terça-feira, 24 de dezembro de 2019

MotoGP – Só os diamantes são eternos






Um hábito recorrente nos departamentos de Recursos Humanos é espelhar o perfil de candidato a uma posição nas características dos profissionais que são referências do ramo no mercado, existem três possibilidades: (1) apostar em um talento emergente; (2) contratar quem apresenta os melhores resultados; ou (3) buscar alguém que possa ser como o melhor era. Óbvio que no esporte existem outras variáveis como competência de advogados (Há quem diga que parte do sucesso de Michael Schumacher seja resultado dos contratos que seus representantes negociavam) e interesses comerciais (pilotos que agregam patrocinadores tem preferência), mas nas avaliações finais das equipes de ponta normalmente o desempenho é o mais importante.



Portando este cenário para a MotoGP, nas reuniões das direções de equipes para a contratação de pilotos acontece um processo semelhante, acertou quem apostou em Valentino Rossi no início de sua carreira, houve épocas em que VR46 foi o sonho de consumo de todas nas equipes, nos dias atuais todos querem alguém que possa reeditar a carreira do velho campeão, um piloto que possa ser o que o italiano era.



“Todos têm direito às suas próprias opiniões, mas não aos seus próprios fatos”, uma frase que costuma ser atribuída ao senador americano Daniel Moynihan justifica porque VR46 já não é o centro do universo da MotoGP. Se por um lado ele ainda é uma grande atração de bilheteria e responsável por levar torcedores de diversas gerações aos circuitos, desde o início da década seus resultados nas pistas deixam a desejar. Nos últimos dez anos, entre 2010 e 2019, a Yamaha conseguiu três mundiais de pilotos, todos com Jorge Lorenzo, a equipe oficial do fabricante venceu 57 GPs, 39 com Lorenzo, 12 com Valentino e 6 com Vinalles. Nos últimos dois anos a Yamaha só foi frequentou o degrau mais alto do pódio em três oportunidades, em todas representada por Maverick Vinales.



Números não mentem, este mantra da matemática é inexorável. Deste 2010 o histórico de Rossi contempla um tri vice-campeonato no mundial de pilotos, nos anos de 2014, 2015 e 2016, porém a única oportunidade em que realmente disputou o título com condições de vitória foi em 2015, ocasião em que foi superado por Jorge Lorenzo. Em seu favor deve ser lembrado o fato que na última prova da temporada, em Valência, ele largou do final do grid, penalizado por um incidente com Marc Márquez na etapa de Sepang. Para Valentino a meta de igualar ou exceder os recordes de Giacomo Agostini, 8 mundiais na classe principal e 122 vitórias em GPs, é cada vez mais improvável.



Não há como ignorar a participação que Valentino Rossi teve e tem na divulgação do esporte de duas rodas. Suas performances dentro e fora das pistas conquistaram uma multidão de torcedores em todo o planeta, não há disputa de motovelocidade em qualquer um dos continentes onde não sejam identificadas bandeiras amarelas com o número 46. Entretanto, se não há como desconsiderar a sua importância para a divulgação do esporte em nível mundial, é forçoso entender que, depois de dez anos sem títulos e duas temporadas inteiras sem vitórias o auge da sua carreira já passou.



Uma avaliação com base em resultados nas pistas realizada pelo site Crash.net indicou, sem surpresas, que o melhor piloto desta década foi Marc Márquez, neste estudo a segunda posição ficou com Jorge Lorenzo e a terceira com Casey Stoner, Rossi foi apenas o quarto colocado. Os “top 10” ainda incluem Dani Pedrosa (5º), Andrea Dovizioso (6º), Johann Zarco (7º), Maverick Vinales (8º), Pol Espargaro (9º) e Cal Crutchlow (10º), lembrando que foram contabilizados os resultados das categorias 125cc, 250cc, Moto3, Moto2 e MotoGP.



Não é razoável supor que a falta de resultados de Rossi nos últimos dez anos seja resultado exclusivo de problemas com equipamentos. A Ducati venceu 3 vezes em 2010 com Casey Stoner, Valentino passou 2011 e 2012 em branco com a mesma moto. A Ducati só voltou a vencer em 2016 depois de implementada a padronização da eletrônica (harware e software) e troca do fornecedor de pneus (Michelin), a temporada apresentou 9 vencedores diferentes, de 4 fabricantes nas 18 etapas.  Em 2019 as Yamaha de Maverick Vinales e Fábio Quartararo (satélite) pontuaram mais que Valentino, ele foi apenas o 7º classificado no campeonato, igualando a pior colocação de sua carreira na principal categoria, que aconteceu em 2012 com a Ducati.



