outras equipes como “garagistas”, eram incapazes de produzir seus próprios motores.



A história conta a saga do GT-40, um carro desenvolvido para recuperar o orgulho americano, supostamente pela Ford ter sido preterida pela Fiat para comprar a Ferrari, que reinava absoluta nas provas de resistência, principalmente na mítica prova das 24 Horas de Le Mans. Menos que a necessidade mercadológica de produzir veículos esportivos, associando a marca com o conceito de vitória, o roteiro é centrado em uma “vendeta” exigida por Henry Ford II que se sentiu traído e humilhado por Enzo Ferrari.



Sem preocupação com custos, em determinado momento a gigante americana optou por diversificar esforços e estimular uma competição interna, criou duas equipes, uma baseada em uma estrutura já existente que disputava o campeonato da Nascar e outra contando com a experiência de Carol Shelby, um antigo corredor que já havia vencido como piloto e construtor categorias menores em Le Mans. A administração da montadora custou a entender que para obter sucesso em competições, o uso da mesma estratégia utilizada em para administrar uma linha de produção em série era um obstáculo. Múltiplos níveis de decisões eram um fator redutor de eficiência, o mantra “diminuir para crescer” nunca foi tão significativo. 



Algumas das pérolas do automobilismo moderno, como a intervenção das equipes nos resultados de pista já aconteciam e foram espelhados no filme. Uma frase popularizada na era Schumacher da Fórmula 1, que era utilizada sempre que a Ferrari tinha as duas primeiras colocações nas voltas finais: “tragam as crianças para casa”, também foi utilizada durante o desenvolvimento do GT-40. Se em uma prova dois Ford estivessem na dianteira, a orientação era evitar disputas que pudessem comprometer os equipamentos. A orientação foi seguida até as 12 Horas de Sebring em 1966, dois GT40 da Shelby American lideravam, Ken Milles (britânico), que estava em segundo e estabeleceu seguidos recordes na pista, pressionando o líder Dan Gurney. Faltando meia milha para o final o GT40 do norte-americano teve um problema mecânico e foi ultrapassado por Milles. Gurney cruzou a linha em segundo empurrando seu protótipo. Em função da pressão desnecessária exercida nas últimas voltas, Ken Milles foi rotulado como incapaz de trabalhar em equipe e seu comportamento não era adequado para ser associado como piloto Ford. 



Ferrari e Ford trilharam caminhos distintos no desenvolvimento de equipamentos para vencer provas de endurance. Enquanto os americanos apostavam em maior potência e apresentaram em 1966 o GT40 MKII, uma máquina reforçada com motor V8 de 7 litros e 485 CV, a rival italiana apresentou o Ferrari 330 P3, em fibra de vidro, motor V12 de 4 litros com 420 CV. A lógica da Ferrari era linear, motores maiores exigem chassi mais pesado e implicam em maior consumo de combustível, maior resistência de componentes da transmissão e maior esforço dos freios. Na segunda metade dos anos 70 venceu a força bruta.



Era natural que o departamento de divulgação e propaganda da Ford tivesse preferência por pilotos com um perfil mais palatável ao mercado para vencer competições com um veículo da marca, ainda assim o epílogo do filme atendeu mais uma necessidade da trama que um fato proposital. Era comum nos anos 60 equipes provocarem o alinhamento de seus carros na chegada de provas de longa duração (endurance), fotos de cobertura jornalística de corridas no Brasil nos anos 60 mostraram em diversas ocasiões berlinetas Interlagos da equipe Willys ou DKW da Vemag cruzando a linha de chegada juntos, uma poderosa ferramenta promocional.




Berlinetas Willys Interlagos



Ao perceber que a vitória da Ford nas 24 Horas de Le Mans era inevitável e confiando na pouca precisão dos sistemas de cronometragem, o marketing da empresa americana desenvolveu a ideia de imortalizar uma vitória histórica fazendo os três GT40 cruzarem a linha de chegada juntos. Uma foto para a posteridade com os três carros americanos compartilhando a primeira colocação, na prova mais significativa da Europa que até então era monopólio da Ferrari, parecia excelente. Se um piloto em particular foi prejudicado, quase com certeza não era a intenção. Observação: A Ferrari devolveu a gentileza nas 24 Horas de Daytona em 1967 fazendo três carros nas três primeiras posições cruzarem a linha de chegada juntos, embora com número de voltas diferentes.



Um dos fatos que não foi endereçado pelo roteirista do filme é que o engenheiro, piloto e projetista Ken Milles era um tipo de Valentino Rossi no mundo das quatro rodas. Por ocasião das 24 Horas de Le Mans em 1966 ele tinha 48 anos, dez a mais que Phil Hill e quase duas décadas de seus, colegas o neozelandês Bruce McLaren e o australiano Denis Hulme.




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