Piloto mais longevo em atividade, Rossi já disputou 24 temporadas completas em campeonatos do mundial de motovelocidade da FIM, duas na categoria 125cc (campeão em 1997), duas na 250cc (campeão em 1999), duas na 500cc (campeão em 2001) e 18 desde que o regulamento mudou para motores de 4 tempos, conquistou 6 títulos mundiais (2002 a 2005, 2008 e 2009). Um histórico de vitórias impressionante, que está perto de ser igualado por Marc Márquez (falta um título na MotoGP).

  

Nas vésperas de completar 41 anos de idade (fevereiro de 2020), Rossi ainda é um piloto extremamente veloz e competitivo, em sua carreira sempre mostrou grande capacidade de adaptação e disputa de igual para igual com pilotos bem mais jovens. Na MotoGP a idade não é muito significativa, as provas são curtas (45 minutos) e com o equipamento correto a disciplina mental é mais importante que a condição física.



O argentino José Hernández, autor da obra “El gaúcho Martín Fierro”, descreve em um de seus poemas que “O diabo sabe por ser o diabo, mas sabe mais por ser velho”. Este ensinamento se aplica na íntegra a Valentino Rossi, a sua experiência nas pistas o transformou, além de um piloto vencedor, em um especialista em jogos psicológicos – abalar seus adversários e garantir a vitória desde antes da largada. Muitas vezes isto funcionou, ele inviabilizou a permanência de seu maior rival Jorge Lorenzo na Yamaha em 2017, em outras não deu certo como foi o caso do mundial de 2015.



Durante esta última temporada Rossi e Vinales reclamaram muito da velocidade final da Yamaha, sugerindo melhorias na programação da eletrônica, até porque o motor é lacrado. Com um equipamento semelhante Fabio Quartararo conseguiu em diversas ocasiões ameaçar a Honda de Marc Márquez. Em algum momento Rossi comentou que talvez a Yamaha devesse abandonar o motor de cilindros em linha e adotar o modelo V4 para obter maior potência, uma manobra interpretada como forma de pressionar a fábrica. Aliás, pressionar fabricantes parece ter sido a tônica da temporada, os pilotos Yamaha querem maior potência do motor, na Ducati exigem maior velocidade em curvas, Johann Zarco abandonou a KTM em meio da temporada fazendo declarações impublicáveis sobre o equipamento. Todos os pilotos Honda reclamam as exigências físicas para conduzir o protótipo, com exceção de Marc Márquez que, desde que se juntou a equipe em 2013, nunca fez nenhum comentário público depreciativo sobre a RC213V.



Valentino Rossi é um profissional bem sucedido, de acordo com a revista Sport Illustrated (corroborada por outras fontes) está entre os desportistas mais bem pagos do mundo. Uma publicação alemã reportou, sem citar as fontes, que em rendimentos diretos só perde para o campeão do mundo, seu salário anual ficou em torno de 9 milhões de Euros em 2019. O italiano ainda comanda um grupo empresarial que inclui a VR46 Riders Academy, a equipe Sky Moto2 VR46, administra a carreira de diversos pilotos, merchandising de confecções, gadgets, acessórios e uma loja online.



Carismático, Rossi é conhecido por sua excentricidade dentro e fora das pistas. No mundo do motociclismo é conhecido por “The Doctor” e sempre utilizou o número 46. Entre 2000 e 2008 viveu em Londres devido a problemas com o fisco italiano, depois de encaminhar uma solução voltou a fixar residência em sua cidade natal, Tavulia, perto de Misano onde é realizado o GP de San Marino.



Talvez a maior evidência da descrença do futuro de Valentino Rossi como piloto possa ser encontrado nas resenhas de fim de ano dos veículos da mídia especializada. Quando os jornalistas que acompanham a MotoGP fazem um exercício de futurologia tentando identificar quem pode ser o maior adversário de Marc Márquez na próxima temporada, o nome do velho campeão nunca é citado.


Carlos Alberto

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

MotoGP – Má notícia no final de temporada





Andrea Iannone, “The Maniac”, na Aprilia #29


A temporada de 2019 da MotoGP não foi das mais disputadas, Marc Márquez no comando de uma RC213V venceu praticamente sozinho os três campeonatos da classe principal, pilotos, fábricas e equipes.   Ainda assim a temporada apresentou fatos surpreendentes, o surgimento auspicioso da equipe Petronas como satélite da Yamaha, a performance do novato Fábio Quartararo e os fracassos retumbantes de Jorge Lorenzo (Honda) e Johann Zarco (KTM). A temporada não merecia ser encerrada com manchetes relacionadas com doping de um dos seus pilotos. 

Em uma amostra de urina fornecida por Andrea Iannone na etapa da Malásia em Sepang, no início de novembro, foram identificados vestígios de esteroides anabolizantes. A análise da amostra foi processada em um laboratório credenciado pela WADA (World Anti-Doping Agency) em Dresden (Alemanha) e indicou a presença de esteroides androgênicos anabolizantes exógenos (AAS) constantes na relação de substâncias proibidas na edição de 2019. A característica exógena indica origem externa, excluindo a possibilidade de ter sido produzida pelo próprio organismo (endógena) e é quase impossível entrar acidentalmente em um corpo sem consentimento ou conhecimento da pessoa. O código antidoping da FIM (Federação Internacional de Motociclismo) afirma que os pilotos serão banidos por quatro anos ao testar positivo para uma substância não especificada (produtos susceptíveis de serem consumidos com o propósito específico de melhorar o desempenho), embora existam circunstâncias atenuantes - tais como uma violação não intencional das regras - que podem reduzir a duração (não evitar) da desqualificação.

Alguns ícones do esporte passam rapidamente do panteão da glória para o ostracismo e só são lembrados como exemplos a serem evitados. O corredor canadense Ben Johnson, perdeu sua medalha de ouro obtida na prova olímpica mais emblemática, os 100 metros rasos, dos jogos realizados em Seul em 1988. Substâncias não permitidas foram identificadas em seu exame antidoping. Lance Armstrong, que foi considerado por muitos anos um fenômeno no mundo esportivo, foi flagrado em um exame e em 2013 confessou que utilizou medicação não permitida para melhorar seu desempenho nos sete anos em que venceu o Tour de France.  Armstrong perdeu todos os títulos conquistados e patrocinadores pessoais. Anderson Silva, mais conhecido como Aranha (Spider), é um lutador brasileiro de artes marciais mistas e ex-Campeão Peso Médio do UFC, conquistou 17 vitórias seguidas e 10 defesas de título consecutivas, tendo a sequência interrompida em 2013 quando perdeu uma luta e o cinturão. Spider, que chegou a ser considerado o melhor lutador de UFC da história, foi flagrado em um exame antidoping em 2015 quando tentava recuperar a sua antiga forma e prestígio.

Os episódios de Armstrong, Johnson e Spider indicam que sempre vai existir, em qualquer modalidade esportiva, competidores que decidem utilizar atalhos para adquirirem uma melhor condição física, arriscando a encerrar suas carreiras de um modo melancólico.
Andrea Iannone, da equipe Aprilia, recebeu uma suspensão provisória de acordo com o código de antidoping da FIM. O piloto pode (e vai) recorrer do resultado solicitando que a amostra B (segunda amostra colhida na mesma ocasião) seja analisada. Também pode recorrer ao CDI (Tribunal Disciplinar Internacional) para que sua suspensão seja suspensa, mas para isso teria de fornecer evidências de que as amostras que tenham sido contaminadas de alguma forma, ou que ele tinha ingerido substâncias proibidas por acaso (esteroides anabolizantes são usados para construir massa muscular e queimar gordura, é muito improvável que sejam consumidos acidentalmente). Esteroides podem ser uma droga extremamente útil para perder peso. Seu principal benefício nesse cenário é consumir gordura e promover a preservação muscular em uma dieta de restrição calórica.

Se não recorrer, ou a análise da segunda amostra confirmar os resultados da primeira, então Iannone está sujeito a uma proibição automática de participar do mundo da motovelocidade por quatro anos. Uma ausência por este período de tempo praticamente decreta o fim da carreira do piloto de 29 anos. Rumores dos boxes da MotoGP já listavam Iannone como um dos pilotos que provavelmente abandonariam categoria no final da próxima temporada para migrar para a WorldSBK, onde teria sido um reforço muito bem-vindo. Uma proibição por quatro anos torna isso impossível. 

A suspensão de Iannone deixa a Aprilia em um dilema e a solução mais óbvia seria promover Bradley Smith do seu papel como piloto de testes. Smith tem sido fundamental no desenvolvimento da Aprilia RS-GP, fornecendo subsídios para um equipamento totalmente reformulado que deve ser apresentado ao público no teste de Sepang em fevereiro do próximo ano.

Andrea Iannone surgiu para o mundial de motovelocidade em 2005 disputando a categoria 125cc e sua primeira vitória ocorreu em 2008 (ainda na 125cc). Acumulou 10 vitórias até ser promovido para a 250cc em 2010, onde por três anos consecutivos obteve a 3ª colocação no mundial. Em 2013 chegou na MotoGP com a Pramac Racing Team, a consistência de seus resultados justificou sua contratação pela equipe oficial da Ducati em 2015 e no ano seguinte conquistou a sua primeira e única vitória na classe principal. Em 2017 perdeu a vaga para Jorge Lorenzo, mudou-se para a Team Suzuki Ecstar onde, mantendo seu estilo agressivo, colecionou bons resultados com alguns pódios impressionantes. Este ano competiu pela Aprilia Racing Team Gresini e se classificou em 16º no mundial, duas posições atrás de Aleix Espargaro, seu colega de equipe.

A convicção do piloto em sua inocência é total, ele confia que o exame da contraprova será suficiente para encerrar este incidente. Uma das características pessoais de Andrea Iannone é a vaidade, ele praticamente não participou de um dos testes pré-temporada deste ano, nas declarações à imprensa a equipe justificou a sua ausência alegando uma inflamação em um dente, entretanto outras versões sugeriam que estava convalescendo de uma cirurgia estética que o impedia de usar o capacete.
Em qualquer esporte, inclui motociclismo, atletas podem usar esteroides para alcançar algum tipo de vantagem, o que leva a crer que seu uso possa estar relacionado com a finalidade de aumentar o desempenho na condução dos protótipos, ser tão leve quanto possível e forte suficiente para pilotar um equipamento pesado e com muita potência.

Anabolizantes estão na contramão do motociclismo esportivo. A MotoGP está angariando cada vez mais adeptos por apresentar disputas equilibradas e grandes espetáculos, tudo o que não precisa, e os organizadores vão utilizar todos os recursos para evitar, é que a lisura do mundial seja contaminada com notícias de uso de doping.





domingo, 8 de dezembro de 2019

Endurance - Ford vs Ferrari









Ford GT40 MK II





Ferrari 330-P3



A história dos cegos e o elefante tem origem em textos budistas publicados na Índia e endereça divergências de opinião, as pessoas podem ter ideias próprias geradas a partir do conhecimento parcial dos fatos. Cada qual interpreta os acontecimentos de acordo com as suas convicções. Ford vs Ferrari em exibição nos cinemas é baseado em fatos reais e sugere um ambiente com heróis e vilões que provavelmente não tenha ocorrido na prática.



O filme é um retrato fiel da dificuldade de vencer a inércia de uma corporação gigantesca como a Ford comparada com a agilidade e centralização de decisões da Ferrari. Há também o componente de comprometimento com o produto final, em Maranello um único mecânico montava todo o motor e respondia por sua qualidade, na empresa americana produtos de linha eram adaptados. Aliás, a capacidade de produzir todos os componentes principais de seus carros era a razão do desprezo do Comendador Enzo Ferrari por seus concorrentes da Fórmula 1 antes que Bernie Ecclestone atraísse as fábricas para a competição. Ele classificava as outras equipes como “garagistas”, eram incapazes de produzir seus próprios motores.



A história conta a saga do GT-40, um carro desenvolvido para recuperar o orgulho americano, supostamente pela Ford ter sido preterida pela Fiat para comprar a Ferrari, que reinava absoluta nas provas de resistência, principalmente na mítica prova das 24 Horas de Le Mans. Menos que a necessidade mercadológica de produzir veículos esportivos, associando a marca com o conceito de vitória, o roteiro é centrado em uma “vendeta” exigida por Henry Ford II que se sentiu traído e humilhado por Enzo Ferrari.



Sem preocupação com custos, em determinado momento a gigante americana optou por diversificar esforços e estimular uma competição interna, criou duas equipes, uma baseada em uma estrutura já existente que disputava o campeonato da Nascar e outra contando com a experiência de Carol Shelby, um antigo corredor que já havia vencido como piloto e construtor categorias menores em Le Mans. A administração da montadora custou a entender que para obter sucesso em competições, o uso da mesma estratégia utilizada em para administrar uma linha de produção em série era um obstáculo. Múltiplos níveis de decisões eram um fator redutor de eficiência, o mantra “diminuir para crescer” nunca foi tão significativo. 



Algumas das pérolas do automobilismo moderno, como a intervenção das equipes nos resultados de pista já aconteciam e foram espelhados no filme. Uma frase popularizada na era Schumacher da Fórmula 1, que era utilizada sempre que a Ferrari tinha as duas primeiras colocações nas voltas finais: “tragam as crianças para casa”, também foi utilizada durante o desenvolvimento do GT-40. Se em uma prova dois Ford estivessem na dianteira, a orientação era evitar disputas que pudessem comprometer os equipamentos. A orientação foi seguida até as 12 Horas de Sebring em 1966, dois GT40 da Shelby American lideravam, Ken Milles (britânico), que estava em segundo e estabeleceu seguidos recordes na pista, pressionando o líder Dan Gurney. Faltando meia milha para o final o GT40 do norte-americano teve um problema mecânico e foi ultrapassado por Milles. Gurney cruzou a linha em segundo empurrando seu protótipo. Em função da pressão desnecessária exercida nas últimas voltas, Ken Milles foi rotulado como incapaz de trabalhar em equipe e seu comportamento não era adequado para ser associado como piloto Ford. 



Ferrari e Ford trilharam caminhos distintos no desenvolvimento de equipamentos para vencer provas de endurance. Enquanto os americanos apostavam em maior potência e apresentaram em 1966 o GT40 MKII, uma máquina reforçada com motor V8 de 7 litros e 485 CV, a rival italiana apresentou o Ferrari 330 P3, em fibra de vidro, motor V12 de 4 litros com 420 CV. A lógica da Ferrari era linear, motores maiores exigem chassi mais pesado e implicam em maior consumo de combustível, maior resistência de componentes da transmissão e maior esforço dos freios. Na segunda metade dos anos 70 venceu a força bruta.



Era natural que o departamento de divulgação e propaganda da Ford tivesse preferência por pilotos com um perfil mais palatável ao mercado para vencer competições com um veículo da marca, ainda assim o epílogo do filme atendeu mais uma necessidade da trama que um fato proposital. Era comum nos anos 60 equipes provocarem o alinhamento de seus carros na chegada de provas de longa duração (endurance), fotos de cobertura jornalística de corridas no Brasil nos anos 60 mostraram em diversas ocasiões berlinetas Interlagos da equipe Willys ou DKW da Vemag cruzando a linha de chegada juntos, uma poderosa ferramenta promocional.




Berlinetas Willys Interlagos



Ao perceber que a vitória da Ford nas 24 Horas de Le Mans era inevitável e confiando na pouca precisão dos sistemas de cronometragem, o marketing da empresa americana desenvolveu a ideia de imortalizar uma vitória histórica fazendo os três GT40 cruzarem a linha de chegada juntos. Uma foto para a posteridade com os três carros americanos compartilhando a primeira colocação, na prova mais significativa da Europa que até então era monopólio da Ferrari, parecia excelente. Se um piloto em particular foi prejudicado, quase com certeza não era a intenção. Observação: A Ferrari devolveu a gentileza nas 24 Horas de Daytona em 1967 fazendo três carros nas três primeiras posições cruzarem a linha de chegada juntos, embora com número de voltas diferentes.



Um dos fatos que não foi endereçado pelo roteirista do filme é que o engenheiro, piloto e projetista Ken Milles era um tipo de Valentino Rossi no mundo das quatro rodas. Por ocasião das 24 Horas de Le Mans em 1966 ele tinha 48 anos, dez a mais que Phil Hill e quase duas décadas de seus, colegas o neozelandês Bruce McLaren e o australiano Denis Hulme.




MotoGP – Ajuste da Suspensão (revisado)








Guillaume Amontons foi um inventor e físico francês que viveu entre 1663 e 1705. Em seu currículo constam aperfeiçoamentos em instrumentos de medição como barômetro (1965), higrômetro (1687) e termômetro (1695). A contribuição do francês aplicadas na MotoGP é com a a formulação das leis do atrito: (1) A força do atrito entre a roda e o piso é diretamente proporcional à carga (peso) aplicada; (2)  A força do atrito independe da área de contato. Estas duas regras são complementadas pela lei de Coulomb que especifica que o atrito cinético independe da velocidade de deslizamento. 


Os protótipos que participam da MotoGP são equipamentos complexos, embora os motores sejam lacrados antes da primeira etapa e a sua especificação permaneça inalterada durante toda a temporada, diversos componentes do chassi podem ser ajustados de acordo com as características de cada circuito para criar uma configuração (chamada de setup) mais competitiva. Existe um conjunto de elementos relacionados com aspectos importantes da geometria do quadro que podem ser modificados em função de condições do traçado ou aderência de piso, conhecidos pelos termos técnicos; rake, trail, wheelbase (distância entre eixos), centro de gravidade e anti-squat.


Conceitualmente a geometria é identificada apenas com as medidas físicas do chassi, entretanto estes valores são inter-relacionados, alterar um implica em modificar outros. Ajustar um equipamento não é simples, enquanto os valores de rake, wheelbase e trail são obtidos por medidas diretas, anti-squat e outros valores resultam de uma combinação de diversas dimensões.


Trail (trilha) é medida da distância do contato do pneu entre a vertical da roda obtido a partir do grampo triplo e o ponto onde o eixo de direção encontra o piso. Outras medidas importantes que afetam diretamente a geometria do equipamento são o rake, offset e diâmetro do pneu. Rake é a medida do ângulo do eixo de direção em relação a vertical, offset é o deslocamento entre a distância entre tubos do garfo e o eixo de direção dianteiro. 


Geometria Dianteira - Rake e Trail


Na parte frontal o a medida do trail é o principal responsável sobre o comportamento da moto em curvas e sua estabilidade em linha reta. Trail é definido como a distância do contato entre a vertical do pneu dianteiro e a inserção do eixo de direção com o piso. O maior valor do trail aumenta o esforço do piloto necessário para conduzir o equipamento e resulta em maior estabilidade, reduzir o trail torna a direção mais leve e a moto menos estável. O maior ou menor valor do trail, de acordo com a segunda lei de Amontons, não implica em maior ou menor grip, força de atrito entre a roda e a pista. 


O ajuste do trail pode ser obtido alterando duas das três dimensões utilizadas na sua composição, rake e offset, já que o diâmetro do pneu é fixo e definido pelo regulamento da competição.


Geometria Traseira: Anti-Squat


Squat não tem uma tradução literal que possa ser aplicada ao comportamento da suspensão traseira de uma moto. O termo mais aproximado é “agachamento”, a reação de buscar um equilíbrio de forças que atuam em um determinado momento sobre o equipamento. Squat indica a tendência da moto em baixar a suspenção traseira na aceleração como resultado da transferência de carga em função da tração aplicada. Uma maneira de compensar esta tendência é o anti-squat, uma característica de flexibilidade do chassi que trabalha para inibir a transferência de peso durante a aceleração. Nas últimas provas de 2019 uma sensível melhora no comportamento das KTM foi resultado de uma sugestão do piloto de testes Dani Pedrosa, a remoção de dois parafusos de fixação do motor no chassi de treliça da moto para aumentar a sua flexibilidade e colaborar com o anti-squat. Com a aplicação do torque gerado pelos motores no eixo da roda traseira os efeitos de squat e anti-squat têm uma disposição natural para aumentar.


O efeito de anti-squat é uma combinação de duas forças. A primeira é a força motriz do pneu traseiro, que atua apoiada no braço oscilante e tende a estender a suspensão traseira. Um exemplo prático, se a moto for bloqueada por uma parede sólida e uma pressão for exercida sobre o chassi, o ângulo do braço oscilante tende a reduzir estender a distância entre eixos. A segunda força é da correia que atua sobre o eixo e que também trabalha para ampliar a suspensão na maioria dos casos. A magnitude da contribuição de anti-squat da correia depende do ângulo e a da distância em relação ao braço oscilante. Estas duas forças atuam em conjunto com o efeito giroscópio (Autoracing, 23 de maio de 2016, MotoGP – O efeito giroscópio) para criar o melhor compromisso entre velocidade em retas e facilidade no contorno de curvas. 


Existem diversos modos para expressar a magnitude do efeito anti-squat. O mais simples é usar uma porcentagem para indicar o quanto da transferência de peso é compensada, por exemplo, se seu efeito compensa 75% da transferência de peso na aceleração e a suspensão vai sofrer alguma pressão para baixo. Com 100% a transferência de peso é perfeitamente equalizada e a suspensão não apresenta efeitos devido à aceleração. Em mais de 100% reduz ângulo do braço oscilante e a suspensão é alongada. Este valor pode ser calculado pela localização exata da roda dentada dianteira, em conjunto com outras dimensões. O anti-squat é importante porque pode alterar o comportamento do chassi na saída de uma curva. Normalmente algum squat é desejável para carregar o pneu traseiro e obter maior tração, mas não pode ser suficiente para provocar o wheelie, fazer a roda dianteira perder o contato com o piso. 


Quando a suspensão traseira desce, o ângulo do braço oscilante pode mudar consideravelmente em função das características anti-squat. Circuitos com equilíbrio entre retas e curvas a maioria das motos responde melhor se configuradas com o anti-squat pouco mais de 100% com a suspensão totalmente estendida, o que significa maior eficiência na aceleração e dirigibilidade nas saídas de curvas pela compensação da transferência de peso.



Centro de gravidade


Até este ponto nos referimos a ajustar o comportamento da frente ou traseira da moto, alterando o rake, offset, trail ou trabalhando a flexibilidade do chassi para compensar o resultado do squat ou anti-squat.. Evidente que é importante controlar qualquer mudança que levanta ou baixa o equipamento inteiro, porque a altura da moto tem importância vital em sua dirigibilidade. Um modo de avaliar a contribuição de todos estes atributos é o conceito de Centro de Gravidade (CG), o ponto onde convergem todas as forças que atuam na transferência de carga, aceleração, frenagem e inclinação em curvas, ou seja, o ponto de equilíbrio da moto inteira. Na maioria das motos de competição o CG, incluindo o piloto, deve estar a meio caminho entre a roda dianteira e traseira. A posição do CG influi no comportamento geral do equipamento. Uma moto com o CG mais elevado gerencia melhor a retomada de velocidade, frenagem e amplia os efeitos da transferência de peso, tende a trocar de direção mais rápido e exige menor ângulo de inclinação para contornar uma curva.

Adiantar o CG ajuda a manter a extremidade dianteira para baixo, aquece melhor o pneu dianteiro, contribui para ajudar com aderência frontal, mas a extremidade traseira terá maior facilidade para subir durante a travagem e o conjunto perder aderência. Baixar o CG pode significar menor arrasto, retomadas de velocidade mais eficientes e velocidade em trechos retos.  


O comportamento do protótipo deve ser adequado às características do piloto, tem os que preferem trabalhar mais com a frente, outros com a traseira no contorno de curvas. O equipamento deve responder com a maior desempenho possível em cada caso, por isto é complicado, em uma mesma equipe, um só piloto responder pelo setup das motos.



Geometria dinâmica


O problema do ajuste ideal de uma moto é que fazer uma mudança em uma variável afeta um sem número de outros comportamentos na geometria, especialmente em protótipos que devem obedecer a padronizações draconianas como os equipamentos da MotoGP. Ainda assim as equipes conseguem ajustes limitados com alterações realizadas de modo indireto. Por exemplo, a Yamaha M1 pode mudar a altura de pivô do braço oscilante para conseguir maior anti-squat, mas isso também muda rake, trail e a altura do centro de gravidade. Muitas vezes uma única alteração pode introduzir mais problemas que soluções. Aumentando a complexidade, tudo o que foi citado acima é relacionado com o equipamento na vertical e na maior distância entre eixos, condição que quase não acontece durante uma prova. 


Os números de geometria mudam constantemente à medida que a suspensão trabalha. Em travagem, por exemplo, a suspensão frontal é quase totalmente comprimida e a traseira estendida. Mudanças de peso, até pelo consumo de combustível, alteram significativamente o rake, trail e CG. Os movimentos do braço oscilante e os ângulos da correia alteram o comportamento da suspensão e podem até transformar um comportamento anti-squat em pró-squat em algumas condições. 


As equipes de utilizam complexos softwares de simulação para prever o comportamento de mudanças na geometria dos equipamentos, que calculam características importantes baseadas em várias variáveis de entrada, entretanto nada compara a sensibilidade dos pilotos em testes para encontrar as condições ideais.